Leituras

Carta de Olavo de Carvalho à revista Sui Generis

Rio de Janeiro, 22 de julho de 1998

Revista Sui Generis
A/c Sr. Nelson Feitosa – Diretor de Redação
R. Santa Clara, 307 – Copacabana
Rio de Janeiro RJ
Fax: 021 235 0743

Prezados Senhores,

No exercício do meu direito de resposta, e sem prejuízo de outras providências que a lei me faculte, peço a V. Sas. publicar as seguintes linhas:

Sui Generis reproduziu minhas declarações com razoável fidelidade – o que antigamente era obrigação, mas hoje é mérito. Pelo menos nisso, a repórter Clarisse Pereira não me decepcionou.

Na abertura, porém, o editor acrescentou algumas observações insultuosas, falsas, umas difamatórias, outras também caluniosas, que aliás prejudicam menos a mim do que ao leitor, o qual, militante gay ou não, merece a verdade.

1. Não se dá, em qualquer instituição universitária do Brasil ou do mundo, título acadêmico de “filósofo” e sim apenas o de “bacharel em filosofia” e o de “doutor em filosofia”, que não podem nem pretendem conferir a seu portador o estatuto de filósofo, mas somente o de professor de filosofia em ginásios ou faculdades – subentendendo-se aí distância análoga à que vai de um escritor a um simples professor de português. Em vista disso, e tendo-se dado conta do ridículo em que caíam, há mais de um ano meus detratores já desistiram de lançar sobre mim o improvisado epíteto de “filósofo auto-intitulado” (ou “autonomeado”), de que se socorreram na primeira hora e que não denunciava, enfim, senão o provincianismo mental de seus usuários. Ressuscitá-lo, agora, é falso, sem razão e extemporâneo.

2. O termo mais adequado para dizer o que queriam, na época, teria sido “autoproclamado”, mas nem com isto os infelizes atinaram. A imprecisão vocabular é marca inconfundível de quem fala depressa, sem pensar, movido pela raiva insensata – o que foi o caso deles como agora é o de vocês. Mas, mesmo que àqueles afoitos difamadores tivesse ocorrido o termo preciso, isto de nada lhes adiantaria, porque não encontrariam uma só linha de minha autoria onde eu me proclamasse filósofo. Quem assim começou a me designar foi Jorge Amado, logo seguido de Roberto Campos e de Sebastião Vila Nova, diretor do Instituto Joaquim Nabuco, o qual, na sessão que essa entidade promoveu em minha homenagem em 1o. de maio de 1997, fez ainda questão de sublinhar: “Filósofo, e não apenas professor de filosofia” – distinção que por si bastaria para resolver o caso. Daí por diante essa designação, honrosa mas aliás irrelevante ao exercício de minhas atividades profissionais, tornou-se hábito corrente na imprensa.

3. Mas o mais grave não é isso. Com uma leviandade atroz, Sui Generis atribui ao “meio acadêmico”, assim em geral e anônimo, uma acusação de que eu estaria “em conchavo com a elite do ensino privado no país”. A palavra “conchavo” denota contato subterrâneo para fins não muito lícitos, e seu emprego tem a manifesta intenção de atrair sobre mim suspeitas nebulosas e insinuações malévolas. Saibam vocês ou não, isto é crime. Sendo assim, Sui Generis tem a obrigação de declarar nominalmente de quem partiu a acusação, para que eu possa tomar contra o caluniador as providências judiciais cabíveis. Não havendo designação da fonte, a revista assumirá automaticamente a responsabilidade pela falsa denúncia.

4. Pior ainda, vocês dizem que o entrevistado “carrega a pecha de racista”. Ora, não carrego nem jamais carreguei pecha alguma. Ninguém jamais me chamou de racista, e, se chamasse, seria imediatamente processado por crime de calúnia. Aqui, novamente, Sui Generis esconde-se atrás de anônimos e inexistentes terceiros para lhes atribuir covardemente, com mão de gato, a pecha que ela própria quer lançar sobre mim. Para tornar a coisa ainda mais grave, ninguém, desejando espalhar uma acusação, recorreria a meios tão tortuosos e indiretos, se não soubesse que é falsa. Isto acrescenta ao crime de calúnia o agravante do dolo e a perversidade da má consciência.

5. O emprego do rótulo “homofóbico” mostra também a inequívoca intenção de difamar o entrevistado. “Homofobia” significa horror e repugnância irracionais pela pessoa do gayou da lésbica, coisa de que não dei o menor sinal ao longo de minhas declarações, se duras e incisivas contra uma ideologia, sempre respeitosas e até delicadas no tocante a pessoas e a seus hábitos privados.

Se vocês pretendem desacreditar como fobia e prevenção irracional qualquer argumento contra a ideologia gay, por mais racional e ponderado que seja, então, no ato, desmascaram seu intuito de atemorizar mediante chantagem verbal aquele a quem não podem vencer no campo da argumentação razoável. Os qualificativos com que designam a minha argumentação – “racional, mas não por isso menos homofóbica” – são, nesse contexto, um primor de nonsense, pois a idéia que nasce de considerações racionais não pode, ao mesmo tempo, ser mera expressão de uma fobia irracional.

A distinção entre ser contra a ideologia gay como tal e ser “homofóbico” é clara e patente como a diferença entre não querer comprar um cachorro e ter fobia de cachorros. Se vocês buscam encobri-la com a poeira de uma imprecisão vocabular premeditada, mostram desrespeito ao leitor e à própria causa que defendem. Se, ao contrário, a confusão não é premeditada mas brota da pura e simples raiva que, no atropelo de expressar-se, mete os pés pelas mãos, então, desculpem, mas fóbicos são vocês: são logofóbicos – têm medo e ódio da razão.

6. Logo na primeira frase, vocês já mostram que ou não entendem o que digo ou pretendem impedir que o leitor o entenda. Perguntado se sou de direita, respondi: “Neste país não há ninguém de direita. Se querem que eu fique na direita, fico.” Trata-se, evidentemente, de uma ironia contra as rotulações maniqueístas que nada esclarecem. Como interpretar isso no sentido de que o entrevistado “diz com orgulho que é homem de direita“? Onde é que vocês têm a cabeça? Sua sanha de carimbar não se detém nem mesmo ante a elementar distinção entre sentido direto e oblíquo? Ou, ao contrário, enlouquecidos pelo preconceito, perderam toda sensibilidade lingüística? Fico com esta última hipótese, não só por ser a mais caridosa, mas porque é a mais apta a dar conta de um texto medonhamente escrito, de estilo tatibitate enragé, onde o verbo “vaticinar” aparece como sinônimo de “qualificar”.

7. Quanto à rotulação “vaidoso”, é mero adjetivo solto no ar, que nada diz sobre um indivíduo de cujas qualidades e defeitos pessoais vocês não têm a menor idéia e a propósito das quais teria sido mais honesto não dizer nada. Mas não deixa de ser significativo do estado de espírito de quem o emprega, vindo da parte de um grupo militante que não se contenta em buscar com a modéstia humanamente admissível a satisfação de seus desejos carnais, mas se permite construir, para melhor adorná-los ante o espelho, toda uma ridícula Weltanschauungpseudofilosófica e pseudoteológica. Gays, no mundo, sempre houve, como sempre houve aficionados do álcool, do fumo ou das corridas de cavalos. Mas nenhum deles pensou jamais em fazer de seu gosto pessoal uma nova revelação sinaítica, habilitada a revogar cinco milênios de judaísmo e dois de cristianismo. Para isto, realmente, é preciso mais do que ser simplesmente vaidoso: é preciso uma vaidade inflada até as dimensões de uma obsessão demencial. Por isto não me ofende que o movimento gay me chame de vaidoso, como não me ofenderia que Fidel Castro me chamasse de comunista.

8. Por fim, vocês dizem que sou “verborrágico”. Posso até sê-lo – é doença profissional de quem vive da palavra –, mas jamais chegaria ao cúmulo de preencher centenas de revistas, livros, conferências e congressos, incansavelmente, com a teorização de meus deleites sexuais. E antes de dizer se padeço ou não de diarréia verbal, terão vocês contado o número das acusações que, mediante adjetivos e expressões adjetivas, derramaram num só jato fétido sobre a incauta pessoa que lhes concedeu, por amabilidade, uma entrevista? Direitista, homofóbico, conchavista, verborrágico, polêmico, vaidoso, racista, sofista, pré-kantiano… Talvez vocês não padeçam de verborragia crônica, mas, no momento em que escreveram isso, estavam certamente em crise aguda.

Quando optei por dar à sua repórter explicações minuciosas e didáticas, em vez de respostas lacônicas, não fiz isso por compulsão de falar, mas por simples demonstração de respeito e de boa vontade, que vocês, ao dar-lhe interpretação maliciosamente invertida, provaram não merecer. Doravante, saberei conter meu animus loquendi. Na próxima entrevista que me pedirem, direi uma só palavra. Não a anuncio agora para não estragar o prazer de dizê-la pessoalmente.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

O africanismo de Pierre Verger: uma polêmica

De Marília Tavares para Olavo de Carvalho

9 de julho de 1998

Acabei de enviar essa mensagem a uma lista que freqüento. A questão é que há uma antropóloga com doutorado em religião afro. Chamou minha atenção ela “vender” a idéia dos mitos afro serem lindíssimos, das religiões afro todas serem algo muito rico, ademais ela se preocupa com a possibilidade de essas culturas acabarem, ela computa todos os ganhos e propõe soluções para os impasses, ela coloca na lista textos sobre rituais ou mitos do candomblé e umbanda… Mas quando perguntei o porquê de ainda se sacrificarem animais no ritual de sacralização dos búzios, entre outros, quando quase todas as religiões já colocaram muitos desses sacrifícios em versões mais “light”, recebi uma resposta ofendida, como se eu tivesse dito o maior absurdo, como se a tivesse ofendido em suas crenças… Apesar de que diz que só fala sobre isso como antropóloga. Essa resposta que segue abaixo é em resposta a uma outra pessoa (…) que pega meu gancho (…) e insiste na pergunta mas sob outro prisma, sobre sacrifícios e as tradições, etc. Não coloco a pergunta (…) que está implícita, só a resposta dada pela antropóloga. Achei que o texto que coloquei em resposta se aplica em parte nesse caso de ambigüidade de postura, mesmo não sendo ela uma mãe de santo e, talvez, nem praticante da religião.

De Rita para Marília

Bom, pra não ficar falando antropologuês, lembro só que não podemos avaliar as práticas de uma religião estando fora dela ou comparando com outras, pois não dominamos todos os significados nem os sentidos e qualquer coisa pode nos parecer exótica, aberrante, primitiva, ridícula. Sistemas religiosos são como linguagens. Se eu disser smiaeb e reclamar que você não compreende, o que você me diria?

É complicado, mesmo. 🙂

De Marília para Rita

Essas palavras me fizeram lembrar um artigo que li hoje de manhã:

“(…) No Brasil, que é de fato o único pais do mundo onde as religiões africanas se expandem, a maior parte de seus seguidores já não é constituída de negros e sim de mestiços, e a maior celebridade religiosa que os representa é um branco francês: Pierre Verger. (…) A propósito do sr. Verger, é preciso lembrar que a ambigüidade do seu personagem vai além do simples fato de ser um branco a suprema autoridade da religião negra: o sr. Verger é um ser bifronte, misto de antropólogo e pai-de-santo – uma posição que lhe permite mudar a clave de seu discurso conforme as demandas do momento, ora falando do culto africano com a liberdade de um espectador científico livre e descomprometido, ora com a autoridade de um porta-voz oficial. Essa duplicidade de papéis por sua vez permite que ele desfrute do prestígio da autoridade religiosa sem ter de arcar com a concomitante responsabilidade. Os hierarcas das demais religiões, se recebem a veneração e obediência de seus fiéis, por outro lado têm de responder, perante a sociedade, pelos pontos de sua doutrina que pareçam duvidosos ou extravagantes aos olhos dos não-crentes. (…) Nenhum desses sacerdotes está em posição de furtar-se às cobranças que os de fora possam fazer à sua religião. É precisamente essa a posição que o sr. Verger ocupa na sociedade brasileira. (…) Assim, por exemplo, no seu recente livro Ewé. O Uso das Plantas na Sociedade Yoruba (Salvador, Odebrecht, 1995) ele nos dá várias receitas de mandingas usadas no candomblé para matar pessoas, sem que a ninguém ocorra acusá-lo de pregar uma religião homicida – pois afinal ele está falando como observador científico e não como porta-voz responsável pela crença que prega. É um privilégio que nenhuma autoridade religiosa deste mundo pode invocar. (…) Para piorar as coisas, a nenhuma autoridade religiosa deste mundo é moralmente permitido ensinar a prática de ritos sem que esteja persuadida da eficácia desses ritos. Um rabino não submeterá meninos ao bar-mitzvah, ou um padre os submeterá ao batismo, dizendo-lhes ao mesmo tempo que se trata provavelmente de ritos inócuos, sem eficácia neste mundo ou no outro. Mas o caráter peculiar de sua religião e a posição ainda mais peculiar que dentro dela ocupa permitem que o sr. Verger ensine os ritos homicidas ao mesmo tempo que deixa numa conveniente ambigüidade as questões que uma consciência religiosa sã jamais deixaria de buscar esclarecer: Esses ritos funcionam ou não? São praticados ou não? Pois, se declaradamente não funcionam, sua religião é uma farsa. Se funcionam, é intrinsecamente homicida. Se funcionam e são correntemente praticados, já não se trata somente de uma doutrina homicida, mas de um costume homicida generalizado e legitimado pela religião. Convenhamos que são questões incômodas. Mas por que conceder ao sr. Verger o privilégio de permanecer na indefinição ante essas perguntas, quando as demais autoridades religiosas são constantemente cobradas até mesmo por violências indevidas e sem relação com o dogma – ou mesmo contrárias a ele – que seus correligionários tenham cometido no passado?”

(Olavo de Carvalho, em “A divida dos faraós”, em O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras, Rio de Janeiro: Ed. da Faculdade da Cidade, 1996.)

Ehh…acho complicado mesmo!

Não é?

Abraços

Marília

De Aluizio para Marília

Qual jornal publicou o artigo que está citado na mensagem? Gostaria de lê-lo por inteiro, pois a afirmativa de que Fatumi Verger “e a maior celebridade religiosa que os representa é um branco” no próprio texto apresentado fica esclarecida a impropriedade da afirmação. Conheci Fatumi. Estive duas vezes por bastante número de horas em cada vez o suficiente para tirar minha conclusão: Fatumi era um estudioso sério na forma como estudava todavia enquanto crente ou praticante o fazia com reservas. Aquelas reservas que sua cultura, origem européia e educação igual impunham. Creio que acreditava nos preceitos e fundamentos do candomblé, mas, não creio que tivesse se envolvido com o mesmo ímpeto com que muitos outros indivíduos se envolveram. Notadamente aqueles de origem e cultura diferentes.

Bom final de domingo

Aluizio

De Marília para Rita

Seria possível você comentar os pontos que são equívocos de dados e de análise para nos esclarecer?

Grata,

Marília.

De Rita para Marília

Marília

Warning: é uma lonnnga resposta:Como você pediu, aqui vão meus comentários sobre o texto que você enviou. Não pude mandar ontem porque estava trabalhando no paralelo em outras coisas.

[Segue-se a mensagem, reproduzida abaixo em itálico, com as respostas de Olavo de Carvalho]

Respostas de Olavo de Carvalho

1.

Diz o autor Olavo de Carvalho: “(…) No Brasil, que é de fato o único pais do mundo onde as religiões africanas se expandem…”

Isto não é absolutamente verdade. As religiões africanas vêm se expandindo por todo o mundo, especialmente para Estados Unidos (levadas pelos caribenhos e sul americanos, especialmente brasileiros) e Europa. Já existem terreiros de candomblé e umbanda em Milão, Paris, Frankfurt, Genebra, e em vários estados americanos. Também na América do Sul elas vêm crescendo amplamente. Para confirmar estas informações, vejam-se as pesquisas de Maria Júlia Carozzi, Rita Segato, Reginaldo Prandi, e outros (vou colocar uma bibliografia especializada no meu site e todos poderão pegar lá, pois é extensa). (Olavo, não chama a atenção que todos são brasileiros? O que vejo em enciclopédias internacionais é sobre o crescimento do islamismo) a maior parte de seus seguidores já não é constituída por negros e sim de mestiços,

O problema de se definir quem é negro ou mestiço é clássico. Não se pode dizer que os mulatos e caboclos não são negros ou que são. O fato é que 60% da população brasileira tem ascendência negra. As estatísticas dizem que a maior parte dos adeptos das religiões afro-brasileiras são mulheres, mulatas e negras, de extração social baixa e escolaridade básica. Ver os trabalhos de Prandi, Amaral & Silva, Amaral.

Resposta: D. Rita joga com um duplo sentido da palavra “expansão” e, mais que me confundir, confunde a si mesma. Os caribenhos e sul-americanos que foram para os EUA e a Europa já praticavam os cultos afro nos seus países de origem e simplesmente continuaram a praticá-los, transmitindo-os a seus filhos, nos países aonde foram viver. Isso não é expansão do culto, é simples crescimento demográfico de uma etnia e aumento vertiginoso das taxas de imigração. Nos EUA e na Europa esses cultos continuam, no essencial, limitados a suas comunidades étnicas de origem (elas sim, crescentes) e não conquistam adeptos fora delas num ritmo nem de longe comparável ao que sucede no Brasil, onde amplos setores da classe média e alta sem a mais remota ancestralidade africana (incluindo parcela significativa da intelectualidade acadêmica e da classe governante) se põem cada vez mais sob o guiamento de pais-de-santo. Isto é fenômeno exclusivamente brasileiro (com a possível exceção de Cuba, onde o governo durante algum tempo apoiou discretamente esses cultos para boicotar a Igreja; mas não tenho dados sobre os resultados efetivos dessa política).

O crescimento das religiões afro fora do Brasil é, por assim dizer, “vegetativo”, condicionado ao aumento de populações imigrantes, ao passo que no Brasil é crescimento ativo, tal qual o é, no mundo, o crescimento do Islam, que se expande entre europeus e norte-americanos brancos sem ancestrais muçulmanos.

D. Rita estuda muito, mas não adianta estudar sem inteligência.

2.

“e a maior celebridade religiosa que os representa é um branco francês: Pierre Verger.”

Pierre Verger não é e nem nunca foi considerado uma celebridade religiosa. Sempre foi considerado um pesquisador que respeitava e amava a cultura religiosa afro-brasileira, que o recebeu de braços abertos e lhe deu um cargo honorífico. O fato de ele representar um importante papel na recuperação de informações, na tradução e registro dos elementos culturais e se dispor a discuti-los com pessoas fora da academia terminou por dar a ele um caráter marginal: mal visto pela academia por sua excessiva aproximação com o que era seu objeto de estudo (a religiosidade), e visto com muita desconfiança pelos religiosos, que apesar de reconhecerem o valor do seu trabalho e receberem-no muitas vezes, ressentiam-se de suas entrevistas dizendo que não era um crente, mas um admirador. O Aluízio apontou com clareza o espírito de Verger, a quem também conheci pessoalmente e de quem sei claramente que tinha uma posição de imenso respeito pelo sentimento de Fé, que ele não possuía, mas compreendia e admirava como quem admira uma obra de arte do sentimento humano. Mas ele jamais foi uma celebridade religiosa. Celebridade religiosa foram Mãe Menininha do Gantois, Mãe Senhora, João da Goméia e atualmente, em menor grau, mãe Stela do Opô Afonjá.

Resposta: Novamente, uma confusão do sentido das palavras. Verger é ou não é “uma celebridade religiosa”? Sim e não. É óbvio que no meu texto essa expressão tem um sentido irônico, para refletir a ambigüidade mesma do personagem, que por um lado era uma tremenda força legitimadora a serviço dos cultos afro perante o mundo acadêmico (nesse sentido, uma “celebridade” e não uma “autoridade”, embora na África fosse recebido em muitas tribos quase com honras de chefe de Estado) e, por outro, não podia mesmo ser uma autoridade religiosa “oficial” num culto que não tem hierarquia oficial nenhuma e onde tudo é uma questão de prestígio informal, escorregadia a mais não poder. A própria D. Rita reconhece essa ambigüidade, mas apenas nos seus reflexos exteriores entre os acadêmicos, de um lado, e os religiosos, de outro, como se esse duplo reflexo fosse o fruto de um engano geral e não emanasse da duplicidade de papéis do próprio Verger. Se Verger tinha ou não tinha “fé”, se a tinha às terças, quintas e sábados e não tinha às segundas, quartas e sextas (descansando no domingo como o bom Deus), isso é perfeitamente irrelevante, pois a tentativa de introduzir o conceito de “fé” num culto mágico (onde o que conta, ao menos supostamente, é a atuação objetiva das forças em jogo e não a subjetividade do “crente”, que nesse caso se diria antes um “cliente”) é uma cristianização artificial e ex post facto, sem o menor sentido e, aliás, sem a menor respeitabilidade científica. O que importa é que, perante a academia, Verger era um representante dos cultos afro e, no meio afro (pelo menos quando havia algum acadêmico olhando), era apenas um observador antropológico simpático. É o próprio Monsieur Ouine (de Oui+Non) do romance de Bernanos.

3.

“A propósito do sr. Verger, é preciso lembrar que a ambigüidade do seu personagem vai além do simples fato de ser um branco a suprema autoridade da religião negra: o sr. Verger é um ser bifronte, misto de antropólogo e pai-de-santo – uma posição que lhe permite mudar a clave de seu discurso conforme as demandas do momento, ora falando do culto africano com a liberdade de um espectador científico livre e descomprometido, ora com a autoridade de um porta-voz oficial. Essa duplicidade de papéis por sua vez permite que ele desfrute do prestígio da autoridade religiosa sem ter de arcar com a concomitante responsabilidade.”

Jamais Pierre Verger falou como pai-de-santo. ALGUNS religiosos, ou por menor tradição ou intelectualizados é que tomaram seus trabalhos como “bíblia” do candomblé, coisa que ele jamais se propôs como objetivo. Para se certificar disso, leiam-se todos os trabalhos de Pierre Verger e os comentaristas deste trabalho, entre eles Silva, Prandi, Ferretti, Braga e outros.

Resposta: Santa Misericórdia! Se D. Rita admite que os trabalhos de Verger chegaram a ser tomados como bíblia por “alguns” crentes (quantos? dois? três? dez mil?), isto resulta precisamente em admitir que ele foi aceito como autoridade religiosa dentro dos próprios meios afro, ainda que por ignorantes. E aliás quem julgará a ignorância ou sapiência deles: a acadêmica D. Rita ou o próprio meio religioso que os aceitou como membros, aceitando, por tabela, que seguissem a autoridade de Verger? D. Rita argumenta como um cardeal que dissesse que o bispo Macedo não é autoridade religiosa porque não foi ordenado padre e só é seguido por ignorantes. Ora, autoridade religiosa, por definição, é quem como tal é aceito por uma roda de crentes, grande ou pequena, culta ou inculta. O próprio Jesus Cristo só foi aceito, no início, por uns poucos homens incultos, e certamente não teve de aguardar o beneplácito de cultíssimos cardeais para se tornar autoridade.

4.

“Os hierarcas das demais religiões, se recebem a veneração e obediência de seus fiéis, por outro lado têm de responder, perante a sociedade, pelos pontos de sua doutrina que pareçam duvidosos ou extravagantes aos olhos dos não-crentes. (…) Nenhum desses sacerdotes está em posição de furtar-se às cobranças que os de fora possam fazer à sua religião. É precisamente essa a posição que o sr. Verger ocupa na sociedade brasileira.”

Como Verger não era um hierarca da religião, e sim um etnógrafo que convivia com o grupo estudado, grupo este que bem sabia sobre sua posição, jamais alguém pretendeu cobrar de Verger algo que ele não se propunha como objetivo de vida ou científico. Conseqüentemente, nada poderia lhe ser cobrado senão do ponto de vista acadêmico, e isto sempre foi feito e cobrado muito caro o fato de ele não analisar seus dados e tomar uma posição sobre o papel destes cultos na sociedade brasileira.

Resposta: Conversa mole. Se os livros dele circulavam como “bíblias”, influenciavam religiosamente seus leitores. Por outro lado, os mesmos livros não apareciam ante o mundo acadêmico como meros estudos neutros, mas como apologia e – por que não dizê-lo – como propaganda dos cultos afro, e não deixaram de ser eficazes nesse sentido, como se vê pela ampla adesão de intelectuais e acadêmicos a esses cultos.

Assim, Verger, pela sua atuação prática, tinha força de autoridade, prestígio de autoridade, mas, como essa autoridade ficava implícita, ele podia a qualquer momento isentar-se da correspondente responsabilidade (ou ser dela isentado por solícitos admiradores como D. Rita).

5.

Também não é verdade que os sacerdotes de várias religiões não se furtem a responder sobre dogmas religiosos. TODOS fazem isto quando sabem que as questões são polemicas.

Resposta: No cristianismo e no judaísmo a apologética, com sua componente polêmica essencial, é uma das partes mais importantes da formação do sacerdote, e no Islam (onde não há sacerdócio formal), ela é obrigação estrita de todo crente. A polêmica com os descrentes e com os fiéis de outras religiões constitui – para nos atermos só aos textos clássicos do cristianismo – pelo menos uma quarta parte dos trezentos volumes (de mil páginas cada) da Patrística Latina e dos quatrocentos da Grega. Todas as Sumas católicas nada fazem senão reproduzir polêmicas correntes da época, e todo o imenso desenvolvimento da dialética como arte da discussão, entre Aristóteles e Hegel, foi devido exclusivamente ao clero católico, o que seria realmente um esforço inexplicável se tudo fosse para fugir das polêmicas. Mais modernamente, os jesuítas se tornaram célebres por sua habilidade argumentativa, e não há uma só objeção ao dogma católico que não tenha produzido centenas de livros e folhetos jesuíticos em resposta. Compreendo que D. Rita, com a cabeça cheia de antropologia, não tenha tido tempo para conhecer as religiões que ela julga provavelmente serem “de brancos” (talvez também de imperialistas), e se limite a projetar sobre elas os preconceitos do meio mais cretino, inculto e provinciano que existe, que é o da ciência social acadêmica (sobretudo brasileira).

Não é curioso que uma acadêmica ocidental, sem raízes africanas, saiba tanto sobre os cultos afro e ignore a sua tradição própria tradição de origem ao ponto de imaginar que os padres fogem de polêmicas, quando na verdade não fizeram senão polemizar por dois mil anos?

E não é curioso que esses antropólogos estudem tão profundamente uma só religião – justamente uma das mais estranhas ao seu meio de origem –, e ignorem tão profundamente todas as demais (exceto, eventualmente, as que foram postas na moda pela New Age)? Não é inevitável que, por falta de pontos de comparação, percam totalmente o senso das proporções e acabem recorrendo a conceitos inadequados a seu objeto, como por exemplo o conceito de “fé” aplicado a um culto mágico?

6.

E dizer que Pierre Verger ocupa uma posição na sociedade brasileira é um exagero, dado que a imensa maioria dos brasileiros desconhece quem ele seja. Talvez ele tenha um papel importante para o candomblé, e em muito menor grau a umbanda, por seu trabalho etnográfico.

Resposta: D. Rita viu quantas páginas inteiras de jornais e revistas prantearam a morte desse ilustre desconhecido? Viu quantos livros de arte ele, em vida, publicou em edições caríssimas financiadas por empresas milionárias? Viu quantas celebridades estrangeiras foram render-lhe homenagens em vida e no funeral? E note: todos os que falaram sobre ele jamais o apresentaram como um puro cientista, mas sempre como alguém que personificava o espírito mesmo da cultura afro.

Negar que Verger fosse uma celebridade e que essa celebridade fosse um emblema (ao menos publicitário e legitimador) do africanismo no Brasil é mais que um erro: é uma mentira tola.

7.

“Assim, por exemplo, no seu recente livro Ewé. O Uso das Plantas na Sociedade Yoruba (Salvador, Odebrecht, 1995) ele nos dá várias receitas de mandingas usadas no candomblé para matar pessoas, sem que a ninguém ocorra acusá-lo de pregar uma religião homicida – pois afinal ele está falando como observador científico e não como porta-voz responsável pela crença que prega. É um privilégio que nenhuma autoridade religiosa deste mundo pode invocar.”

Do ponto de vista da antropologia, ciência que Pierre Verger pretendia praticar (os antropólogos nem sempre aceitam o trabalho de Verger como antropologia e sim como etnografia (descrição detalhada e sem valores pré-estabelecidos de uma prática ou um fenômeno cultural), porque ele não faz a tal análise a que me referi acima, ele certamente não está fazendo proselitismo do assassinato apenas porque mostra em seus livros que existe em magia uma receita para matar pessoas. Do ponto de vista científico, que é o ponto de vista de Verger, nenhuma fórmula mágica será capaz de matar uma pessoa. As pessoas morrem de doenças (físicas ou psicossomáticas) e acidentes, e jamais pela interferência de qualquer elemento sobrenatural ou vontade divina. E como ele não escrevia para religiosos e sim para a academia, este problema não deveria existir.

Resposta: Se um apologista diz que numa determinada religião há ritos e receitas para matar pessoas e que essa religião é uma coisa linda, que é que se pode concluir senão que, do ponto de vista dessa linda religião e desse lindo apologista matar pessoas por meio de ritos e receitas é coisa normal e louvável? Não há como fugir disso, por mais piruetas verbais que se dêem.

8.

Apenas, Pierre Verger esqueceu que numa sociedade urbana, pluricultural, cosmopolita, seus trabalhos estariam em livrarias, e tanto acadêmicos como não acadêmicos teriam acesso a seus trabalhos, lendo-os e interpretando-os como bem quisessem. (…) Mas como Verger era um fotógrafo, mesmo seus textos têm esta preocupação com o detalhe, com a minúcia, muitas vezes vistas pelos pais e mães de santo como uma traição de Verger…

Resposta: Ou seja: o único erro do Sr. Verger foi dar com a língua nos dentes, revelando aos profanos um segredo homicida que deveria ficar restrito ao círculo de iniciados.

9.

“Para piorar as coisas, a nenhuma autoridade religiosa deste mundo é moralmente permitido ensinar a prática de ritos sem que esteja persuadida da eficácia desses ritos.”

Mas Verger não acreditava que estava ensinando ritos. Estava descrevendo. Quem vai aprender nos livros dele é porque não sabe nada e deveria ter aprendido com seus mais velhos.

Resposta: Mas esses “mais velhos” teriam de ser tremendamente hipócritas para, em público, dar um cargo honorífico ao sr. Verger e, em particular, advertir a seus filhos para que não acreditassem numa palavra do ensinamento dele, não é verdade? De modo que, das duas uma: ou reconheceram sinceramente que o Sr. Verger tinha alguma autoridade para falar em nome da sua religião ou eram todos uns embrulhões como ele. Tertium non datur.

10.

“Um rabino não submeterá meninos ao bar-mitzvah, ou um padre os submeterá ao batismo, dizendo-lhes ao mesmo tempo que se trata provavelmente de ritos inócuos, sem eficácia neste mundo ou no outro.”

Certamente. Mas Verger, não era um sacerdote. O Sr. Olavo se equivoca novamente, tomando como premissa, penso, o fato de Pierre Verger ter recebido o oye (cargo) de Oju Obá depois que estudou o jogo de búzios. Esta foi a maneira que o candomblé encontrou para submeter Verger ao duplo código, exigindo de modo sutil, que ele se comprometesse minimamente com a religião. O que ele se recusou a fazer, deixando bastante claro seu respeito e admiração, mas sua posição observador e não de adepto.

Resposta: O motivo político, oportunista ou maquiavélico que levou os candomblezeiros a dar o cargo ao Sr. Pierre Verger é absolutamente irrelevante, tal como é irrelevante, para a legitimidade do cargo, que um sujeito seja nomeado cardeal por ser um santo ou por ser sobrinho do prefeito. Se ao mesmo tempo Verger, continuando a fazer propaganda do candomblé, se recusava a assumir uma responsabilidade explícita, isto só confirma o que eu disse: era um homem de dupla face, o bilinguis maledictus de que fala o Evangelho.

11.

“Mas o caráter peculiar de sua religião e a posição ainda mais peculiar que dentro dela ocupa permitem que o sr. Verger ensine os ritos homicidas ao mesmo tempo que deixa numa conveniente ambigüidade as questões que uma consciência religiosa sã jamais deixaria de buscar esclarecer: Esses ritos funcionam ou não? São praticados ou não?

Novo equívoco. Estas perguntas não se colocam pra um cientista. Se funcionam ou não funcionam a partir da fórmula não é importante, pois se tem como premissa de que são meras abstrações rituais, onde o desejo de morte do outro é mais importante que a fórmula.. O importante é que se acredite que funcione. Todo o sistema de relações vai mudar a partir da idéia que se tenha de que é possível matar de longe. O mesmo para se são praticados ou não.

RespostaBem sei que os antropólogos pensam assim, mas o fato de pensarem assim torna ilegítimo o ponto-de-vista antropológico e reduz a antropologia à pseudo-ciência que ela jamais deixou de ser. Dizer que a eficácia mortífera de um instrumento qualquer é irrelevante para o seu estudo, que o que importa é a “função social” da crença nessa eficácia, eis um pressuposto absurdo e pueril que os antropólogos aceitam como um dogma, sem nem pensar na enormidade do que estão dizendo. Pois, se a eficácia do instrumento é objetivamente comprovada, o motivo de crer na sua eficácia é um; e, se não é jamais comprovada, o motivo é outro completamente diverso. Acreditar que essas duas “crenças” possam ter numa cultura um papel idêntico é tapar o sol com a peneira.

Curiosamente, os mesmos antropólogos que proclamam a identidade funcional do homicídio e do mero desejo de matar são os primeiros a denunciar como violência repressiva injusta os processos contra as bruxas na Idade Média, alegando que a intenção mortífera das bruxarias era apenas uma ilusão inofensiva.

De um ponto de vista mais geral, tive recentemente, no New Europe College de Bucareste, uma troca de idéias com o Prof. Jacques Julliard, um estudioso de religiões da Universidade de Paris, o qual não teve remédio senão concordar com as minhas observações, que transcrevo a seguir:

Pour plus kantien qu’on se veuille, les réligions ne sont pas que des expressions du désir et du sentiment. Elles ont des doctrines qui portent sur la réalité et qui font des jugements sur le vrai et le faux. Quelques uns de ces jugements concernent des realités d’ordre supra-sensible que la tradition kantienne jamais reniée par l’establishmentuniversitaire a quelque raison de mettre au-delà de nos moyens de vérification, mais quelques autres concernent des faits – ou supposés tels –, par exemple que les armées du Pharaoh ont eté englouties par la mer, que Jésus-Christ a guéri des lépreux ou qu’il a multiplié des pains, que tel saint a fait tel miracle à tel endroit ou qu’un homme illettré a écrit en langue très cultivée le plus beau livre de la littérature arabe. La verité des jugements de ce dernier tipe, qu’il n’est pas impossible d’établir du moins en théorie par des moyens purement humains, est censée valoir comme indice, si ce n’est pas comme preuve, des jugements du premier type, c’est à dire, comme des renforcéments apportés à la foi par la miséricorde divine. La connexion inséparable de ces deux types de verités est même quelque chose d’essentiel et d’omniprésent en toutes les grandes réligions. Depouillées de leur prétention à dire la vérité, et surtout de cette solidarité mutuelle des verités visibles et invisibles, les réligions ne deviennent que des écritures indéchifrables, des esthétismes muets que chacun est libre d’interpreter à son aise, c’est à dire, elles n’ont plus de sens que projéctif et, à vrai dire, hallucinatoire. C’est comme si on avait la prétention d’expliquer scientifiquement la symptomatologie paranoïaque d’un homme qui s’affirme persecuté pour un chien sans nous demander le moins du monde s’il-y-a où s’il-n’y-a pas un chien quelconque derrière lui.

Cependant, il est un fait incontestable que tout l’approche moderne et soi disant scientifique des réligions, quand il ne nie pas tout d’emblée et sans la moindre discussion la verité de leurs doctrines, commence du moins pour faire abstraction de leur vérité ou fausseté et pour ne les étudier “qu’en tant que phénomènes sociaux” (où historiques, anthropologiques, sémiotiques, etc.), comme si leur phenomenalité même n’était pas celle d’une doctrine qui se présente comme vraie; comme si des affirmations coupées de toute rélation avec leur objet pouvaient encore être “comprises” si ce n’est que comme des pures formes vides. On parle donc de croyance réligieuse, de rites réligieux, de code moral réligieux, de symbolisme réligieux, comme si tout cela était inventé à propos de rien et d’une façon complètement indifférente aux objets spirituels et matériels qui en sont le contenu intentionnel. Il est presque inévitable qu’une telle façon d’envisager la réligion finisse pour en faire un schème vide qui peut être transposé et utilisé en profit de quelque doctrine que ce soit. Sous cet aspect, l’étude prétendument scientifique des réligions est, par un côté, une succession d’éssais pour fuir le noyau de son sujet, et, d’un autre côté, il est un instrument d’adaptation des extériorités de la réligion aux bésoins de doctrines non-réligieuses, c’est à dire, il est une machine à produire des “réligions de substitution”. La question que je vous pose est partant celle-ci: Comment des sciences tellement conçues peuvent expliquer le phénomène des réligions de substitution? Est-ce que l’intélligence de nos contemporains a réussi à produire ce prodige de petitio principii qui sérait une science capable de déduire de sa propre existence la nature de son objet?

12.

“Pois, se declaradamente não funcionam, sua religião é uma farsa. Se funcionam, é intrinsecamente homicida. Se funcionam e são correntemente praticados, já não se trata somente de uma doutrina homicida, mas de um costume homicida generalizado e legitimado pela religião.”

Você nota que todo o problema dele é que ele ACREDITA que se a fórmula funcionar os que lêem os livros vão sair matando todo mundo e a culpa é do Verger?

Resposta: Se eu acreditasse estritamente nessa hipótese ela não seria hipótese e não teria sido escrita com a conjunção condicional “se”. E uso a mesma conjunção para dizer: Se D. Rita não fosse uma pessoa tremendamente confusa – como em geral o são os cientistas sociais –, ela se absteria de buscar compensação para a fragilidade de seus argumentos ocultando-se por trás de diagnósticos conjeturais sobre as pretensas intenções ocultas de seu adversário.

13.

Que se ele conhecesse o candomblé, jamais poderia supor que é uma religião homicida, senão com o malicioso intuito de ver nela algo demoníaco, como a igreja católica sempre fez, os protestantes e etc. por não compreenderem e não se darem o trabalho de compreender o pensamento destas religiões? Elas, pelo contrário, são religiões de vida. No candomblé não existe pecado e não é necessário morrer pra ser feliz.”

Resposta: Precisamente: as religiões “da vida” são precisamente aquelas onde a violência ritual contra seres humanos é um costume estabelecido. Sugiro a D. Rita que, em vez de ficar lendo dezenas de antropologuinhos de vigésimo time, leia logo René Girard e tire essa dúvida para sempre. A bibliografia não é extensa: bastam La Violence et le Sacré, Le Bouc Emissaire Choses Cachées depuis la Fondation du Monde.

14.

“Convenhamos que são questões incômodas. Mas por que conceder ao sr. Verger o privilégio de permanecer na indefinição ante essas perguntas, quando as demais autoridades religiosas são constantemente cobradas até mesmo por violências indevidas e sem relação com o dogma – ou mesmo contrárias a ele – que seus correligionários tenham cometido no passado?” (Olavo de Carvalho, em “A divida dos faraós”, em O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras)

Pois então. Verger nunca foi uma autoridade religiosa. Talvez apenas do ponto de vista de algumas pessoas como o Sr. Olavo. Logo, todo o texto é um grande equívoco ao pedir explicações que Verger não deve e nunca deveu e que agora, depois de morto, jamais dará. Gostaria apenas de entender por que o texto se chama “A dívida dos faraós”, pois nada vi nele que justificasse tal título.

Resposta: O texto chama-se “A dívida dos faraós” porque diz logo de cara o seguinte: “Movidos pela oratória de intelectuais esquizofrênicos, os negros agora exigem uma indenização dos bisnetos de seus antigos senhores, mas ao mesmo tempo gabam-se de ser descendentes dos faraós, que escravizaram dezenas de povos durante quinze séculos. Não vejo como poderão escapar da pergunta: — Por que vocês não pagam primeiro o que devem aos judeus?” Não vejo como explicar isso mais claro, mas talvez D. Rita, de tanto estudar antropologia, não tivesse tempo de ler a Bíblia para saber que os judeus foram escravos dos egípcios.

Neuroses do Leste Europeu

por Andrei Pleshu

Ministro das Relações Exteriores da Romênia
Diretor do New Europe College de Bucareste

15 de junho de 1998

Tradução de Pedro Sette Câmara e Olavo de Carvalho

 

Andrei Pleshu

Andrei Pleshu é, no ambiente rígido e artificial da diplomacia mundial, algo como a presença solar de uma criança num asilo de velhos. A inteligência prodigiosa, a cultura, vivacidade, a sinceridade, o inesgotável senso de humor, o tom direto e franco com que diz o que ninguém diz, já fizeram desse representante de um país pequeno e marginal o centro natural de muitos encontros internacionais de ministros de Estado. Famoso e respeitado como intelectual desde antes de assumir o Ministério das Relações Exteriores, Pleshu é autor de livros onde a profundidade da meditação filosófica transparece através de um estilo acentuadamente poético de escrever. Nas conversações pessoais, esse homem volumoso com barba e voz de profeta passa com a maior naturalidade de uma discussão sobre a metafísica de Lucian Blaga às piadas brasileiras de papagaio, o único item que posso me gabar de ter acrescentado à sua erudição. A conferência “Algumas Neuroses do Leste” foi pronunciada em 15 de junho de 1998 no Stifteverband für die deutsche Wissenschaft em Wiesbaden e publicada no Romanian Journal of International Affairs, vol. IV, Special Issue 1, 1998. — O. de C.

Um dos passatempos prediletos dos intelectuais é a neurose. Por neurose entendo a capacidade de descobrir em qualquer situação um componente irritante, uma pitada de veneno. Todo intelectual verdadeiro tem a vocação para a insatisfação, o talento de sentir-se mal. Não faz sentido, agora, ficar perguntando se sempre foi assim. O que é certo é que é assim na era moderna. Nos antigos países comunistas, a neurose intelectual tem uma sintomatologia específica, da qual posso falar com alguma competência, não na condição de analista distanciado, mas de paciente crônico. O curioso é que a grande virada de 1989 intensificou as neuroses, em vez de curá-las. Antes, as frentes eram bem definidas: de um lado, o poder totalitário; de outro, o intelectual resistente. De um lado, os campos de concentração socialistas enquanto variante mundana do Inferno; de outro, o “mundo livre” enquanto variante mundana do Paraíso. Não havia nuances, e onde não há nuances a neurose está sob controle. Porém, desde 1989 vimo-nos sufocados sob uma multidão de nuances. As liberdades adquiridas anestesiam o sentimento de fatalidade, estimulando, ao contrário, a euforia do possível. O possível significa a oportunidade de escolher. E quando um intelectual tem de escolher alguma coisa, aí a neurose está por perto.

Primeiro, descobrimos que, se o universo totalitário tinha sido nosso grande infortúnio, nosso drama histórico, tínhamos pelo menos conseguido nos adaptar: ele era para nós uma face do destino e um fato da vida. Do nosso destino, da nossa vida diária. Em outras palavras, identificávamo-nos com aquilo que vivíamos, como você se identifica com a sua dor de dentes, com a sua insônia, com o seu instinto de sobrevivência. Isto é o que explica a existência de saudosistas, isto é, daqueles que falam da experiência da ditadura no mesmo tom em que nossos avós falam da guerra, da prisão ou da miséria: as más recordações misturavam-se suavemente com uma espécie de consciência heróica e com a satisfação de tê-las superado. Mais ainda, elas eram a substância e o pano-de-fundo da nossa juventude. Movíamo-nos à vontade num ambiente adstringente, que tonificava nosso sentimento vital. Então a resistência, mais ou menos eficiente, mais ou menos ilusória, era em si mesma uma volúpia. Em suma, você podia viver e enganar a si mesmo com a idéia de que tinha uma vida difícil mas interessante. No entanto, agora, depois da “grande mudança”, você é obrigado a descobrir o lado sombrio da liberdade (geralmente chamado “problemas de transição”). É o tédio que vem de não ser mais incomodado pela censura, de ter perdido o “inimigo” tradicional; o tédio que vem da banalidade das viagens, da multiplicação de tentações, de mistura com a falta de recursos — que vem, enfim, de todas aqueles inconvenientes que normalmente acompanham os sonhos que viram realidade. A normalização é soporífera. Decepcionante. O que Timothy Garton Ash chamava de “os benefícios da adversidade”, a utilidade da perseguição, cai no esquecimento. Em lugar dela, agora você tem de descobrir as inconveniências da escolha e da responsabilidade. Os intelectuais confrontam-se com um novo dilema que produz novas neuroses. Quê devem fazer? Aproveitar a liberdade para finalmente fazer o que cada um quer ou adiar a realização das vocações para poder apoiar o esforço geral de reconstrução? Obviamente, qualquer das decisões é logo sentida como lamentável. O intelectual que fica à margem desse processo é tomado de culpa moral, e aquele que decide participar descobre a promiscuidade da política e a precariedade do seu talento pragmático. Ambos passam a ter insônia. O demônio cívico entra em conflito com o demônio espiritual. Qualquer tentativa de reconciliá-los seria suspeita de ingenuidade ou vaidade. Em outras palavras: ao invocar a necessidade de uma moralização da política ou o dever dos intelectuais para com a sociedade, a gente acaba caindo, no primeiro caso, numa inadequação utópica; e, no segundo, numa ambição hipócrita sedenta dos álibis mais nobres para um apetite carreirista dos mais banais.

No que diz respeito ao novo mundo que se abre diante do ex-campo de concentração socialista, não há dúvidas de que está cheio de virtudes e possibilidades tentadoras, mas sua constituição é fundamentalmente diferente do que tínhamos em mente. É um mundo melhor, mas é diferente do que imaginávamos. E não é ou não parece ser “melhor” em todos os aspectos. De qualquer modo, a relação entre o nosso mundo, ainda tonto com cinco décadas de totalitarismo, e o mundo confortavelmente instalado da Europa Ocidental, um mundo para o qual a democracia, o papel da lei e a prosperidade estão presentes diariamente, ainda não se consolidou da melhor maneira. Para cada um desses dois mundos, o “outro” é um apinhado de banalidades, uma mistura de falsas representações — incluindo vários Wunschvorstellungen (1) —, preconceitos e ignorância. A situação nos recorda o começo de um texto de Unamuno que diz que, quando Pedro e Juán conversam, na realidade há pelo menos seis pessoas conversando: o Pedro real e o Juán real, a imagem que Pedro faz de si mesmo e a imagem que Juán faz de si mesmo, e a imagem que Pedro faz de Juán e a imagem que Juán faz de Pedro. É isto o que acontece quando a Europa Oriental e a Europa Ocidental se encaram. Somos propensos a achar que o Ocidente é a solução absoluta de todas as nossas frustrações, o róseo inventário do que precisamos: liberdade, segurança, justiça e bem-estar social. Eventualmente admitimos que a perfeição não existe, que mesmo no Ocidente há alguns problemas, mas, em geral, qualquer tentativa de diminuir ou questionar o sucesso capitalista nos irrita, por nos fazer lembrar a retórica agressiva e deformante da ideologia partidária que distorceu nosso raciocínio durante décadas inteiras. Neste contexto, é inevitável que o menor desapontamento nos atire para os extremos. Quando a Terra dos Sonhos perde um pouco sua cor, quando rugas aparecem no rosto do anjo, o sonhador fica furioso. O Ocidente torna-se uma coisa satânica — o primo rico e impiedoso, o desumano a uto-satisfeito, o culpado por excelência. Aquele que nos entregou aos comunistas em 1945, e que agora nos examina tão detalhadamente com sua lente de aumento, que nos submete a testes desonrosos e nos trata com condescendência.

Por sua vez, o Ocidente começou tendo pena de nós (no tempo em que éramos fornecedores de sofrimento e dissidências), depois passou, no fim de 1989, por um breve episódio de entusiasmo fraterno (éramos heróis, estávamos rompendo as correntes, fazendo revoluções de sangue ou de veludo) e terminou por mostrar um ar polidamente constrangido com a nossa melancolia, a nossa impotência e o nosso atraso. O Oriente é o primo pobre e fracassado, além de cheio de pretensões. Ele não chega a ser um alter ego que falhou, mas é antes um aborto inútil. Aquele que precisa de ajuda sempre acaba ganhando ares antipáticos. O cidadão dos países “desenvolvidos” descobre, com alguma apreensão, que para “normalizar” a situação na Europa Oriental ele tem de abdicar de uma parte da sua própria normalidade. Por que ele deveria fazer isto?

Indubitavelmente, tanto a utopia quanto o ressentimento, tanto a pena quanto a raiva são reações inadequadas, que provavelmente só contribuirão para falsear a verdade dos dois mundos e impedir sua reunificação harmoniosa. O que a História, depois de 1989, trouxe de novo a esta relação? Para tornar as coisas mais simples, eu diria que passamos da inexistência de passaportes para a inexistência de vistos. Antes, o “mundo livre” estava pronto para receber você, mas o seu mundo, o “campo de concentração socialista” não deixava você sair, ou, se deixava, o fazia de maneira difícil, sob condições aviltantes. Agora, o seu mundo deixa você sair quando quiser. Ganhamos um dos direitos humanos fundamentais: o direito de ir e vir. Mas temos problemas com o mundo livre que, de repente, hesita em nos receber. O imigrante da Europa Oriental é uma calamidade. Não quero que pensem que estou reclamando de alguma coisa ou que não entendo os argumentos das embaixadas e consulados ocidentais. Quero somente mostrar que, às vezes, a “grande mudança” pela qual passamos consiste, ao menos na superfície, na troca de um bloqueio antigo por um novo. Um pouco melhor – porque é somente nosso atestado de identidade que está sendo censurado e não a identidade mesma. Nossa liberdade não está sendo suprimida: está sendo “dosada”.

Existe, no entanto, uma variante positiva a estimular as relações entre Oriente e Ocidente: não a reticência consular, mas a corrida para a integração européia, o restabelecimento dos padrões comuns. Tendo sido deixados, graças à suspensão comunista, fora das tendências gerais, agora nos é oferecida a chance de recuperar o horizonte de entrada na grande família da qual fomos excluídos arbitrariamente, tanto no plano político quanto no econômico, mas da qual nunca fomos excluídos geograficamente, historicamente e culturalmente. O problema da nossa integração européia coloca duas grandes questões: “Em quanto tempo?” e “Segundo qual critério?”. O ritmo depende, em grande parte, de nós. Mas e o critério? A primeira questão está diretamente ligada à nossa capacidade vital. Nós provaremos, ou não, que podemos ser atuantes, que ainda temos energia para nos recompor. O único inconveniente é a constante ameaça de um ciclo vicioso: não podemos nos integrar a menos que sejamos ajudados e não podemos ser ajudados a menos que pareçamos integrados. O problema não deixa de ser, de certa forma, de natureza técnica. Mas a segunda questão — a do critério — é pura metafísica. Porque o critério de integração depende da imagem que temos do espaço no qual desejamos nos integrar. A questão que se coloca, portanto, é nem mais nem menos que: “Que é a Europa?”. Espero não atiçar sua curiosidade ao ponto de fazer vocês esperarem por uma resposta. Não sou capaz de dizer o que vem a ser a Europa e, na verdade, não quero tentar descobrir isso agora. Mas posso dizer qual é a cara dela para aqueles que querem entrar. Mais precisamente, o quê em sua face nos parece um “modelo”, um “objetivo”, e uma exigência definitiva.

Vista de fora, a Europa é, antes de tudo, um lugar onde se fala amplamente o inglês: o acesso a este lugar impõe ao candidato um screening, é desejável que o processo de integração tenha um follow-up e que este processo seja all-inclusive. O candidato é assistido por certas catch-up facilities, e por um programa de tipo know-how. Apesar disso, nesta gigantesca anglofonia, flutua também um prestigioso termo francês: acquis communautaire. Ele se refere àquilo que os países desenvolvidos têm em comum, o resultado de séculos de evolução econômica, social e política: a riqueza da comunidade, a quintessência do progresso humano, a fundação da civilização pós-moderna – algo que vai das leis e instituições até o tamanho ideal dos ovos e tomates. Este é o horizonte que deve ser visado por todos os países candidatos. Conseqüentemente, o candidato é confrontado com um grande número de exigências, incluindo algumas q ue têm uma importância privilegiada: ecologia, direitos humanos, respeito pelas minorias, suspensão da discriminação étnica e sexual. Uma vez desenhada, esta mirífica paisagem termina por criar os sonhos, as frustrações e perplexidades do contemplador “não-integrado”. Primeiro, ele tem um problema de velocidade: como “apreender” tantos esplendores num tempo tão curto, com um painel de instrumentos tão pequeno e com uma estrutura psíquica convalescente. O fato é que você é confrontado com dúzias de prioridades a cada segundo. Tudo é prioridade. Em outras palavras, você tem somente prioridades. Nestas circustâncias, você só consegue ficar paralisado e gaguejar. Você tem de resolver ao mesmo tempo os buracos nas ruas, o vácuo legislativo, a poluição da água, a inflação, a pobreza, os direitos dos ho mossexuais, a proibição da propaganda de cigarros, a renovação das prisões, o que fazer com o lixo público, com o confessionalismo estreito, com a discriminação das mulheres, com a crise médica, a precariedade dos serviços, a reforma da polícia, a limpeza dos trens, a socialização dos prisioneiros, a educação dos ciganos, o renomeação das ruas, o financiamento para o teatro, a proteção aos animais, a preparação de novos passaportes, a modernização dos banheiros, a privatização, a reestruturação, o reaquecimento da economia, a reforma moral, a renovação de pessoal, a redefinição do sistema de educação, a troca de embaixadores, a consolidação da sociedade civil, o estímulo às ONGs, a renovação de hospitais, os menores abandonados, os pacientes de AIDS, as novas redes de máfia e muitas outras coisas. Tudo é obrigatório, tudo é urgente. Nesta pressa que não tolera hierarquias, cronogramas pacientes ou atrasos, surge inevitavelmente um problema de mentalidade. Confundido pelas cercas que tem de pular, o homem comum desenvolve uma espécie de indigestão ideológica. Ele não entende mais o que se espera dele, e se sente ameaçado, incompreendido, brutalizado. A Europa adquire, em sua mente, as aterrorizantes dimensões de um Obersturmbandführer, e a integração européia se lhe apresenta como uma corrida exaustiva. Dizem-lhe que a discriminação é má e ele se sente discriminado. Dizem-lhe que a tolerância é boa e ele se sente julgado com intolerância. Ele começa a associar, neuroticamente, princípios e valores heterogêneos. A exigência geral aponta para o nivelamento dos critérios. Tudo é igualmente importante. Ser europeu equivale a adotar uma plumagem multicolorida na qual as idéias, o dinheiro, os hábitos íntimos, as convicções religiosas e a qualidade da cerveja estão no mesmo plano. Surgem inocentes e cômicos malentendidos.

Quando o Parlamento romeno começou a discutir a abolição das leis que criminalizavam o homossexualismo, muitos camponeses, padres e comerciantes pensaram que o que estava sendo proposto era a legalização, isto é, a obrigatoriedade do homossexualismo… De qualquer modo, é difícil explicar ao desnorteado cidadão da transição que a entrada na Europa está diretamente ligada às suas preferências sexuais, ou à sua posição em relação às opções eróticas dos outros. E mesmo o cidadão mais educado não está livre de certas confusões. Ele achava que estava livre de tabus, mas descobre que tem de assumir novos tabus. Vejamos um exemplo: antes de 1989, era proibido ao intelectual romeno ler Mircea Eliade, porque a censura comunista proibia qualquer leitura de natureza religiosa. Agora, há uma tendência a que Mircea Eliade caia de novo sob suspeita, ficando difícil de citar ou mesmo até de ler, porque desta vez são trazidas à tona as orientações de extrema-direita que ele teve em sua juventude. Por outro lado, países que condenam severamente a inércia comunista de alguns governos do leste europeu toleram, ou quase mesmo aprovam, a reabilitação ou pelo menos a “desculpabilização” de alguns compromissos tipicamente comunistas de alguns de seus cidadãos. Confrontados com as dificuldades do ajustamento, sendo que citamos somente aquelas mais à mão, o homem do leste europeu está sempre sob a ameaça de uma depressão crônica. O que é, afinal, a Europa? Como Hippias em um dos diálogos da juventude de Platão, ele procura, incerto, por uma definição que decorra daquilo que a Europa mesma oferece a ele. “O que é o belo?”, pergunta-se o herói platônico. O belo é uma bela garota, responde primeiramente Hippias, misturando o atributo individual com o conceito. É assim que o aspirante à Europa pode se enganar: ele pode tomar um exemplo como uma definição, dizendo, por exemplo, “A Europa é um país europeu, como a França, ou a Alemanha, ou a Itália”. Provocado por Sócrates, Hippias continua suas explorações: o belo é o esplendor da matéria, do ouro. Um passo além, o belo é a harmonização, a funcionalidade, o cumprimento de um destino, o bem ou aquilo que provoca prazer desinteressado . Provocado pela União Européia, nosso homem do leste pode, ele também, arriscar uma série crescente de definições: a Europa é o dinheiro único, o mercado comum, a estabilidade de um modo de viver, o equilíbrio de direitos e deveres, a comunhão nos mesmos valores. Ao fim do diálogo de tipo platônico, os interlocutores concordam que é muito difícil definir o belo. As coisas terminam de maneira incerta. Todos nos encontramos hoje numa incerteza parecida: é muito difícil definir a Europa. E, para alguns, o problema é ainda pior, porque eles têm de, na ausência de uma definição, encontrar um jeito de integrar-se.

Apesar de todas estas complicações, podemos esperar — e temos razões para fazê-lo — que, num dado momento, num futuro não tão próximo, mas não tão distante, seremos reintegrados aos poucos grandes “clubes” dos quais queremos fazer parte. Mas, psicologicamente falando, confrontamo-nos, mesmo diante deste horizonte de esperança, com certas dificuldades. Os países da Europa oriental têm uma má relação com o tempo. Temos problemas com o passado, particularmente com o passado recente, que são cinqüenta anos de ditadura comunista. Temos problemas com o presente: na tentativa de trocar um sistema por outro, defrontamo-nos com todas as inconveniências dos períodos de transição, como a instabilidade, o baixo padrão de vida, a confusão de valores, a mudança radical de mentalidades por sobre um fundo desencorajador de inércia administrativa e social. Sim, e o que é menos comum, temos uma má experiência do futuro. Durante anos, a retórica do estado totalitário tentou compensar a ausência de soluções imediatas com sua supera bundância de um futuro “dourado”, garantido ideologicamente mas, de fato, indefinido. Diziam-nos que o hoje era difícil, mas que o amanhã seria maravilhoso, que a glória da atual geração consistia em seu desejo de sacrificar-se pelas gerações futuras. Esforço, paciência e esperança incondicional eram exigidas de nós. Agora, toda vez que mencionamos a União Européia e a Aliança Euro-Atlântica, nossos desejos são mais uma vez jogados para o futuro. Se tentarmos, conseguiremos – dizem-nos – atingir nossos objetivos dentro dos limites de um calendário incerto, que vai do ano 2000 a 2015 ou 2020. Esforço, paciência e esperança incondicional são, mais uma vez, exigências para garantir a felicidade de nossos netos. Obviamente, desta vez falam conosco de boa-fé, e as promessas feitas são mais realistas. Mas é inevitável que todo discurso a respeito de um futuro melhor nos traga “lembranças” muito desagradáveis…

As neuroses que descrevi até aqui são complementadas, no meu caso, com mais uma ainda. Num país que tem de encarar novas provocações, num momento de explorações e de crise de identidade, vejo-me numa situação que jamais imaginara para mim mesmo: a de Ministro das Relações Exteriores. Eu asseguro a vocês que é mais do que estimulante tentar fazer uma boa política no estrangeiro tendo um fundo de política doméstica tão precário. Você está como um comerciante que tem de fazer lucro tentando vender mercadorias virtuais.

Mas além dessa experiência há outra que talvez pareça ainda mais interessante: é o que um intelectual recém-chegado do lado de fora ao centro da vida diplomática mundial aprende a respeito dela. Amador (ainda), mas verde (ainda). Verde exatamente porque, sendo um amador, não teve ainda tempo para ser contaminado pela rotina da profissão. As palavras-chave que eu traria para caracterizar, do meu ponto-de-vista, a diplomacia contemporânea são aceleração, codificação e banalização.

Aceleração. O dia de trabalho de um diplomata é organizado, especialmente quando ele está em missão, segundo um horário impressionante. Num único dia de visita oficial, um ministro estrangeiro se encontra com um presidente (ou um monarca), um primeiro-ministro, dois ou três membros do governo (incluindo o Ministro de Relações Exteriores do país visitado), representantes da imprensa e da comunidade dos seus conterrâneos que vivem no país visitado, um grupo parlamentar, empresários, personalidades da vida pública etc.. A isto, some-se um café-da-manhã a trabalho, um almoço protocolar, um jantar e, às vezes, uma conferência… Tal programa não é feito dentro dos limites da escala humana. Os ritmos do homem normal, sua performance mental, suas capacidades físicas, não podem se adaptar por um longo tempo e em condições ótimas a um esforço desse tipo. A única solução é o estereótipo: você se mantém repetindo tenazmente a mesma mensagem, o mesmo sorriso, os mesmos gestos. Você é a vítima de um delírio mecânico. Você cruza – cada vez com mais velocidade e recursos cada vez mais débeis – um corredor previsível e anônimo. Cada conferência internacional traz outras, cada encontro começando com um rito circular, no qual os assuntos, os termos e as decisões já vêm prontos. Numa palavra, tudo isto junto poderia ser chamado de “diplomacia fast-food“. Talleyrand não teria sobrevivido a uma mecânica assim senão escolhendo entre a veleidade e a melancolia.

Codificação. As codificações – como já sugeri – são o salutar corolário da aceleração. A economia de tempo e de energia é possível somente graças à troca da comunicação real por códigos e formalismos. O consenso, na verdade, precede o debate. A declaração final é o primeiro documento que você recebe no início da reunião. Você sabe o que vai dizer e é tudo preparado por experts que, além disso, têm a delicadeza de tomar notas do que você diz, ainda que sejam eles mesmos os autores do texto. (Apesar disso, eu próprio reclamo a paternidade do texto presente.) Você sabe – com raras exceções – como tudo vai terminar. Se algo ainda continua imprevisível de algum modo, são os comentários dos jornalistas no dia seguinte. Falando de codificação, não resisto a invocar a quantidade de organizações internacionais e organismos expressados num labirinto de iniciais sibílicas. De Gaulle era fascinado pelo mistério das iniciais da ONU (Qu’est-ce-que ce machin-lá?). Hoje, ele teria de falar em OSCE, BSEC, CEI, CEFTA, EAPC, MERCOSUR, PREPCOM, SFOR, TRACECA, UNPREDEP etc. A cada ano, o número de organizações e comissões internacionais aumenta. Todos os tipos de reuniões tomam a agenda dos círculos diplomáticos, o que não acarreta necessariamente um aumento de diálogo. Você freqüentemente vê as mesmas pessoas, sem jamais ter a chance de verdadeiramente conhecê-las. Os momentos de “contato” real são reduzidos aos mínimos interst ícios oferecidos pelo protocolo: o coquetel, o almoço oficial (se não for “de trabalho”), a “foto de família”. Mas ainda nestes momentos tudo é reduzido a uma impressão inefável, à concisa cordialidade de uma resposta, às solidariedades de um círculo restrito. De resto, o código é esmagador. Você é “importante” e uma nulidade ao mesmo tempo. Mais do que você mesmo, você é tudo o que for permitido pelo seu crachá, pelo cartãozinho que marca seu lugar na mesa de negociações. Mesmo a língua que você fala torna-se um simples sinal, uma sugestão de um código preferencial, com conseqüências políticas. Isto é particularmente válido para um país como a Romênia, que não pode optar, sem um cálculo preciso, a respeito da maneira de se expressar. Se você falar romeno, ninguém irá compreendê-lo e ninguém irá traduzi-lo. Se você falar inglês, os franceses dirão que estão surpresos de verem o representante de um país francófono cometer essa indelicadeza. Se você falar francês, os anglófonos irão considerá-lo fora de moda. E se você falar alemão, ninguém acreditará que você vem da Romênia. O dilema é aparentemente pequeno, mas, dentro do contexto, pode desempenhar um papel inesperado.

Banalização. Não era comum, antigamente, que os encontros internacionais fossem tão comuns na vida diplomática. Uma conferência internacional tinha tudo para se tornar “histórica”, exatamente porque só ocorria a grandes intervalos, na véspera de acontecimentos importantes. Hoje, os encontros ministeriais tornaram-se uma atividade quase diária. O diplomata não é mais um símbolo plenipotenciário, uma posição de solenidade. Ele é um alto oficial, absorvido por uma escravidão linear. A decisão pertence antes às instituições que ele representa (presidentes, primeiros-ministros, parlamentos, partidos), e sua implementação à equipe de técnicos que o acompanha. O coeficiente de rotina e o componente convencional da vida diplomática é que são preponderantes. E aquele que, por imprudência, temperamento ou “diletantismo”, sai do típico, aquele que contradiz a norma, ainda que seja por um pedaço de frase, imediatamente cria uma comoção pública cujos resultados são imprevisíveis. O interlocutor subitamente abre os olhos, nota você, e, se você tiver sorte, ele reconhece, em particular, que você trouxe um tom um pouco mais arejado para o debate. Se você tiver azar, será arquivado sob as r ubricas “exotismo”, ou “esquisitice do leste”. O risco é grande. A banalização da vida diplomática também tem raízes no fato de que os encontros internacionais são geralmente confiscados por problemas secundários. Toca-se somente em problemas de natureza mais ou menos técnica ou então as pessoas se limitam a produzir um cronograma. Assuntos essenciais ficam intocados. Nenhum dos encontros da União Européia a que estive presente discutiu a “identidade” européia, nem o que significa o “alargamento” do espaço de uma civilização, nem as possíveis modalidades de integração das diferenças. Existe uma conversa sobre cotas, porcentagens, correlações econômicas e monetárias, que é sem dúvida muito útil, mas são raras as referências à essência dos acontecimentos, à sua substância e, eu ousaria dizer, à visão a partir da qual as ações serão decididas. Retrucar-me-iam que a diplomacia não é, de forma alguma, um colóquio filosófico. É verdade. Mas também não é uma simples burocracia. Corremos o risco de pensar de maneira esquemática, de perder a imaginação, a idéia, o entusiasmo. Corremos o risco de criar uma segurança embotada, uma prosperidade grudenta e uma unidade amorfa.

Quê fazer? Se eu não fosse ministro no momento em que falo com vocês (eu não era quando fui convidado para fazer esta conferência), poderia arriscar um rascunho de resposta. Mas, como ministro, eu estou no lugar do paciente, e não do terapeuta. Sou parte da paisagem que acabei de descrever. E não é possível que eu não identifique nesta paisagem, por enquanto, a brecha salvadora. Prefiro propor a vocês uma paisagem paralela, aquele em que vivi antes de chegar à minha perspectiva atual. Nos antigos países comunistas, freqüentemente vivíamos de soluções paralelas: uma cultura paralela à oficial, um conjunto de normas subterrâneas paralelas, uma economia paralela. Tendo esta experiência em mente, eu agora penso na possibilidade de uma diplomacia paralela. Não temos de inventá-la. Ela existe. Estive nela em 1992 no Wissenschaftskolleg em Berlin, e mais tarde em alguns institutos de estudos avançados, em Wassenaar, em Budapeste ou em Viena. Tentei formar um instituto assim em Bucareste e aprecio imaginar que fui bem sucedido. Nestes institutos, que não adotam “documentos finais”, que não criam comissões de controle ou forças de intervenção, que não criam nem desfazem fronteiras no mundo, uma elite relaxada mas responsável, racional, sem qualquer abuso sistemático ou ideologia formalizada, trava um intenso diálogo a respeito do mundo e dos destinos do homem. Vindos de todos os lugares e de todas as áreas, os membros destes institutos possuem, além das capacidades de seu espírito e de sua especialização, duas virtudes que estão em falta entre os diplomatas: eles têm liberdade interior e tempo. Quando se encontram, um verdadeiro encontro acontece; quando falam uns com os outros, realmente se comunicam; quando brigam, nenhuma embaixada fecha. Nestes institutos, o debate ainda é uma instituição eficiente, e a pesquisa é coloquial, corajosa, e orientada não para conjunturas, mas para fundamentos. Eles têm o estilo de uma diplomacia de boa qualidade, sem os seus servilismos. Jean-Paul Sartre disse uma vez que uma boa revista se faz dançando. Eu diria que o que eu vivi no Wissenschaftskolleg zu Berlin era a euforia sóbria da dança. A diplomacia pode tomar esta euforia sóbria como um modelo. E a integração européia e planetária poderá se tornar uma boa oportunidade para que o mundo reaprenda a dançar.

Veja todos os arquivos por ano