A “Leonardo” leva já dois anos e meio de presença nestas suas vestes informáticas e, a confirmar a sua radical irrelevância para o “establishment” cultural, social, político, académico e editorial, está o facto de nunca ter recebido aqueles testemunhos de “estima e consideração” próprios do ambiente letrado, que são a oferta de livros feitos pelos “oficiais do mesmo ofício”.
Para isso, ninguém nos liga nenhuma! Excelente.
Libertos assim, como sempre desejámos, de qualquer serventia ou cumplicidade, seja com os mais visíveis apparatchiks da “cultura”, seja com os mais discretos ou secretos “independentes, mas conformes”, que lhe ocupam, à “cultura”, os contornos da auréola, fomos, contudo, recentemente prendados com duas obras.
Prendados, apenas pela nobre razão de seus autores quererem ser lidos; apenas isto, porque outras pretensões não envenenam, bem o podemos avaliar, o desejo dos autores, nem tampouco seriam exequíveis, connosco.
E sendo assim o que somos, tanto os autores como os leitores, é em concreta liberdade e amor à verdade que agora nos manifestamos e deixamos o nosso testemunho sobre as obras recebidas.
São elas “Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à teoria dos Quatro Discursos”, de Olavo de Carvalho, e “Considerando os filósofos”, de Carlos Aurélio.
Do primeiro livro, irei agora dizer alguma coisa. Do segundo, será de seguida publicado um texto de Miguel Bruno Duarte. Mas outros textos poderão aparecer mais tarde, sobre qualquer um destes dois livros, porque temos em ambos muito “pano para mangas”.
A perpetuidade da Filosofia Clássica
A primeira nota que quero deixar bem frisada sobre o livro de Olavo de Carvalho foi ter tido uma constante, surpreendente e agradável sensação de familiaridade com o texto, com o pensamento, com o exercício filosófico que subjaz a este livro.
E, no entanto, o livro tem ideias originais, teses invulgares e propostas inovadoras…
Essa familiaridade foi, então, a primeira condição ou circunstância que suscitou a interrogação. Porquê?
Depois, eis o facto de estar também documentada e patente, no livro, a polémica que esta obra gerou, que me causou um “dejá vue” arrepiante da reacção típica do bacharelismo positivista que controla, lá como cá, muitos dos púlpitos e varandas do “templo da cultura oficial”, onde as novas obras e autores devem obedientemente desfilar, para aprovação comprometedora dos maiores e aplauso invejoso dos menores.
Respondo já à interrogação feita acima lembrando agora a conclusão do texto de Orlando Vitorino, aqui recentemente publicado, sobre Álvaro Ribeiro. Essa conclusão é a de que cabe à Filosofia Portuguesa a demonstração da perpetuidade da Filosofia Clássica, e nesta, da obra de Aristóteles, “ a filosofia natural do homem”.
Ora, para mim, a familiaridade que senti com esta obra deve-se ao simples facto de Olavo de Carvalho ser um filósofo a quem também tocou essa missão!
Em favor desta minha afirmação não quero adiantar supostos esclarecimentos sobre o modo misterioso em que tais vínculos espirituais se transmitem, que a serem tidos em conta afastariam parte do espanto que esta afirmação possa causar; basta-me dizer, mais simplesmente, que não é “impunemente” que se filosofa em Português! Filosofar em Português, aqui, como no Brasil, ou em Macau, é sempre inspirar, ou aspirar, os tropos lusos que no incansável tempo ganharam morfologia própria e sustêm a Língua Portuguesa. O resto, vem da alma de cada um! E se Olavo nasceu autor de razão animada, não admira que filosofe com autonomia e que o seu filosofar seja um fruto germinado ao sol e à chuva de uma Pátria singular, mas já universal. E foi sob este sol e esta chuva que melhor se entendeu Aristóteles, enquanto decorriam muitos e longos séculos e se mudavam as vontades.
Depois das obras de Álvaro Ribeiro, como Razão Animada, Estudos Gerais, Escola Formal ou a Arte de Filosofar, que reabriram em Portugal, no século XX, os mais altos horizontes da filosofia aristotélica, vejo agora em Olavo de Carvalho, e nesta sua obra, o estudo aristotélico actual mais relevante da Escola Formal, e com não menor relevância até na sua aptidão didáctica para quem se queira iniciar no que mais importa da obra aristotélica, aptidão ou valor que Álvaro também nunca desdenhou ou esqueceu nos seus livros.
E, no entanto, até é possível que o Olavo não se sinta pessoalmente identificado nestes termos, já que não é pequeno o oceano concreto que nos separa a todos, o Atlântico, e um escol requer alguma proximidade e conformidade de conceitos e termos. Mas o que possa faltar de medida e peso, para firmar essa sintonia, sobra na espontânea empatia de sentimentos e pensamentos que existe, seja lá por que razão seja, (se a razão que já adiantei não chegar), e me cumpre constatar, por ser verdade.
O facto, pois, é este: comungamos, interiormente, de uma mesma “traditio”; e, como se vê, cá e lá, para o bem e para o mal.
A tese fundamental deste livro é a unidade do saber em Aristóteles, unidade que tem o seu concreto assento na existência de um único potencial intelectivo, o discurso humano, que se desenvolve por quatro disciplinas, a Poética, a Retórica, a Dialéctica e a Lógica. Na intuição desta unidade discursiva e das quatro modalidades principais em que Aristóteles propõe o seu desenvolvimento unitário, para atingir assim a plenitude das suas formas próprias, perfazendo no horizonte os limites do possível saber humano e deixando entreaberta a via sófica, vê Olavo, e com razão, o resultado da sua autoria, já que de ninguém ouviu ou aprendeu isto.
Esta tese, obviamente, contraria as vulgarizadas versões sectárias de Aristóteles, e disso tem clara consciência Olavo de Carvalho, quando afirma que irá apresentar “como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumam encarar como guardião da esquizofrenia”, da esquizofrenia que é o autêntico pilar da tese da dualidade do saber. O seu esforço não é vão, e quedam esclarecidas as suas razões e, supletivamente, as causas do sectarismo corrente.
Esta “doutrina dos quatro discursos” é lucidamente exposta, tanto nas curiosas contingências históricas que terão contribuído para a sua ocultação ou esquecimento – apenas Avicena refere esta visão com alguma acuidade – como sejam o desaparecimento da Poética praticamente até ao Renascimento, ou a hipertrofia da argumentatio da Dialéctica e da mecanicidade da Lógica dos silogismos nas disputas teológicas e nos conflitos de Fé, ou na gradual morte da Retórica enquanto instrumento vital da pólis e da domus justitia, como nas suas causas intrínsecas e essenciais, que a natureza humana impõe e que determinam uma única fonte de culto e cultura, de pensamento e expressão, um único cadinho onde se fundem sensibilidade, memória, imaginação e razão, o discurso humano; eis a teoria de “uma expressão integral do logos”.
Ao mesmo tempo que vai expondo a sua original descoberta, original por se tratar de algo que se encontra no âmago da doutrina aristotélica e foi bebido na sua origem, descoberta por ter sido mostrada ou demonstrada, após muitos séculos de obnubilação, Olavo vai deixando igualmente a sua interpretação de outros tópicos da obra do Estagirita, alguns deles não menos relevantes para o reavivar deste pensamento abrangente e orgânico, estruturado mas dinâmico, que caracteriza a unidade do monumental opus aristotélico.
Também se encontra nesta obra uma vertente mais virada para a história das ideias: da história remota, na metódica leitura de várias épocas culturais sob a perspectiva do quadro da evolução sequencial dos “quatro discursos” e sua respectiva relação com as mentalidades próprias dessas épocas; da história recente, com a impagável e humorística polémica travada com alguns “sábios da mula ruça”, dos muitos que pululam pelos muitos galhos da frondosa “cultura oficial”.
Gostaria de deixar aqui, após esta primeira referência global à obra, os temas que me levantaram dúvidas ou simples desacordo, já que em relação a tudo o mais, nada melhor que a leitura da obra, que está dsponível na Net para aquisição, e que é o modo adequado de conhecer realmente as teses de Olavo de Carvalho.
Tenho, então, para concluir, as seguintes notas a acrescentar:
– Julgo que a Sofística não está suficientemente mencionada no contexto dos “quatro discursos”; compreende-se que traria algum desconforto a introdução de um “quinto discurso”, ou de uma possível versão deformada ou sombria de um, ou mais, dos quatro disccursos, mas seja como for, a questão da sofistica é demasiado relevante, na filosofia em geral, na filosofia Grega em particular, e na própria obra de Aristóteles, nomeadamente no seu aspecto ético, para não merecer mais que esta breve referência : “Aristóteles adverte expressamente os seus discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialécticos com quem desconheça os princípios da ciência; seria expôr-se a argumentos de mera retórica, prostituindo a filosofia.”
– Já na pag. 41 Olavo descreve: “De discurso em discurso há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível; da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceites na praxis colectiva; porém, da massa de crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem aos rigores da triagem dialéctica; e destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência como absolutamente certas e funcionar, no fim, como premissas de raciocínios científicamente válidos.” Ora, temos aqui uma descrição que me parece excessivamente reducionista, da ciência como filtro que sintetiza dados vários, e falsos, muitos deles: tal visão gera-se com o racionalismo Moderno, e julgo que é anacrónica com Aristóteles e a sociedade Ateniense. Aristóteles não tem uma visão sintetizante, ascendente e afunilante do exercício de conhecer, e os dois movimentos, ascendente e descendente, nele se completam e estimulam mutuamente… Tanto vale a sintetização e a abstracção, como momentos do processo científico, quanto vale a atenta e curiosa observação de novas e multímodas formas em que a vida se organiza, e a imaginação de novas espécies e diferenças, ou a intelecção de géneros e categorias. Nos discursos poético e retórico, aliás, exige-se necessariamente o desenvolvimento das capacidades próprias ao apreciar e recriar do concreto e do diverso, e na própria dialéctica Aristóteles não sobrevaloriza a síntese sobre a análise, ou a dedução sobre a indução; portanto, só se quisermos ver o Organon em versão algo estática e piramidal, aqui já talvez excessivamente medieval, é que iríamos também coroar e subjugar todo o sistema com a Silogística que, essa sim, filtra as proposições pelo crivo da certeza apodítica. Em suma, creio que Aristóteles não desdenharia de ver representado o seu sistema como esférico, mas não piramidal. O dinamismo não gera mais formas sob a égide da crença e da ignorância, enquanto o saber se encarrega de afunilar a verdade num cada vez menor número de seres ou formas, através da subida nos “discursos”. Para Aristóteles, os entes a serem conhecidos são incontáveis e mais reais, ou verdadeiros, que os fantasiados ou aceites pelo senso comum. Conhecer, é conhecer essa diversidade múltipla dos entes, e tão importante é classificá-los numa só classe, como reconhecer-lhes a diferença única que os identifica. Evoluir na credibilidade ou cientificidade dos discursos não é só depurar ou filtrar as fantasiosas crenças do ignorante, numa espécie de movimento do múltiplo ao uno; a organização, ou o organon, permite avançar disciplinada e efectivamente para o conhecimento da imensa multiplicidade de entes e eventos, não para a diminuir, ou abstrair, ou para visionar os modelos do seu mestre, Platão, mas para conhecer o movimento universal que é a demonstração da inteligência divina e que se manifesta nos movimentos de todos os entes, que se movem para culminarem em, ou cumprirem a, sua perfeição.
– Finalmente, apesar de registar com agrado que não é o hilemorfismo, ou a tese do composto da matéria e da forma, que sempre vem à baila nas divulgações de Aristóteles, que mais interessa a Olavo, mas antes a tese da potência e do acto, que sendo mais difícil é muitas vezes posta de lado, embora seja a mais importante contribuição de Aristóteles, na minha opinião, para ultrapassar os desconcertantes paradoxos do movimento e da imobilidade que tanto “trabalho” deram a Platão e a toda a cabeça pensante de Atenas, tenho as minhas objecções à leitura que Olavo faz dessa tese. Mas sobre esse tema será preciso um outro texto, que aqui já não tem cabimento, até porque esse tema vai obrigar-me a ser… digamos atrevido, talvez original.
Lisboa, 10 de maio de 2009