Leituras

O segredo de João Pedro Stedile

Olavo de Carvalho

17 de maio de 1998

Nota – Não encontrei um único jornal ou revista que quisesse publicar este escrito. Como ele contém informações que me parecem importantes para quem deseje compreender o que se passa no Brasil de hoje, dou graças aos céus por poder reproduzi-lo nesta homepage, abrigo de minha minguada liberdade de expressão.

“He that never compares his notions with those of others, readily
acquiesces in his first thoughts, and very seldom discovers the
objections which may be raised against his opinions; he, therefore,
often thinks himself in possession of truth,
when he is only fondling an error long since exposed.”

Samuel Johnson

Quando um sujeito não quer ver a realidade, não adianta nada ela posar diante dele escandalosamente nua. O juiz que rejeitou a denúncia de apologia do crime apresentada contra o sr. João Pedro Stedile alegou que um simples discurso desse personagem não podia ter causado atos de vandalismo. Em algum lugar do passado S. Excia. deve ter tido diante dos olhos, mesmo que fugazmente, um exemplar do Código Penal. Se nele houvesse detido sua atenção por mais alguns segundos, teria talvez notado que a apologia do crime é crime em si, ainda quando impotente para suscitar resultados práticos.

Mas, além de juridicamente descabida, a impotência política que a sentença atribuiu às palavras do Sr. Stedile contradiz também tudo o que se sabe, em história e em psicologia social, da eficácia da palavra-de-ordem desfechada por um líder sobre a massa organizada. Pois o Sr. Stedile não falou, no ar e à toa, para meia-dúzia de mendigos reunidos casualmente numa praça, e sim para uma tropa bem preparada, bem trabalhada, pronta para a ação como um canhão carregado que aguarda, para disparar, apenas uma discreta fagulha.

A comparação, aliás, peca por míngua: secundado pelo apoio quase unânime da mídia e pela solidariedade providencial de políticos e juristas de miolo mole que insistem em estender aos ricos incitadores de pobres a excusa do “estado de necessidade”, um discurso do Sr. Stedile não é uma fagulha: é uma explosão em cadeia, que começa com o chiado de um pavio e termina ribombando e derrubando prédios por todo o território nacional.

Mas que a sentença seja absurda e fundada num pretexto risível não implica que devamos lamentá-la. Por mim acho ótimo que o Sr. Stedile continue a circular livre pelas ruas, despido da aura de mártir que três minutos de cadeia bastariam para conferir a um homem jamais seriamente maltratado por qualquer adversário, e que até o momento não tinha pretexto aceitável para se fazer de coitadinho.

É notória a habilidade da esquerda para elevar às dimensões publicitárias de um holocausto qualquer pequena incomodidade que se lhe inflija. O sr. Leonardo Boff, por exemplo, tornou-se um novo Cristo no Gólgota por conta das duas ou três amáveis reprimendas que lhe deram em Roma, enquanto seus inimigos conservadores – de Lefebvre a Castro Mayer – eram sumariamente excomungados sem que a grande imprensa lhes concedesse sequer um espacinho para modestas lacrimejações.

Não. Nada de cadeia. Quero ver o Sr. Stedile livre e forte para agüentar certas verdades que, mais dia menos dia, hão de aparecer. Para homens como ele, cadeia não dói. O que dói, a única coisa que dói na alma de um revolucionário profissional, é ver exposto aos olhos do público o segredo em cuja meticulosa ocultação reside a fórmula da vitória.

Quando falo em segredo, não imaginem que me refiro ao submundo mental do inconsciente. Nada sei da psicologia pessoal do Sr. Stedile e me dou por satisfeito de continuar a ignorá-la. O segredo do Sr. Stedile não está nas suas emoções profundas, mas numa doutrina política que, para ser eficaz, tem de se resguardar cuidadosamente de declarar seu nome.

Essa doutrina compõe-se, com efeito, de duas partes: as premissas, que o Sr. Stedile alardeia abundantemente, e a conclusão fatal, que ele omite discretamente. As premissas são as seguintes: 1) entre as classes sociais há contradições de interesses; 2) algumas dessas contradições são antagônicas, isto é, não têm solução pacífica.

A conclusão, que o Sr. Stedile jamais declara, mas que qualquer garoto de escola pode tirar sem dificuldade, é que ou a sociedade terá de viver num estado de guerra permanente, ou uma das classes terá de ser eliminada — sendo difícil conceber como se poderia dar fim a uma classe sem suprimir fisicamente bom número de seus membros.

Essa doutrina é nossa conhecida de velhos e sangrentos carnavais. Levada à prática, custou a vida de mais de 100 milhões de pessoas — o episódio mais mortífero da História humana desde o dilúvio.

Mas estou pondo o carro adiante dos bois. Deixem-me contar a história desde o começo. Meu interesse pelas crenças do Sr. Stedile nasceu há tempo em Porto Alegre, onde, com meu amigo, o brilhante estudioso Cândido Prunes, tive durante algumas horas, na Bienal do Livro de 1997, o extravagante prazer de debatê-las com o próprio Sr. Stedile e seu fiel escudeiro frei Sérgio Görgen.

Tendo-as ouvido, não saí, no entanto, estupefato, pela simples razão de que já as viera ouvindo pela vida a fora, pelo menos desde os quatorze anos de idade, quando pela primeira vez topei com um comissário do povo incumbido de ensinar aos jovens o caminho da felicidade universal, que, como o resumiu um adágio da Revolução Francesa, consiste em enforcar seres humanos uns nas tripas dos outros.

Quem ficou estupefato foi o próprio Sr. Stedile, porque, habituado pela mídia a um tratamento de menino mimado, pela primeira vez em sua vida teve a pedagógica e repugnante oportunidade de ouvir uma resposta substantiva. Sim, reconheço que maltratei sadicamente o cérebro do Sr. Stedile, mostrando-lhe as últimas coisas que ele desejaria saber.

Não é de espantar que ele tenha saído espumando de cólera, batendo o pezinho e maldizendo, alto e bom som, a hora em que aceitara o convite para o debate.

Mas vamos por partes. Após ter exposto as premissas de sua doutrina, o Sr. Stedile deu alguns exemplos de contradições antagônicas. O primeiro foi que o regime instalado no país em abril de 1964 esmagara as Ligas Camponesas mediante a eliminação física de seus líderes. Respondi que o episódio se dera em 1963, um ano antes da posse do Marechal Castelo Branco, que só poderia ter cometido o crime pelos métodos do Exterminador do Futuro.

Alegou então o Sr. Stedile, como prova da violência reacionária contra os camponeses progressistas, o massacre de Canudos. Canudos, respondi, fora um movimento monarquista e conservador, afogado em sangue pelos progressistas que tinham acabado de derrubar o regime imperial.

Em resposta, o cortejo de militantes que acompanhava o Sr. Stedile em trajes típicos — boné, sacola a tiracolo — começou a gritar, vaiar e uivar, para impedir que os fatos históricos continuassem a tirar de seu guru todo o prazer de viver. Não tive remédio senão disparar sobre os valentes meninos um enérgico “Cala a boca!”, que, para minha surpresa, os fez mudar de atitude instantaneamente, passando dos rosnados viris aos muxoxos de donzela magoada. Alguns levantaram-se para protestar, com pose de aluninhos bem comportados, contra a grosseria do debatedor escolhido para confrontar-se com a alma delicada do Sr. Stedile. O próprio Sr. Stedile, aproveitando a deixa, declarou que se soubesse que iria receber da parte de seu opositor um tratamento tão brutal, jamais teria ido àquele lugar maldito. Estas sábias palavras foram aplaudidas com entusiasmo. Eu mesmo as aplaudi, fascinado pela desenvoltura artística com que aquele talentoso orador passava do furor heróico aos gemidos de autocomiseração.

Percebi então que o Sr. Stedile só estava acostumado a enfrentar-se com dois tipos de pessoas: no campo, fazendeiros armados que desejariam matá-lo; na cidade, políticos, intelectuais e ricaços que o adulam. Um simples cidadão sincero, capaz de lhe dizer na lata coisas patentes, era demais para a sua cabeça.

Pior ainda ficou ele, esfregando nervosamente as mãos na impossibilidade de me estrangular em público, quando eu disse que o MST, embora pose de inimigo número um do imperialismo, não faz nenhum dano aos poderes internacionais; que estes, ao contrário, lhe dão vasto apoio financeiro e midiático em troca de sua ajuda para enfraquecer o Estado nacional brasileiro, o que é parte essencial da estratégia globalizante, empenhada em fomentar movimentos de reivindicação que obriguem as nações a viver de ajuda internacional; que, no conjunto, o MST só ataca empresários rurais, uma classe que, poderosa regionalmente, nada significa em escala mundial; e que, enfim, tudo se resume no velho circuito descrito por Bertrand de Jouvenel: um poder maior e central, para se afirmar, destrói poderes intermediários com a ajuda de uma massa de insatisfeitos que nem de longe imaginam a quem servem.

A estas observações ninguém me respondeu nada. Os cérebros ficaram paralisados pelo impacto de uma novidade indigerível.

Concluí então que uma causa fundada na falsidade e no auto-engano só poderia propagar-se à força de mentiras. A mais notável delas era o famoso “estado de violência” que, segundo o MST afirma e a imprensa mundial ecoa, é geral e endêmico no campo brasileiro. Exibi então as estatísticas trazidas no livro de autoria do próprio Stedile, A Questão Agrária no Brasil, segundo o qual a taxa de homicídios em toda a área rural brasileira — todo um continente, habitado pela quarta parte da população brasileira —, tinha sido de 40 a 50 casos por ano entre 1991 e 1995 — um número aproximadamente igual à quota, não anual, mas mensal, dos morros cariocas, cuja população não chega a dois milhões de pessoas. Os dados do Sr. Stedile mostravam que, comparado às áreas urbanas, o campo é a área mais estável e pacífica do Brasil. Como conseguia o MST fazer tanto alarde em torno de tão minguados horrores sem o apoio interesseiro dos poderes internacionais, que a doutrina oficial da esquerda afirmava serem aliados dos latifundiários? Era aos fazendeiros ou ao MST que a Comunidade Econômica Européia dava dinheiro, a ONU legitimação política, a grande imprensa novaiorquina respaldo publicitário? Quem, afinal, servia às forças globalizantes?

Convidado a dirigir perguntas ou objeções a seu opositor, o Sr. Stedile declarou que nada tinha a responder a um sujeito tão horroroso, sendo seu aristocrático mutismo secundado pelo de frei Sérgio Görgen, seu acólito. Respondi a essa não-pergunta observando que era próprio do monólogo totalitário nada perguntar, mas viver imerso na auto-satisfação de afirmar, afirmar e afirmar.

Ainda sem responder, o sr. Stedile entrou logo nas suas “considerações finais”, de pé para fazer da mesa de debates um palanque, gesticulando muito, ocupando por meia hora, sem apartes, o prazo de dois minutos que lhe fora concedido, e preenchendo-o com um vocabulário seleto, no qual se discerniam, entre outros termos científicos, o nome da mais velha profissão da humanidade e o do membro masculino, ambos começando com ”p” e terminando com “a”, sendo no fim entusiasticamente aplaudido pelos que haviam protestado contra a incontinência verbal de seu adversário.

Em seguida, alegando não sei quais compromissos, retirou-se do debate, cumprimentando todos os membros da mesa exceto um (no que seria depois imitado por frei Sérgio, religiosamente).

Após a saída do líder, os militantes dividiram-se: uns foram embora, desistindo de uma conversa que não poderia trazer ao MST nenhum dividendo político. Outros redobraram de ferocidade. Um deles gritou que nós outros, defensores de um determinado “modelo de sociedade” éramos uns “mercadores da morte”. Outro, ou o mesmo, não lembro direito, afirmou que o capitalismo matara todos os índios. Ao primeiro, convidei a mostrar, nos meus livros, uma linha, ao menos, que propusesse algum modelo de sociedade. Ao segundo, ou ao mesmo, observei que a destruição das nações indígenas no Brasil fora anterior ao advento do capitalismo, tratando-se portanto, de um segundo Exterminador do Futuro. Seguiram-se novos gritos e protestos, sendo então encerrada, entre apupos e furores, a singular troca de idéias. Troca na qual levei prejuízo, não tendo recebido nenhuma em retribuição das minhas.

Ao voltar ao Rio, tive a surpresa ingratamente lisonjeira de descobrir que muitas pessoas consideravam uma covardia abominável designar-me para enfrentar o Sr. Stedile, tendo em vista o que presumiam ser uma desproporcional dotação de nossos respectivos QIs (no entanto jamais cotejados cientificamente). Essa reação revelou-me um curioso traço da nossa psicologia coletiva: ela encara a inteligência e o conhecimento como forças físicas, que nos debates deveriam ser graduadas igualitariamente, a bem da justiça. Quando um simples cidadão sem cargo ou dinheiro, armado tão somente de sua cabeça e de seus estudos, enfrenta um líder político que vem escorado em vastas organizações, verbas milionárias e uma massa de militantes enfurecidos, o covarde é o primeiro, não o segundo. Entre Cícero com sua eloqüência e César com seus exércitos, covarde é Cícero. Entre Leon Trotski com seus panfletos e Stálin com seus guardas, covarde é Trotski.

Mas, deixando de lado essas manifestações de igualitarismo paroxístico, muito influentes aliás nas “políticas culturais” de hoje, tive ainda, em casa, a ocasião de completar minhas impressões lendo numa revista de São Paulo (Caros Amigos, Ano 1, no 8, nov. 1997) uma longa entrevista do sr. Stedile, onde finalmente acreditei ter compreendido algo da sua personalidade política.

A chave para a decifração dessa criatura enigmática está no estilo do seu discurso. Desde o falecimento do ministro José Maria Alkmin, nenhum brasileiro superou o Sr. Stedile na arte da linguagem escorregadia. Mas entre eles há diferenças substanciais. O primeiro era nebuloso em tudo; o segundo o é apenas no que se refere à sua identidade política, sabendo ser bastante claro e incisivo ao definir a dos adversários. Alkmin era vago em atos e palavras, o Sr. Stedile o é somente em palavras: seus atos têm um sentido muito definido, que o discurso nebuloso busca disfarçar.

A técnica do Sr. Stedile consiste em evitar dar às suas ações mais óbvias os nomes que elas obviamente têm. Ele se esquiva às definições pela mesma razão com que um índio se esquiva de fotografias: para evitar que sua alma seja capturada. A palavra é poder: aquilo que podemos nomear, podemos de algum modo dominar. O sucesso das ações do Sr. Stedile depende em última instância de que ninguém saiba exatamente o que ele está fazendo. Por isto, num mundo em que tantos se queixam da incompreensão alheia, ele foge da alheia compreensão como um vampiro foge da luz do dia.

A nebulosidade começa pela própria figura social do personagem. Esse intelectual diplomado em Economia por uma universidade paga (PUC do Rio Grande) procura falar errado como um homem do povo, mas às vezes se equivoca e inadvertidamente começa a conjugar os verbos e flexionar os adjetivos com aprimorada correção. No debate em Porto Alegre, acuado pelos cálculos de Cândido Prunes, ele primeiro se fez de ignorante, dizendo que não era justo cobrar de um simples lutador pelas nobres causas a leitura de “tudu êssis livru” (sic); tão logo sentiu firmeza, começou a despejar sobre o adversário estatísticas e cálculos — impertinentes, mas expostos em linguagem de professor da USP.

Mais nebuloso ainda é o estado em que ele procura manter a identidade do MST — “um movimento sui generis, ao mesmo tempo de caráter popular, sindical e político”, que os esquerdistas mesmos não entendem, pois “nunca existiu um movimento que reunisse essas três características”. Será mesmo? Em escala nacional, sim. Mas, na história do mundo, um movimento que invade terras e instala no campo uma administração paralela para ir tomando aos poucos o lugar dos órgãos oficiais não é novidade nenhuma. Surgiu na Rússia pré-revolucionária com o nome de soviete. Até a principal diferença que separa o MST dos movimentos sindicais assinala a sua identidade com os sovietes: ele não se compõe só de camponeses, como um sindicato de classe, mas inclui engenheiros, economistas, assessores de imprensa e, last not least, técnicos em guerrilha. Sim, ele não é um órgão de representação profissional. É um braço da estratégia revolucionária e a semente da futura administração rural comunista. Ao lançar o manto da nebulosidade sobre um fenômeno de identidade tão manifesta, o Sr. Stedile açambarca em proveito da estratégia comunista, espertamente, o próprio fato de o comunismo estar fora de moda: desconhecendo tudo da estratégia leninista que lhe parece coisa do passado, o público não poderia reconhecê-la nem mesmo sob o mais tênue e relaxado disfarce, e encontra-se pronto a servi-la quando ela se apresenta sem nome.

É por isso que o Sr. Stedile, após defender as velhas e ortodoxas doutrinas da luta de classes, da destruição do aparelho de Estado burguês, etc. etc., pode, sem corar, negar que é marxista, negar que é leninista e, para cúmulo, negar até mesmo, como o faz com vigor em sua entrevista, que seja um homem de esquerda no sentido mais geral do termo!

“Detestamos rótulos”, afirma ele. “Fazemos uma campanha permanente contra o rótulo”. Mas essa firme determinação inverte-se quando a cola vai para o outro lado. Os inimigos do MST são facilmente catalogados em “neoliberais”, “imperialistas”, “reacionários” etc., sem que isto desperte a rotulofobia do Sr. Stedile. Eu mesmo tive a oportunidade de receber, da parte de militantes do movimento, o carimbo de “neoliberal”, embora minha única participação em entidades que professam essa doutrina tenha sido, precisamente, uma conferência no Instituto Liberal do Rio sob o título “Por que não sou neoliberal”.

Não é preciso dizer que, no são entendimento humano, nem todos os nomes são meros rótulos, catalogações exteriores inadequadas à natureza da coisa. Quando chamamos uma galinha de galinha, um jumento de jumento ou o Sr. Stedile de Sr. Stedile, não estamos rotulando: estamos nomeando. Mas quando o Sr. Stedile, tendo negado peremptoriamente que é esquerdista, logo em seguida se qualifica de “socialista cristão” e mesmo após o galo cantar três vezes não explica que raio de coisa poderia vir a ser um socialismo não-esquerdista, então compreendemos que ele está precisamente se rotulando para esconder por trás do rótulo o verdadeiro nome da coisa; que, em suma, ele prefere antes o mais falseado dos rótulos, quando lhe é útil politicamente, do que o mais apropriado dos nomes, quando lhe é politicamente incômodo.

Í

O sr. Stedile pode ser, no plano pessoal, um homem honesto — honesto com sua esposa, com seus credores, com seus amigos. Nada sei que, como ente biológico e civil, o desabone. Política e intelectualmente, porém, seu discurso é a coisa mais tortuosa, mais mentirosa e mais dissimulada que tem aparecido no cenário nacional. E que sua figura política seja imposta ao público como a imagem por excelência do bom menino, como a encarnação mesma dos “sentimentos nobres” massacrados pelo cínico mundo capitalista, eis aí a prova de que este país vai perdendo, junto com o senso da verdade, todo discernimento moral.

Inédito.

Carta de uma Sem-Nada

Marô de Freitas

GAZETA DO POVO – Curitiba, 21 de março de 1998

Tenho 60 anos e vivi os últimos 12 anos em Colmeia, numa fazenda, estado de Tocantins. Sou casada há 40 anos, meu marido é engenheiro agrônomo, 65 anos. Meu filho que trabalhou conosco até 1995 também é engenheiro agrônomo e tem 34 anos.

Éramos, talvez, a única família razoavelmente educada que morava naquele fim de mundo. A nossa casa era lá, era lá que passávamos as festas em família, lá estavam as nossas árvores, nossas flores, a casinha  da nossa neta. Há 20 anos, periodicamente, dou aulas de arte no exterior (desenho, composição, pintura em porcelana). Assim conciliei a vida do Terceiro Mundo (ou no avesso do Terceiro Mundo) com três ou quatro viagens por ano aos Estados Unidos e Europa. Tenho o prazer de dar aulas a grupos realmente interessados e enfrento o “stress” de ter que explicar a inflação, a destruição da Amazônia, a violência etc. a pessoas que faziam perguntas até por delicadeza. Pareciam preocupadas com uma “very nice person”  “pessoa muito simpática” sofrendo tanto.

Na realidade, não havia sofrimento. Vida dura, sim. Imagine que, em 1986, quando nos mudamos para lá, não havia luz elétrica – a cidade contava apenas com um gerador. Não havia manteiga, frutas e verduras. A não ser as que eram produzidas localmente.

Escrevi um livro sobre pintura de flores e tive que pintar os dez originais em placas de porcelana e transportá-las “molhadas” para serem queimadas em Goiânia, onde havia um forno.

Era uma aventura? Talvez um pouco tarde na vida. Mas o meu marido gostava muito daquilo, do trabalho. Via grandes possibilidades de melhorar aquela região e o rebanho…

Subitamente, no dia 6 de janeiro de 1994, fomos invadidos por um grupo de 48 “sem-terra”, liderados por um empregado nosso, encarregado de tomar conta de um retiro mais distanciado da sede.

Como se vê, a invasão deu-se “pelos fundos”. De bicicleta ou a pé, eles iam até o Retiro da Pompéia, acampavam nas casas ou curral (para que barracas de lona?) e, de lá, perpetravam as barbaridades que só quem as viveu pode avaliar. Impossível imaginar.

Tenho um levantamento das violências de cada mês. Nessa diabólica tática de agir pesadamente uma vez por mês e manter o clima de terror pelo resto dos 30 dias, pode-se detectar a mão de um movimento organizado.

Cito alguns exemplos: meu marido recebeu um tiro no rosto, quatro empregados foram baleados, duas pontes foram queimadas, serraria e casa do serrador totalmente queimada, duas casas de alvenaria destruídas à marretadas, curral queimado até o chão.

Fui apedrejada. Tudo isso em meio a ameaças, tiros nos veículos, matança de gado, derrubada de cercas, fogo na reserva florestal do Ibama.

E daí? Nada aconteceu para acabar com a violência. Mas tudo aconteceu contra os violentados. Mas tudo mesmo!

Algum dia alguém vai procurar saber o que realmente está acontecendo fora das cidades. Talvez a imprensa. É preciso revelar o que existe atrás da “generosidade” e do “heroísmo” do MST e sob a batina protetora da Igreja.

Eu própria só entendi as garras deste movimento quando li na Folha-SP de 9/3/97 uma página inteira com o esquema de organização do MST. Compreendi então todo o absurdo da situação que se abateu sobre nós. Entendi, de repente, os elos entre aquelas coisas misteriosas, o descaso (na melhor das hipóteses) e a perseguição daquela que deveria ser a nossa proteção – a Justiça!!!

… Paranóia? Tenho todas as provas, documentos em cartório, posso mostrar as cicatrizes dessa desgraça que se abateu sobre uma família que apenas queria ser feliz…

Perdi tudo, não tenho mais casa, vivo apertada num apartamentozinho em Goiânia, onde mal posso trabalhar. Meu filho – agrônomo, pós-graduado, fluente em inglês – é agora vendedor de carros. E está feliz. Simplesmente porque escapamos com vida.

Meu casamento de 40 anos acabou. Meu marido, desde que se formou em 1954 na Esalq (Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz, da USP, em Piracicaba) só tinha um sonho: sua fazenda. Não resistiu às agressões e às humilhações. O peso das injustiças desabou todo sobre ele e desenvolveu uma síndrome bipolar (psicose maníaco-depressiva)… Ele me considera “seu fracasso”: não soube reagir, não soube atirar, não soube conservar o que tinha.

Eu que não fui abençoada com nenhum distúrbio – talvez o único meio de alguém se sentir bem neste país – estou tentando me organizar para morar nos Estados Unidos, onde tenho minha reputação como professora de arte. Nossa única saída é sair deste Eldorado…

A razão desta carta? Tenho dois netos, filhos das duas filhas que moram em São Paulo (uma é engenheira, outra é médica). Na cidade grande tudo é violento, mas não é uma violência pessoal, dirigida, como essa que apontaram contra nós. Na cidade, a violência é gratuita, às vezes até sem ódio. A violência contra nós, planejada cuidadosamente para nos atingir e liquidar, resultou de um ressentimento, terrível e aleatório…

Gostaria que meus netos soubessem que a avó não se deixou abater…

Marô de Freitas

Caixa Postal 197, 74001-970, Goiânia, GO.

A mensagem de Viktor Frankl

Olavo de Carvalho

Bravo!, novembro de 1997

No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já tenho uma dúvida: não sei se o médico judeu austríaco Viktor Frankl pertenceu mesmo a este século. Pois ele só viveu para devolver aos homens o que o século XX lhes havia tomado – e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos se orgulham de ser “homens do seu tempo”, alguém muito maior do que o século.

Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a inteligência, a coragem, o amor ao próximo. Mas foi maior ainda naquela dimensão que só Deus pode medir: na fidelidade ao sentido da existência, à missão do ser humano sobre a Terra.

Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração. Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de rancor e amargura. Saiu do inferno de Theresienstadt levando consigo a mais bela mensagem de esperança que a ciência da alma deu aos homens deste século.

O que possibilitou esse milagre singular foi a confluência oportuna de uma decisão pessoal e dos fatos em torno. A decisão pessoal: Frankl entrou no campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação. A obrigação podia ser para com uma fé religiosa: o prisioneiro crente, com os olhos voltados para o julgamento divino, passava por cima das misérias do momento. Podia ser para com uma causa política, social, cultural: as humilhações e tormentos tornavam-se etapas no caminho da vitória. Podia ser, sobretudo, para com um ser humano individual, objeto de amor e cuidados: os que tinham parentes fora do campo eram mantidos vivos pela esperança do reencontro. Qualquer que fosse a missão a ser cumprida, ela transfigurava a situação, infundindo um sentido ao nonsense do presente. Esse senso de dever era a manifestação concreta do amor – o amor pelo qual um homem se liberta da sua prisão externa e interna, indo em direção àquilo que o torna maior que ele mesmo.

O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler – o sentimento de viver uma futilidade absurda.

Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida. Após a libertação, reencontrou também a esposa e a profissão, como diretor do Hospital Policlínico de Viena.

Assim ele registra, no seu livro Man’s Search for Meaning, uma das experiências interiores que o levaram à descoberta do sentido da vida:

“Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a salvação do homem é através do amor e no amor. Compreendi como um homem a quem nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus sofrimentos da maneira correta – de uma maneira honrada -, em tal condição o homem pode, através da contemplação amorosa da imagem que ele traz de sua bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz de compreender as palavras: ‘Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de uma glória infinita’.”

Frankl transformou essa descoberta num conceito científico: o de doenças noogênicas. Noogênico quer dizer “proveniente do espírito”. Além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida: “O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido.”

Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a logoterapia, ou terapia do discurso – um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subterfúgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca do sentido.

Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida, enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.

Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, com a ajuda do terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde dentro, o dever a cumprir.

Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima uniforme, válida para todos – é a obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.

A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela desempenhou e desempenha – a missão que ela cumpre – no panorama da cultura moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana, para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, lingüisticas, etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais – os inimigos da consciência. Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas – por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu. A teoria da logoterapia resistiu bravamente a todas as objeções, sua prática se impôs em inúmeros países como o único tratamento admissível para os casos numerosos em que a alma humana não é oprimida por fantasias infantis mas pela realidade da vida. Por isto mesmo a crítica cultural de Frankl, parte integrante de uma obra onde o médico e o pensador não se separam um momento sequer, tem um alcance mais profundo do que todas as suas concorrentes. Desde seu posto de observação privilegiado, ele pôde enxergar o que nenhum intelectual deste século quis ver: a aliança secreta entre a cultura materialista, progressista, democrática, cientificista, e a barbárie nazista. Aliança, sim: seria apenas uma coincidência que o século mais empenhado em negar nas teorias a autonomia e o valor da consciência também fosse o mais empenhado em criar mecanismos para dirigi-la, oprimi-la e aniquilá-la na prática? Dirigindo-se a um público universitário norte-americano, Viktor Frankl pronunciou estas palavras onde a lucidez se alia a uma coragem intelectual fora do comum:

“Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente.” (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)

Com declarações desse tipo, ele pegava pela goela os orgulhosos intelectuais denunciadores da barbárie e lhes devolvia seu discurso de acusação, desmascarando a futilidade suicida de teorias que não assumem a responsabilidade de suas conseqüências históricas. Pois o mal do mundo não vem só de baixo, das causas econômicas, políticas e militares que a aliança acadêmica do pedantismo com o simplismo consagrou como explicações de tudo. Vem de cima, vem do espírito humano que aceita ou rejeita o sentido da vida e assim determina, às vezes com trágica inconseqüencia, o destino das gerações futuras.

Frankl era judeu, como foram judeus alguns dos criadores daquelas doutrinas materialistas e desumanizantes que prepararam, involuntariamente, o caminho para Auschwitz e Treblinka. Se ele pôde ver o que eles não viram, foi porque permaneceu fiel à liberdade interior que é a velha mensagem do Sentido em busca do homem: “SE ME ACEITAS, Israel, Eu sou o Teu Deus.”

(Publicado na revista Bravo! de novembro de 1997, e reproduzido em “O Imbecil Coletivo II”)

Veja todos os arquivos por ano