Leituras

Paulo e Agostinho

José Nivaldo Cordeiro


1o de janeiro de 2002

Sei que ao me propor fazer comentários, ainda que breves, sobre a temática religiosa, me expus ao debate, que desde já digo que é bem vindo. Ao primeiro artigo dessa série pude sentir o calor da argumentação em torno do tema, vindo de pessoas de diversos credos religiosos. Recebi muitos e-mails e me propus a responder a todos. Estou aberto ao debate franco.

Apenas, como advertência, gostaria de citar aqui um trecho do Prólogo do História do Cristianismo, de Johnson, fazendo minhas as suas palavras:

“Afinal, o cristianismo, identificando verdade com fé, deve ensinar – e, adequadamente compreendido, de fato o faz – que qualquer interferência à verdade é imoral. Um cristão com fé nada tem a temer dos fatos; um historiador cristão que estabelece limites para o seu campo de investigação, em qualquer ponto que seja, está admitindo os limites de sua fé. E, naturalmente, também destruindo a natureza da sua religião, qual seja uma revelação progressiva da verdade. Por conseguinte, um cristão, a meu ver, não deve ser impedido, nem no mais leve grau, de seguir o fio da verdade; com efeito, é, positivamente, fadado a segui-la. De fato, ele deve ser mais livre que o não-cristão, comprometido por princípio com sua própria rejeição”.

Os quase quatro séculos que separam a ação de Paulo de Tarso da ação de Agostinho foi um período rico para a expansão da nova fé em todo o Império Romano. É como se o mundo todo estivesse pronto para receber a nova fé que pregava o Deus Único; é como se o cristianismo tivesse sido moldado para suprir essa carência.

Mas as leituras das verdades cristãs a ser feitas pelo novos crentes poderiam ser muito diversas, como de fato foram, na ausência de um clero organizado e de uma igreja coercitiva. Era tudo que não queria Paulo; foi tudo que Agostinho construiu. Embora o segundo obviamente tivesse se apoiado no primeiro, decididamente a visão de ambos sobre a vivência da fé diferia enormemente. Johnson não economiza elogios a Paulo e críticas a Agostinho. Vejamos o trecho abaixo:

“É verdade que os cristãos dispunham, agora, de um corpo doutrinário homogêneo e extremamente viril: o evangelho paulino, ou kerygma. Ele tinha uma boa chance de sobreviver e difundir-se. Mas não havia organização por traz de si. Paulo não acreditava em tal coisa. Acreditava no Espírito, operando por meio dele e de outros. Por que iria o homem regulamentar algo, quando o Espírito agiria em seu lugar? E é evidente que ele não queria um sistema fixo, com regras e proibições: ‘se vocês forem guiados pelo Espírito, não estão submetidos à lei’. A Igreja era uma inversão da sociedade normal. Seus líderes exerciam sua autoridade mediante dons de Espírito, não em virtude do ofício. Os dois dons mais nobres eram a profecia e a pregação… O controle clerical parecia dispensável e inadequado. O clima das igrejas paulinas foi reproduzido em outros lugares, em um movimento de rápida disseminação” (página 59).

A religião de Paulo era de uma total liberdade interior do indivíduo, sem qualquer intermediação entre ele e Deus. A essa liberdade correspondia a escolha entre a salvação e a danação eternas. É verdade que Paulo esperava a parusia ainda no seu tempo de vida e nisso ele se enganou. Mas insistiu sempre na vigilância do homem de fé, para os sinais do Espírito e a harmonia entre a fé e a ação no mundo. Seu cristianismo pressupunha, pois, esse individualismo radical, com a respectiva liberdade e responsabilidade de cada um.

Fruto dessa visão, os primeiros séculos de vida cristianismo foram ricos na geração de diferentes seitas, muitas vezes antagônicas, que professavam o novo credo a partir de Paulo. Algumas dessas seitas ficaram conhecidas como gnósticas, e muitas vezes tinham uma visão errada e herética da verdade cristã. Muitas vezes os ingredientes cristãos eram misturados a idéias nacionalistas de povos subjugados por Roma, alimentando focos de revolução política, algo bastante distante de Paulo e do próprio Cristo, mas muito perigoso para o conjunto de todos os cristãos. As perseguições não tardaram a vir e o martírio dos muitos também.

O fato é que o cristianismo se disseminou rapidamente em todo o Império Romano e, quando se tornou a religião de Estado, já podia ser considerada a religião de uma boa maioria. Foi um processo, por assim dizer, quase que natural a absorção feita por Constantino do cristianismo como religião oficial do Império.

É nesse contexto que devemos entender a personalidade de Agostinho e justificar, em parte, a sua maneira de ser. Se as seitas gnósticas não tivessem sido combatidas com rigor, é provável que a história contada fosse outra, seja em termos de doutrina, seja em termos de perseguição, seja em termos de consolidação do cristianismo como religião de massa. Jonhson lamenta que muitos que foram acusados de heréticos não o eram, na verdade. Seriam reformadores como Lutero e tudo que queriam era a vivência cristã nos termos paulinos.

A consolidação do cânon oficial e reconhecido por todos foi um processo de luta que demorou. Apareceram muitos escritos que foram recusados pela ortodoxia do Ocidente e do Oriente e nesse processo de depuração muitos documentos religiosos importante foram perdidos para sempre. Mesmo alguns livros, como o Apocalipse de São João, hoje considerados inspirados, só a muito custo foram introduzidos no cânon. Mas, uma vez que esse foi consolidado, serviu de guia para o conjunto da cristandade. Foi um grande bem para a pacificação da Igreja.

Johnson afirma: “A verdade é que , no decorrer das operações anticristãs, em larga escala da segunda metade do século III, o Estado foi forçado a admitir que seu inimigo mudara e tornara-se um aliado em potencial. Na longa batalha pela supressão da clivagem interna, pela codificação de sua doutrina e expansão de suas fronteiras, o cristianismo havia se tornado, sob vários aspectos impressionantes, uma imagem do próprio império. Era católico, universal, ecumênico, ordenado, internacional, multirracial e cada vez mais legalista. Era administrado por uma classe profissional de eruditos que, sob determinados aspectos, faziam as vezes de burocratas, e seus bispos, como governadores imperiais, legados ou prefeitos, detinham amplos poderes discricionários para interpretar a lei… Afinal, o cristianismo tinha se tornado um fenômeno tão secular como espiritual: era uma imensa força para a estabilidade, com suas próprias tradições, propriedades, interesses, e hierarquia. Diferente do judaísmo, não possuía aspirações nacionais incompatíveis com a segurança do império; pelo contrário, sua ideologia servia às metas e necessidades do estado imperial” (páginas 93/94).

E mais à frente:

“No final do século IV, de fato, a Igreja se tornara não apenas a religião predominante do império romano, tendendo ser considerada a oficial, como, na verdade, era a única” (página 125).

E em que consistia a ortodoxia cristã, a corrente que acabou vingando na conquista do Império Romano e na supremacia sobre as demais correntes? O ponto crucial é a intermediação da fé entre o crente e Deus pelo clero, que passou a ser o único intérprete das Escrituras. Era exatamente o oposto da visão paulina. Outro ponto importante que emergirá forte no período da Reforma é a discussão se a salvação se dá pela graça ou pelas obras.

É nesse contexto do triunfo da ortodoxia e na absorção do império romano pelo cristianismo – e vice-versa – que devemos compreender a figura de Agostinho. Johnson é muito duro e antipático ao se referir a ele: “Agostinho foi o gênio das trevas do cristianismo imperial, o ideólogo da aliança entre Igreja e Estado e o gerador da mentalidade medieval. Depois de Paulo, que forneceu a teologia básica, ele fez mais para moldar o cristianismo que qualquer outro ser humano” (páginas 136/137). Mais à frente: “Em Cidade de Deus, Agostinho já compara a vulnerável cidadela mundana com o imperecível reino do cristianismo. O homem devia ter em vista o segundo; nada se deveria esperar na terra. Sua última obra, inacabada, examinava a teodicéia e todo o problema do mal. Era tolice supor, escreveu… que Deus fosse eqüitativo em sentido humano. Sua justiça era tão inescrutável como qualquer outro aspecto de sua natureza. As idéias humanas de eqüidade eram como ‘orvalho no deserto’. O sofrimento humano, merecido ou não, só ocorria porque Deus estava zangado. ‘Esta vida, para os mortais, é a ira de Deus. O mundo é o Inferno em pequena escala’… O homem, simplesmente, tem que aprender a aceitar o sofrimento e a injustiça. Nada havia que pudesse fazer quanto a qualquer um desses… Agostinho via a raça humana como crianças indefesas. Remetia-se constantemente à imagem do bebê sendo amamentado. A humanidade era profundamente dependente de Deus. A raça estava prostrada e não havia possibilidade de que se erguesse por seus próprios méritos. Esse era o pecado de orgulho – o pecado de Satanás. A postura da humanidade devia ser de total humildade. Sua única esperança encontrava-se na graça de Deus. Agostinho faz a ponte, portanto, entre o mundo clássico e a passividade desesperançada da Idade Média. A mentalidade por ele expressa tornar-se-ia a perspectiva preponderante do cristianismo e, como tal, dominaria a sociedade européia por muitos séculos…. Até que ponto o pessimismo maniqueís ta de Agostinho foi responsável por esses tons sombrios do pensamento cristão é difícil de avaliar; sem dúvida, se compararmos sua filosofia com a de Paulo, pode ver-se que Agostinho… foi o heresiarca – o maior de todos, em termos de influência… Adiara a construção da cidade perfeita para depois da parusia” (página 147)

Aqui convém sublinhar a idéia de Eric Voegelin de que o retardamento da parusia tenha colocado para os cristão o desafio do governo desse mundo. As escrituras não traziam uma teologia civil, no seu dizer, de modo que seria necessário criar uma, sob pena dos cristão não terem os meios para instituir uma ordem necessária. É nesse contexto que Agostinho e sua obra têm que ser compreendidos. Ele legou à cristandade a teologia civil necessária, uma teoria e, portanto, os meios para governar a cidade dos homens.

Nesse sentido, a visão de Jonhson não é de todo justa, embora seja precisa em suas linha gerais.

Veremos no próximo artigo que o debate renasce com todas as forças no período da Reforma.

Ainda a Argentina

José Nivaldo Cordeiro


1o de janeiro de 2002

Uma das seqüelas mais sérias das desastradas intervenções do Estado argentino na economia é ter criado uma forte desconfiança do público com relação ao sistema bancário. Isso significa que a flexibilização do limite de saques de US$ 1.000,00 poderá decretar a morte desse sistema, com quebra de bancos e, em conseqüência, a impossibilidade de manter a liquidez da economia como um todo. De quebra, a desintermediação bancária reduzirá dramaticamente a disponibilidade de recursos para investimento, com sérios e imediatos desdobramentos.

O problema é que a recuperação da confiança do público poderá levar muito tempo, qualquer que venha a ser o novo presidente e qualquer que seja a sua política econômica. Os argentinos poderão preferir, por muito tempo, guardar o seu dinheiro em casa ou simplesmente antecipar os seus gastos, para se livrar da moeda. Ou adquirir moeda estrangeira, para lastro. É uma situação dramática.

Vai ser muito difícil escapar de uma corrida bancária, que poderíamos chamar de a herança maldita do ministro Cavallo. Certamente não será um aleijão fácil de superar.

O drama é a reconstrução. Será preciso a implantação de séria e confiável política econômica para restabelecer a confiança. Com um governo de continuismo peronista, é difícil imaginar um cenário em que isso aconteça. É provável que surpresas e fortes emoções – tudo o que o mercado não quer e não precisa – venham ser a marca registrada, nos próximos meses, na área econômica. Infelizmente.

Mas já diz o ditado popular: não há mal que sempre dure e nem bem que nunca acabe. O inferno econômico e político da Argentina será superado, mais dia, menos dia. Quando as trevas são as mais profundas é que nasce a luz, ensinam as religiões em todos os quadrantes. Elas sempre estiveram certas.

Quem viver, verá.

 

Cristo e Paulo

José Nivaldo Cordeiro


31 de dezembro de 2001

Acabei a leitura do livro do Paul Johnson, História do Cristianismo, (Ed. Imago, 2000) e resolvi escrever alguns artigos a partir dos grandes temas sugeridos pelo mesmo, consolidando as reflexões que tenho feito de longa data. Neste primeiro resolvi discutir a relação entre as personalidades de Cristo e Paulo, o que significa discutir a origem da Igreja Cristã, bem como as suas relações com o judaísmo. O segundo artigo que pretendo escrever terá como tema a relação entre Paulo e Agostinho, o que significa também discutir a relação entre o cristianismo e o Império Romano. O terceiro terá como tema a Reforma, suas origens e conseqüências. E, finalmente, o quarto artigo da série abordará o doloroso momento da Segunda Guerra Mundial, na qual as Igrejas Cristãs, em sua maioria, tiveram uma vergonhosa ação, com as exceções de regra. Significará também a discussão da relação das Igrejas com os movimentos coletivistas totalitários, como o nazismo e o comunismo.

Sintomaticamente, Paul Johnson inicia sua narrativa com a personalidade de Paulo de Tarso, e não a de Cristo, como seria de se esperar. E o momento é o Concílio de Jerusalém, por volta de 49 d.C., ocasião em que a linha paulina – a evangelização gentílica – definiu os rumos da nova fé, salvando-a de ser mais uma seita judaica, que constelava em torno dos rituais do Templo de Jerusalém, em nada diferindo das ramificações tradicionais do judaísmo. A personalidade incandescente de Paulo, o judeu nascido de judeus, sua adesão apaixonada à Verdade, solapou o movimento judaizante característico dos primeiros cristãos que foram as testemunhas da vida e paixão de Cristo. Nesse Concílio, que foi o primeiro ato político do cristianismo, ficou definido que a Lei – e a circuncisão – só valeria para os nascidos judeus e não para os não judeus. Com isso quebrou-se as amarras para que o cristianismo viesse a se tornar uma religião universal, em contraposição ao judaísmo, característicamente um credo nacional e, como diz Johnson, mesmo uma religião municipal, na medida em que o espaço sagrado era definido na época como sendo o Templo. Nas suas palavras:

“Paulo é o primeiro cristão puro: o primeiro a compreender plenamente o sistema de teologia de Jesus, a perceber a magnitude das mudanças que incorporava, bem como a integralidade da ruptura com a lei judaica” (página 49).

O salto permitido pela teologia paulina começa por dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, o espaço sagrado passa a ser a alma do indivíduo e não mais um lugar geográfico. E, em segundo lugar, a adesão ao novo credo perde a sua origem racial e condição de nascimento para se caracterizar como uma adesão a ele de livre e expontânea vontade do indivíduo consciente. E, ainda uma novidade importante, Cristo viria a ser o último sacrificado, tornando obsoleta toda a Lei, especialmente as prescrições de sacrifícios de animais, em holocausto. Em substituição, ficou instituída a celebração da última ceia, um simulacro de sacrifício ritual que tornava a nova religião muito mais simpática aos gostos civilizados dos romanos e dos sofisticados gregos.

A idéia cristã, sublinhada por Paulo, de que o Povo Escolhido será todo aquele que abraçar a promessa de Cristo é absolutamente revolucionária, pois vai dar a dignidade e igualdade de todos diante de Deus. Será a semente do fim das estruturas sociais aristocráticas, bem como a semente da moderna sociedade aberta de que desfrutamos, assim como o reconhecimento da igualdade jurídica e de oportunidade de todos como a conhecemos no Ocidente judaico-cristão.

E a liberdade cristã é sobretudo a liberdade interior, independentemente das condições históricas. Um cristão é, simultaneamente, um revolucionário e um conformista, na medida em que aceita como tal a ordem vigente, mas não cede um milímetro nas suas convicções religiosas. É a condição para que indivíduos diferenciados irrompam na História, em substituição às massas estupidificadas pelos coletivos imperiais. Antes, verdadeiramente só poderiam ser considerados indivíduos raros homens de Estado e filósofos. Com a nova religião, até mesmo os simples poderiam sê-lo e a liberdade interior veio a ser a marca da nova religião. O Reino de Cristo não é desse Mundo, de modo que nem mesmo a morte poderia atemorizar os cristãos, prontos que estavam para o Juízo Final.

Então a separação completa entre o indivíduo, de um lado, e o Estado, do outro, é um acontecimento novo. O poder político desde então se estabeleceu como oposição aos indivíduos da nova fé, mesmo quando esse poder veio a ser controlado por cristãos. “Dai a César o que é de César” foi a sentença de Cristo que dessacralizou completamente o poder político, tornando efêmeras e sem importâncias as glorias do Mundo. O Reino cristão está no Além.

Cristo é uma personalidade cujo registro histórico é escasso. Sabemos muito mais de Paulo do que de Cristo. Os relatos que sobreviveram estão marcados pela sua condição de Filho de Deus, cobrindo com uma sombra o Jesus histórico. Em contrapartida, Paulo é a personalidade melhor conhecida entre os primeiros cristãos, graças às suas Epístolas, aos Atos dos Apóstolos, redigido por Lucas, e outras fontes independentes.

A doutrina teológica cristã estava implícita nos ensinamentos de Jesus, conforme relatado nos Evangelhos. Será Paulo quem sistematizará esses ensinamentos em uma prodigiosa teologia, expressa de forma elegante e apaixonada nas Epístolas. Especialmente aquela dirigida aos Romanos, a verdadeira certidão de nascimento da nova religião (não podemos esquecer que a redação dos Evangelhos aconteceu em data posterior, a partir da tradição oral). Sem Paulo certamente não haveria o Cristianismo. Cristo é a sua condição de existência, o Filho de Deus feito Homem, mas será Paulo, ao receber a missão do próprio Cristo, na visão a caminho de Damasco, quem terá a responsabilidade de construir a nova Igreja. 

Talvez a história do cristianismo tivesse sido outra se os romanos não tivessem destruído Jerusalém em 70 d.C., pois a destruição englobou também a Igreja daquela cidade, sendo o centro da nova fé transferido para Roma, local onde viveram e foram sacrificados Pedro e Paulo no governo de Nero. Roma passou a ser a sede da Igreja do Ocidente, mantendo a unidade até a Reforma.

Veja todos os arquivos por ano