Leituras

Gramscianos enfezadinhos, uni-vos

Olavo de Carvalho

26 de dezembro de 1998

Alguns dias atrás, tendo encontrado na Internet um sitebrasileiro dedicado a Antonio Gramsci – o ideólogo italiano que critico duramente em A Nova Era e a Revolução Cultural –, propus aos responsáveis pela página um intercâmbio de links, argumentando, em tom de blague, que seria bom constar da sua bibliografia pelo menos um livro contra o gramscismo, “para não dar na vista” já que alegavam ser tão democráticos. Os fulanos levaram a coisa a mal, subiram nos tamanquinhos e, em pleno dia de Natal, me enviaram uma carta enfezada.

Reproduzo aqui, seguido da minha resposta, esse singular documento (grifos meus):

Carta de Luiz Sérgio Henriques, Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira

Sr. Olavo de Carvalho:

Surpreendeu-nos o tom da mensagem que nos foi enviada com a sua assinatura. Desde logo, o senhor, que tanta questão faz de falar em “amor à democracia”, não parece nem um pouco constrangido em nos fazer imposições para que entre nós se estabeleça algum diálogo. Já por isto, não lhe reconhecemos autoridade para nos cobrar a prática da democracia, nem aceitamos a imposição de “condições” para escolhermos os links a incluir em nosso site.

Certamente, registraremos em nossa “Bibliografia”, na próxima alteração do site, o seu livro sobre Gramsci, que até então desconhecíamos. Faremos isso porque nossa intenção, nessa parte do site, é documentar tudo o que se escreveu sobre Gramsci em nosso País, contra ou a favor, de boa ou de má qualidade. Nesse sentido, agradecemos-lhe a indicação do seu livro e lhe solicitamos a gentileza de nos enviar outros títulos sobre Gramsci que, porventura, o senhor tenha produzido (ou de que tenha conhecimento) e que ainda não constem da nossa “Bibliografia”.

Essa inclusão, contudo, não implica de modo algum que consideremos necessário, conforme o senhor afirma, que conste em nossa “Bibliografia” um livro “contra” Gramsci “para não dar na vista”. “Dar na vista” de quem? Felizmente, como já não vivemos numa ditadura, não temos muita preocupação — aliás, temos muito orgulho — em sermos identificados como um site de esquerda, empenhado na luta pela democracia e pelo socialismo, o que, aliás, está expresso com todas as letras na apresentação do mesmo. Para nós, é questão de critério e seriedade que essa definição político-ideológica fique “à vista” de todos os que freqüentam “Gramsci e o Brasil”.

Consideramos muito positivo que o senhor tenha na Internet um site pessoal, no qual expressa suas posições políticas e filosóficas, entre elas as que criticam Antonio Gramsci. Estamos seguros de que o senhor também é a favor de que pessoas de esquerda, identificadas com Gramsci e com o socialismo, possuam seu próprio site, no qual manifestam outras posições, radicalmente diferentes das suas.

Em “Gramsci e o Brasil”, incluímos “links” de páginas que julgamos importantes para a difusão de nossos valores democráticos e socialistas — e não colocamos, aos “linkados”, nenhuma “condição” para essa inclusão. Portanto, não estamos interessados no intercâmbio que, sob “condições”, o senhor nos propõe. Sem mais, no momento, também lhe desejamos os melhores votos.

Luiz Sérgio Henriques
Carlos Nelson Coutinho e
Marco Aurélio Nogueira,

responsáveis por “Gramsci e o Brasil”.
http://www.artnet.com.br/gramsci
gramsci@artnet.com.br

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezados gramscianos,

Muito obrigado pela promessa de citar o meu livro na sua bibliografia, mas de que raio de imposição vocês estão falando? Não sabem a diferença entre impor e propor? A confusão na sua carta é patente: começam reclamando que “impus” e terminam confessando que “propus” – e com isto mostram que sua queixa de “imposição” foi puro fingimento. Um desafio, por definição, não se impõe. Propus um e vocês correram da raia. Isto foi tudo. Se em seguida tentaram disfarçar, encobrindo sua defecção sob as aparências de um nobre ato de independência moral, não posso, sinceramente, dizer que esperava de vocês outra atitude.

Quanto ao exercício da democracia, supus talvez ingenuamente que cobrá-lo fosse um direito de todos os brasileiros e nunca imaginei que fosse necessário ter alguma autoridade especial para isso. Peço informar como se adquire essa autoridade. Anos de militância a favor do regime que assassinou 100 milhões de pessoas seriam talvez credencial bastante? Ou é necessário, depois disso, limpar-se de toda má-consciência mediante duas ou três palavrinhas de abjuração ditas da boca para fora?

Também não sou eu quem faz tanta questão de falar em “democracia”: vocês é que repetem obsessivamente essa palavra a cada três linhas, não sei se para exorcizá-la ou para criar um simulacro de parentesco entre ela e o “socialismo”, termo antinômico do qual fazem acompanhá-la com uma constância verdadeiramente pavloviana.

Qualquer que seja o caso, colocarei na minha página um linkpara a sua, que funcionará como uma bela coleção de notas de rodapé para confirmar minha opinião de que o gramscismo é apenas uma forma elegantemente perversa de totalitarismo.

Sua resposta também será ali reproduzida, para que todos os visitantes tenham o prazer de conhecer a mentalidade gramsciana ao vivo e a cores. Muitos deles já conhecem essa mentalidade, em geral, mas terão aí a oportunidade de captar uma nuance especificamente brasileira que ela vem adquirindo, a qual consiste em cultivar propositadamente o medo da extinta ditadura para poder incriminar como prenúncio de truculências direitistas qualquer crítica mais veemente que se faça à esquerda nacional. É com essa nuance, aliás, que vocês procuram insinuar que eu, um cidadão sem cargo público nem dinheiro nem partido, sou uma ameaça viva contra a existência do seu site. Que bela comédia!

Mas raciocinem, por favor: se eu desejasse extinguir o seu site, por que haveria de propor um intercâmbio de links com ele?

Com meus melhores votos de Natal e Ano Novo,

Olavo de Carvalho

PS 1 – Caso vocês não tenham compreendido o desafio que lhes propus, explico de novo: podem vir em dois, em três ou em mil, e lhes provarei, por a + b, que gramscismo é totalitarismo, por mais que pareça outra coisa. Não fiquem com medo de mim, pois não sou ponta de nenhum iceberg direitista. Sou apenas um rapaz latino-americano e falo somente em meu próprio nome.

PS 2 – Vejo que vocês comemoraram o Natal reunindo-se em três para bolar uma resposta coletiva, quase um abaixo-assinado. Nunca vi maneira mais extravagante (ou gramsciana) de celebrar o nascimento de N. S. Jesus Cristo. Espero que pelo menos o aniversário de Antonio Gramsci vocês passem festivamente com suas famílias em vez de se irritar pensando em mim.

Comentário extra

Os signatários da carta de Natal dizem que não impõemnenhuma condição para colocar algum link na sua homepage, mas, ao mesmo tempo, confessam que só escolhem os que lhes pareçam “importantes para a difusão de nossos valores democráticos e socialistas” – o que subentende evitar criteriosamente os que possam difundir valores democráticosanti-socialistas. É contraditório, mas não é nada estranho. Os militantes gramscianos fazem exatamente assim por toda parte – jornais, editoras, estações de TV, universidades –, professando em palavras a abertura pluralista e praticando a seletividade mais sectária, até que reste uma só voz audível e tudo o mais seja eco. A cultura brasileira vai se transformando assim num vasto sistema de hyperlinks gramscianos, sempre sob a alegação de democracia.

Vocês já repararam, por exemplo, que quando algum direitista ilustre como Roberto Campos ou Miguel Reale é entrevistado na TV ele é sempre submetido a um interrogatório agressivo que procura comprometer sua imagem? Já notaram que, inversamente, quando o entrevistado é um figurão esquerdista, como Paulo Freire, José Saramago ou Oscar Niemeyer, as perguntas são sempre de natureza a mostrar que são criaturas lindas-maravilhosas? Por que só põem esquerdistas para entrevistar direitistas, enquanto os esquerdistas têm o privilégio de ser sempre entrevistados por seus simpatizantes?Acham que isso é coincidência? Não é não. É um sistema, é uniforme e é mundial. Leiam este parágrafo de Alain Peyrefitte (ex-ministro do Interior do governo gaullista), escrito quando estava no poder o socialista Mitterand:

O domínio da esquerda sobre os jornalistas, reforçado pela tutela política da televisão, induziu àquilo que um socialista lúcido, Thyerry Pfister – jornalista que foi conselheiro técnico do Primeiro-ministro Pierre Mauroy – chama ostensivamente de “lógica manipuladora”. Esta exprime-se mediante a proximidade, habilmente mantida, entre a esfera do poder e os “formadores de opinião”, através de um “jornalismo de conivência”.

Já se viu uma conivência mais acentuada do que, por exemplo, no dia em que o presidente da República se fez interrogar na televisão pelas esposas de dois de seus ministros? Alguém será capaz de imaginar o general de Gaulle, Georges Pompidou ou Valéry Giscard d’Estaing fazendo-se interrogar assim “em família”? Que reações essa prática não teria suscitado!

Alain Peyrefitte, La France en Désarroi, em De la France, Paris, Omnibus, 1996, p. 1034.

Esse gênero de manipulação tem nome: é a revolução cultural gramsciana.

E aqui vai, como prometido, o link para a página democrática onde quem não é comunista não tem vez:

Gramsci e o Brasil

Olavo de Carvalho

Fórmula da minha composição ideológica

Olavo de Carvalho

23 de dezembro de 1998

Alguns leitores cobram-me uma autodefinição ideológica. Outros, mais solícitos, apressam-se em fazê-la por mim, catalogando-me seja como neoliberal, seja como anarquista, seja como conservador, seja até como fascista e o diabo a quatro. Surdo às demandas dos primeiros, que me parecem artificiais e de puro capricho, não posso, no entanto, permanecer insensível ante os esforços dos segundos, que traduzem, a olhos vistos, um anseio genuíno e profundo de suas almas, e, mais que um anseio, uma necessidade vital absoluta, a qual, se não atendida, acaba por se atender a si mesma como um estômago de pobre que, desprovido de alimento, se autodigere mediante uma úlcera. Essas pessoas, com efeito, não sabendo o que fazer de suas vidas sem um catálogo ideológico de tudo, e não dispondo de informações cabais sobre a minha personalidade política, acabam por construí-la com pedaços de si mesmas, colhidos nos bas fonds dos seus respectivos subconscientes e constituídos substancialmente de temores, suspeitas, fantasias macabras e uma vasta coleção de demônios.

Não suportando mais ver tanto sofrimento inútil, nem me conformando com tamanho desperdício de criatividade que mais utilmente se empregaria no hobby literário, ao qual algumas dessas criaturas aliás se dedicam nas horas vagas de seu penoso mister catalogante, decido-me, pois, a fornecer enfim meu perfil ideológico, e não apenas meu perfil de ambos os lados mas também meu auto-retrato de frente e de costas. Direi, em suma, o que vocês querem saber, que não é necessariamente o que vocês querem ouvir.

Infelizmente, não posso me definir com uma só palavra, como seria do gosto de tantos, pela simples razão de que não acredito haver algum conceito abrangente capaz de juntar, numa só unidade compacta, as diferentes atitudes e opiniões de um indivíduo ante os diversos setores da vida. O tipo assim descrito teria a coerência em bloco de uma caricatura, de um Idealtypusweberiano ou de um arquétipo platônico, mas nada teria de um ser humano1.

Toda fórmula ideológica pessoal compõe-se de um amálgama de preferências e repulsas variadas, umas referentes à política, outras à moral, outras à religião, outras à vida econômica e assim por diante. Esses vários elementos não formam quase nunca uma unidade coerente, embora tendam à coerência como numa assíntota, aproximando-se dela sem jamais alcançá-la. Tal esforço de coerenciação denomina-se, precisamente, filosofia, uma atividade que, pela própria natureza, é constante e sempre inacabada.

Não podendo, portanto, me definir com um termo unívoco, limito-me a dar uma lista dos vários elementos que compõem, como podem, minha ideologia pessoal.

  1. Em economia, sou francamente liberal. Acho que a economia de mercado não só é eficaz, mas é intrinsecamente boa do ponto de vista moral, e que a concorrência é saudável para todos. Há dois tipos de pessoas que não gostam da concorrência: os comunistas e os monopolistas. Às vezes é difícil distingui-los. Quem foi que disse: “A concorrência é um pecado”? O Dr. Leonardo Boff adoraria ter dito, mas não disse. Quem disse foi John D. Rockefeller. E, como se vê pelo episódio bíblico de Marta e Maria (ou de Esaú e Jacó), a concorrência não é pecado nenhum. Pecado é um sujeito ser John D. Rockefeller ou o Dr. Leonardo Boff.

Como liberal sou contra o socialismo e contra toda forma de Estado corporativo, seja de estilo mussoliniano, seja católico. Acredito, com Sto. Tomás, que há um preço justo para cada coisa. Mas, como observavam os conimbricenses, o número de variáveis a levar em conta no cálculo do preço justo é ilimitado, e a única maneira de encontrá-lo é deixar que as pessoas discutam livremente e admitir que, de algum modo, vox populi, vox Dei. O Estado existe apenas para impedir que os concorrentes se comam vivos, para assegurar as condições logísticas da prática do liberalismo e para, last not leastamparar in extremis quem não tenha a mínima condição de concorrer no mercado.

  1. Em religião, sou tradicionalista e conservador. Não, não sou eu que sou assim. Religião é tradição e conservação. É o fator de imutabilidade que faz contraponto à História, e sem o qual o movimento não seria sequer percebido. Por isto, o Concílio Vaticano II podia ter mexido em tudo, menos no essencial: o rito e a doutrina. Ao contrário, ele virou o essencial de pernas para o ar, apegando-se idolatricamente à imutabilidade do secundário, como por exemplo o celibato dos padres. Tendo invertido o senso das proporções, o Concílio tornou a Igreja uma instituição insensata e ridícula, que condena seus próprios santos enquanto se prosterna ante os inimigos. Mas não defendo a imutabilidade só do Catolicismo: acharia uma insensatez mudar uma só palavra do Corão, da Torá ou dos Vedas.
  2. Em moral, sou anarquista. Acredito que há princípios morais universais, permanentes, que a inteligência discerne por baixo da variação acidental das normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado. Mas, por isso mesmo, impor o certo é errado, a não ser em caso de vida ou morte. O sujeito que faz o certo só por obediência e sem compreendê-lo acaba por transformá-lo no errado. “Experimentai de tudo e ficai com o que é bom”, recomendava S. Paulo Apóstolo, meu amado guru. É uma questão de viver e aprender. Mas como podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar? Por isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e a autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência, sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem os religiosos, que por sua dedicação à vida interior têm autoridade para falar dessas coisas, devem impor regras morais à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que afinal não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana e prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito corriqueiras, e jamais em motivos pretensamente elevados de ética, que terminam por fazer da burocracia estatal um novo clero, e do Código Penal um novo Decálogo. A coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal.
  3. Em educação, sou mais anarquista ainda: não acredito em ensino obrigatório do que quer que seja e noto que a expansão hipertrófica do sistema de ensino, público ou privado, só cria novas formas de analfabetismo. Acho que a educação deveria ser livre, que cada um deve buscá-la na medida de suas necessidades, e considero uma monstruosidade totalitária que, após proclamá-la um direito, o Estado moderno faça dela um direito obrigatório. Acho aliás que o mesmo se dá com muitos outros “direitos”, que você acaba exercendo a muque ou sob pena de prisão. Era um absurdo que as mulheres não pudessem trabalhar, mas é um absurdo maior ainda que, obrigadas a trabalhar, não possam ficar em casa para criar seus filhos. Complementarmente, é um crime que se obrigue uma criança a fazer trabalho de adulto, mas é um crime maior ainda que ela seja impedida de ganhar seu próprio dinheiro, fazendo, se quiser, um trabalho que esteja à altura de suas capacidades e que, no fim, há de educá-la muito mais do que qualquer escola. Tornei-me jornalista ainda quase um menino, aos dezessete anos, e aprendi na redação o que três décadas de escola não me ensinariam. Esta porcaria de governo que temos hoje me tiraria de lá e me poria numa escola para aprender português nos livros de Paulo Coelho.
  4. Em política internacional, e sobretudo em comércio internacional, sou radicalmente nacionalistaprotecionistae tudo o mais que os globalistas odeiam. Isso não quer dizer que eu seja contra a globalização da economia. Muito menos há aí qualquer contradição com a crença liberal acima subscrita. Apenas, entendo que globalismo não é o mesmo que monopolismo das grandes multinacionais, e que, assim como estas se associam umas com as outras – e com certos Estados – para ficar mais fortes, é justo que o empresário nacional, sobretudo o pequeno, busque apoio do seu próprio governo para não ser esmagado pelos monopólios internacionais. Aí a intervenção do Estado não é contra o liberalismo ou a concorrência: ela é, ao contrário, o fator equilibrante que impede a extinção do liberalismo e sua substituição pelo monopolismo. O mais detestável dos socialismos é o socialismo dos ricos.
  5. Em filosofia, sou realista, meus gurus sendo Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz, Husserl e Xavier Zubiri, todos os quais afirmam o poder humano de conhecer as coisas como são. Husserl e Zubiri, no meu entender, foram os únicos filósofos realmente grandes deste século, e perto deles um Foucault ou um Deleuze são apenas meninos de escola. Acho que marxismo, estruturalismo, desconstrucionismo, psicanálise, neo-relativismo, neopositivismo, etc. etc., são filosofias boas para analfabetos funcionais e portanto atendem a uma autêntica necessidade social criada pela rápida expansão do ensino universitário, onde é preciso fabricar professores cada vez mais rápido e cada vez mais barato. Ler o Dr. Freud, Poulantzas, La Pensée Sauvageou Richard Rorty já é esforço bastante para essa gente, que morreria de congestão cerebral após meia página de Zubiri ou das Investigações Lógicas.
  6. Em História, acredito na relatividade do progressoe acho que todo progresso se paga com perdas que nem sempre valem a pena. É claro que aprecio os computadores e os direitos constitucionais, mas penso nos milhões de vidas humanas que foram sacrificadas no altar do progresso e me pergunto se nós, sobreviventes, não saímos diminuídos moralmente pelos próprios benefícios que recebemos2. Um índio, que anda pelado no meio do Xingu, não tem Internet mas não carrega, nas costas, o peso de tantos pecados históricos. O progresso, sem dúvida, é vantajoso. Mas não tem a dignidade de um genuíno ideal moral. É apenas uma conveniência prática, e quando procura se enfeitar com uma ideologia autoglorificadora, com as pompas de uma utopia futurista, sobretudo “científica”, aí, meus filhos, é que ele se encarna num Robespierre, num Lênin, num Hitler, num Mao, num desses monstros que os séculos antigos não poderiam sequer imaginar. Gosto do progresso, não nego. Mas não sou seu entusiasta e não sacrificaria, por ele, a vida de um cabrito. O progresso tanto mais vale quanto menos custa.
  7. Em todos os domínios e circunstâncias, sou contra o governo mundial.Ninguém deve governar o mundo, senão Deus. A ONU, a Unesco, o Banco Mundial, as grandes corporações multinacionais, a Internacional Socialista e todas as entidades do gênero são para mim a encarnação mesma da megalomania e do desejo ilimitado de poder. Isso não quer dizer que os Estados nacionais sejam anjinhos, pois, como já informava a Bíblia, “os anjos das nações são demônios”. Quer dizer apenas que o chefe mundial dos demônios é muito pior do que todos eles somados.

Que as pessoas acostumadas a identificar globalização e liberalismo não vejam aí contradição alguma. A unificação política e administrativa do mundo não beneficiará o liberalismo, mas o extinguirá para sempre, instituindo a “Terceira Via”. Que é a Terceira Via? É aquela síntese de capitalismo e socialismo que, resguardando a liberdade de movimento para as grandes empresas que apoiam o governo, planeja, controla e determina tudo o mais. Essa síntese não é nova. Surgiu na década de 20 e se chama fascismo. Naquela época o fascismo era coisa de escala nacional. Hoje querem fazer um fascismo mundial e, para disfarçar, fazem campanhas alarmistas contra os remanescentes do fascismo old style, como Le Pen e o Dr. Enéias, os mais autênticos bois-de-piranha da boiada universal. Para enfrentar o governo mundial é preciso criar um novo nacionalismo, liberal, democrático, inteligente, capaz de tomar parte no jogo da globalização sem deixar que transformem nosso país numa província ou numa colônia de férias para turistas sexuais. E para isso é preciso resistir ao maquiavélico jogo duplo que, de um lado, exaltando falsamente o liberalismo, tudo submete a um planejamento global e, de outro, incentivando maliciosamente reivindicações socialistas malucas e toda sorte de ressentimentos doentios, divide o povo, desorienta os intelectuais, debilita o Estado brasileiro e nos deixa, a todos, à mercê do poder multinacional.

Foi para atender aos ditames dessa minha ideologia compósita, segundo as várias exigências que me parecessem mais razoáveis no momento e na situação, que já tive a ocasião de votar em Lula e em Roberto Campos, em Maluf e Brizola, em Ulisses Guimarães e em Delfim Netto, em Franco Montoro e em Fernando Henrique Cardoso. Não votei em Collor: tomei um Engove e votei no Lula. Na eleição seguinte, não votei em Lula: tomei um Engove e votei em FHC. Mas escolhi sempre conforme o detalhe concreto do que estivesse em discussão e não conforme aquela linearidade rígida de quem é “direitista” ou “esquerdista” como se torce pelo Coríntians ou se crê em Jesus Cristo: de uma vez por todas e por toda a vida. Pois esta coerência só se pode ter nas coisas profundas, duráveis e do coração, e não nessa agitação epidérmica que é a política, onde, sem aviso prévio, de repente as pessoas, idéias e coisas se convertem em seus contrários.

NOTAS:

  1. Talvez por isso os líderes de maior coerência ideológica em bloco, na história do nosso país, foram também os mais estéreis politicamente, como Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes, ao passo que outros deixaram obra mais durável justamente porque se permitiram ajustes e combições “pragmáticas”.
  2. Isso não implica a adesão a nenhuma teoria maluca da “culpa coletiva”. O que digo é que nos tornamos culpados, individual e concretamente, pelos custos do progresso, na medida em que aceitamos seus benefícios levianamente, sem gratidão consciente pelas gerações que se sacrificaram por nós.

 

A arte de escrever, Lição 1: Esqueça o Manual de Redação

Olavo de Carvalho

22 de novembro de 1998

Como alguns leitores têm-me pedido conselhos sobre a arte de escrever, decidi tirar da gaveta estas observações que redigi seis anos atrás para um curso que tinha o título, precisamente, de Ler e Escrever, e às quais nada tenho a acrescentar:

I.

A circular da redação de Veja, reproduzida no número de julho de 1992 do Unidade, jornal do Sindicato do jornalistas de São Paulo, constitui uma amostra do estado de inconsciência quase hipnótica em que vão mergulhando a cada dia, impelidos pela mecânica do ofício, os nossos melhores profissionais de imprensa.

O documento, uma lista de 27 regrinhas baixadas pela chefia com o propósito de “combater vícios de linguagem”, é apresentado pelo jornal do Sindicato como um sinal de saúde: uma prova de que Veja, no auge da fama, não perdeu a cabeça e ainda é capaz de autocrítica.

Encarado no seu contexto mais próximo, como sinal de recuo sensato ante a tentação da embriaguez, ele pode ser de fato coisa boa. Mas, no contexto maior da evolução do jornalismo brasileiro ao longo das últimas décadas, as 27 regrinhas mudam de figura: tornam-se o sintoma alarmante da consolidação de um conjunto de cacoetes mentais como Lex maxima do bom jornalismo. Cacoetes, porque não chegam sequer a ser preconceitos. Preconceitos são crenças que, furtando-se ao exame consciente, dirigem a conduta, modelam a prática. Já estas regrinhas não se destinam seriamente a entrar em prática por serem de aplicação impossível, como demostrarei adiante, e sim apenas a ser alardeadas, oralmente e por escrito, como emblemas convencionais de boa conduta jornalística.

Não somente jornalística, na verdade. Consagradas pela repetição, máximas desse tipo acabam servir de critério para o julgamento de qualquer escrito, mesmo fora do jornalismo. Já vi muito guru de redação torcer o nariz ante Eça, Camilo, Euclides ou o Padre Vieira, porque usavam palavras vetadas no Manual interno: é como desprezar a Catedral de Chartres porque não cabe nas especificações do BNH.

Que baixem regras, vá lá. Mas deveriam ter ao menos o bom senso de admitir que especificações ditadas pela mera conveniência tecno-industrial não têm nenhum valor de critério estético, não constituem, em nenhum sentido, as regras de estilo, a não ser que se entenda por estilo a uniformidade coletiva, isto é, a falta de estilo. Servem para medir a adequação de um texto ao perfil mercadológico de um determinado produto editorial, e não para julgar sua qualidade literária, sua expressividade, sua exatidão, sua coerência, elegância e veracidade. Não servem nem mesmo para aquilatar do seu valor jornalístico, se tomado em sentido geral e fora dos cânones daquela publicação em particular. Como julgar por elas, digamos, o jornalismo de um Mauriac, de um Ortega y Gasset, de um Alain, ou, mais próximo de nós, de um Monteiro Lobato? Estilo é a adequação da linguagem de um sujeito às suas próprias necessidades expressivas, ou às exigências do assunto, e não a qualquer molde externo prévio, seja ele folgado ou estreito. É só metaforicamente, e forçando a barra, que a palavra “estilo” pode designar o sistema uniforme de trejeitos verbais imitado por todo um corpo de redatores; mais propriamente, esse sistema seria dito uma padronização da falta de estilo.

A padronização pode ser um mal inevitável. Mas para que exagerar, vendo nela um bem absoluto, o modelo mesmo de boa escrita? Que um chefete, cioso da carreira, chegue a introjetar tão profundamente o perfil do produto que lhe encomendam, ao ponto de mesmo nas horas de folga não ser capaz de formar frases fora das especificações dele sem sentir culpa e remorso, é coisa que compreendo; que ele deseje em seguida moldar a cabeça de seus subordinados segundo essas mesmas especificações, em prol da disciplina e da eficiência, é coisa que não só compreendo como também admito e até louvo. Mas que ele, enfim, num acesso de autoglorificação, se imagine transfigurado num mestre de português, literatura ou “estilo”, é demais. Nenhum tecelão da R. José Paulino, ao ajustar suas máquinas para que as blusas saiam na medida, imagina estar fixando os padrões para o julgamento da elegância mundial.

Executivos de carreira metidos a teóricos de literatura são o flagelo das redações. Em nome de um perfil de produto, contingência comercial elevada a regra áurea do juízo estético, eles impõem padrões de gosto, lascam a caneta à vontade, divertem-se sadicamente brincando de Graciliano Ramos ante uma platéia de foquinhas assustados, os quais, nunca tendo lido o Graciliano de verdade, acreditam mesmo que ele seria capaz de escrever uma coisa mimosa como esta do manual de Veja: “Frase curta é bom e eu gosto. Com uma palavra só. Assim. Tente”. Sim, tente: faça uma frescura diferente. Graciliano tinha o senso da continuidade melódica, jamais confundiria frases curtas com solavanquinhos histéricos. Nem proferiria máximas desta profundidade abissal: “Ninguém escreve direito se não ler”, sentença que seria digna do Conselheiro Acácio, se não fosse, aliás, da autoria dele mesmo. Tomando normas de produção como critérios de gosto literário, essa gente está transformando o jornalismo naquilo que seus detratores desejariam que fosse: a espécie mais típica de subliteratura.

Normas de redação, se estatuídas, devem ser apresentadas, com toda a modéstia, como convenções práticas, neutras, nem melhores nem piores que quaisquer outras, e nunca como padrões de “bom gosto”, “elegância”, etc., que são valores de estética literária muito mais sutis do que aquilo que esse gênero de manuais está em condições de delimitar. Os manuais deveriam ater-se, o quanto possível, a aspectos exteriores e “materiais” da escrita, como ortografia, abreviaturas, padronização de nomes, evitando pontificar sobre estilo ou, pelo menos, opinando nisto com extremo cuidado e tão somente em nome da conveniência utilitária, não da estética. Nos casos em que fosse absolutamente indispensável opinar sobre estilo, o melhor seria permanecer num nível genérico e abstrato, sem descer a particularidades duvidosas, como a de vetar, individualizadamente, tais ou quais palavras ou expressões. Mesmo porque o mais elementar conhecimento da estilística mostra que não há palavras ou expressões que, em si e por si, sejam inelegantes; tudo depende do contexto, do tom, da engenhosidade maior ou menor com que sejam utilizadas. No devido lugar, até o execrando “outrossim” pode cair bem, apesar da famosa tirada de Graciliano Ramos, ao revisar um artigo da revista Cultura Política: “Outrossim é a p. q. p.”.

A amoldagem da cabeça humana a um conjunto de normas práticas, não contrabalançada pela consciência do caráter meramente convencional dessas normas, pode produzir nela uma verdadeira mutilação intelectual, tornando-a, a longo prazo, incapaz de compreender e apreciar o que quer que esteja fora do padrão costumeiro. A quase absoluta incapacidade para a leitura de textos mais abstratos, de filosofia e ciência, por exemplo, que observo em tantos de meus colegas, não resulta de nenhuma deficiência congênita, mas do costume adquirido de lidar com uma só das dimensões da linguagem, deixando atrofiar a sensibilidade para todas as demais: o hábito da escrita plana e rasa produz a leitura plana e rasa.

Um dos sinais mais patentes de uma inteligência alerta é a percepção de contradições. Aristóteles já observava que o senso lógico e o senso do ilógico são uma só e mesma coisa. Quando leio alguma coisa repleta de contradições ostensivas e sei que o autor não é imbecil nem está sofismando de propósito, só posso concluir que ao escrevê-la estava distraído, sonso ou bêbado. O documento de Veja certamente foi produzido num desses estados. Prometi e vou mostrar que é um amontoado de exigências impossíveis, mutuamente contraditórias. Antes, porém, desejo fazer a seguinte constatação psicológica: Como não é plausível que um chefe de redação caia em sono letárgico justamente na hora de emitir ordens importantes, o autor do documento (que aliás ignoro quem seja) mais provavelmente vive nesse estado em caráter permanente. Como, de outro lado, também não é verossímil que Veja tenha escolhido para chefe de redação um sujeito anormalmente mais distraído que os outros, suponho que seus colegas também não repararam nas contradições que vou assinalar (como não atinou nelas o redator de Unidade que transcreveu e elogiou o documento). Se é assim, então a circular de Veja é sinal de algum entorpecimento epidêmico da inteligência, que acomete a nossa categoria profissional.

Os exemplos que dou a seguir mostram o quanto o apego à norma rotineira, sedimentado por uma prática intensa e contínua, pode tornar um bom jornalista insensível às piores contradições e transformá-lo num confiante proclamador de incongruências.

II.

A circular de Veja é um conjunto de regras, mas é também ela mesma um texto. Essas regras, aplicadas à redação do mesmo texto, resultariam em suprimir pelo menos um terço dele. Vejam o primeiro parágrafo (regra 1):

 

Cortar todas as palavras supérfluas. Encher lingüiça é a pior praga de uma revista semanal de notícias.

 

Aplicada a mesma regra à redação da mesma frase, esta ficaria assim:

 

Cortar as palavras supérfluas. Encher lingüiça é a praga de uma revista de notícias.

 

Em obediência à regra, cortei as seguintes palavras supérfluas:

1o “todas”: a expressão “as palavras supérfluas” é genérica; e como um gênero abrange necessariamente a totalidade das suas espécies, o pronome é redundante;

2o “a pior”: porque praga é necessariamente coisa ruim.

3o “semanal”: porque não se entende que a proibição de encher lingüiça deva ser revogada nas revistas mensais ou nos jornais diários.

Três palavras em duas linhas já não são lingüiça que basta? No entanto a frase não está mal escrita. A regra é que é excessiva. Já estava, aliás, infringida antes mesmo de ser escrita; porque na introdução do documento se diz:

 

Por mais que fotógrafos, ilustradores, paginadores e artistas gráficos reclamem…

 

Pois então: ilustrador não é artista gráfico? Corremos o risco de logo ver o nosso adversário de lingüiças distribuindo avisos “a todos os endocrinologistas, pediatras, geriatras e médicos”, “a todos os homens, mulheres e seres humanos”, etc.

Na mesma introdução, o indigitado elemento verbera os vícios de linguagem que

 

…estão conspurcando as nossas páginas com a mesma voracidade das heresias medievais…

 

Ô xente! Já se viu alguém “conspurcar com voracidade”? Com voracidade come-se, devora-se, engole-se, ingere-se, agarra-se. Conspurcar é fazer mancha, é deixar cair sujeira em cima, indica ou subentende um movimento para fora, do sujeito paraum objeto, exatamente o inverso do movimento para dentro designado pela ingestão voraz.

A imagem torna-se ainda mais chocante quando vemos que, na regra 14, seu autor, com ar de primeiro-da-classe, emite (deveria eu dizer “expele vorazmente”?) um preceito para a redação de imagens: “Ao optar por uma linha de imagens, mantenha-se nela”. Sim, por exemplo: comece com uma imagem gastronômica e complete-a com alguma coisa bem proctológica.

O mais extraordinário é que o supradito ainda menciona, como exemplos de imagens bem feitas, aquelas que ele mesmo usa na introdução. Poderia citar-se a si mesmo, aliás, como exemplo de modéstia, caso já não o tivesse feito ao admitir que não é Moisés e que suas regras não são as Tábuas da Lei, advertência que, se não lhe parecesse muito necessária, seria suprimida (de acordo com a regra 1).

Mas a infidelidade do autor a suas próprias regras não as invalida por completo, logicamente falando; só o desmoraliza. Para invalidá-las de vez, seria preciso uma contradição interna: entre regra e regra.

Eis um exemplo. A regra 5 adverte: “Cuidado com os advérbios”, e recomenda suprimi-los, concluindo: “Por si só, o adjetivo qualifica”. Lá adiante, porém, na regra 26, são recomendados como gurus, para o aprendizado da boa escrita, Machado de Assis e… Euclides da Cunha! Será que o chefe nunca leu Euclides? Pois este era pródigo em advérbios; a profusão deles foi um dos defeitos que os críticos de Os Sertõesassinalaram com mais freqüência, obrigando os admiradores do autor a mobilizar-se em sua defesa (cf., por exemplo, Modesto de Abreu, Estilo e Personalidade de Euclides da Cunha, Rio Civilização Brasileira, 1963, esp. Pp. 148-152). Como farão os pobres aprendizes para mirar-se, ao mesmo tempo, no exemplo de Euclides e nas palavras do chefe? E o exemplo fornecido em testemunho da unanimidade dos advérbios é, no mínimo, perjuro:

 

Cuidado com os advérbios. “Fulano é um animal ferrado nas quatro patas”, diz irritadamenteSicrano de Tal. A citação já mostra que Sicrano estava uma arara. Se não mostrasse, não seria um advérbio que melhoraria a situação.

 

Parece que o elemento não enxerga a menor diferença entre dizer uma coisa irritadamente, galhofeiramente, ironicamente, desdenhosamente, etc.

Uma das diferenças principais entre o oral e o escrito é que, neste último, as citações geralmente não dizem por si sós o tom, a ênfase, o gesto, a expressão facial com que as frases foram proferidas; e os advérbios existem justamente para, nesses casos, “melhorar a situação”, evitando descrições fastidiosas (a não ser que Veja tenha se tornado multimídia, cada declaração vindo acompanhada do vídeo respectivo).

Além das contradições, há também informações erradas. A regra 6 estabelece:

 

Salvo engano, o português é uma das poucas línguas que não desdobra o tempo futuro. Aproveitem. “Collor mudará o ministério” é muito mais preciso e elegante do que “Collor vai mudar o ministério”.

 

Aqui o chefe foi salvo pela ressalva. Pois trata-se, precisamente, de um engano. Celso Cunha, à p. 268 da sua Gramática do Português Contemporâneo (Belo Horizonte, Bernardo Álvares Editor, 1970), explica que o verbo auxiliar ir se emprega “com o infinitivo do verbo principal, para exprimir o firme propósito de executar a ação, ou a certeza de que ela será realizada num futuro próximo”; ao passo que o futuro simples admite, numa de suas acepções, a expressão da mera probabilidade. Caso, portanto, a mudança de ministério seja uma certeza firme, “Collor vai mudar o ministério” será muito mais preciso do que “Collor mudará o ministério”. É um matiz lógico e temporal da maior importância. Também em matéria de palavras, a economia pode ser, às vezes, a base da porcaria.

O exemplo dado, aliás, entra também em contradição com a regra 5, que manda não abusar do “muito”. Chamar de “muito mais preciso” algo que não é nem um pouco mais preciso, é ou não é abusar do “muito”? Mas a regra mesma de preferir o futuro simples contradiz a regra 20, que manda preferir, onde possível, a linguagem coloquial. Quem é que, no coloquial, diz “farei” em vez de “vou fazer”?

Quando à expressão “salvo engano”, o autor a emprega ironicamente, pois crê não estar enganado e aliás veta, na regra 7, o uso dessa mesma expressão. Só que, como de fato ele estava enganado, a ironia se voltou contra o ironista. O humor involuntário é o resultado quase inevitável de escrever sem pensar.

Se estas regras tivessem sido calculadas maquiavelicamente com o propósito de desnortear foquinhas, para humilhá-los e torná-los dóceis, nada poderia detê-las. Vejam a regra 13:

 

Quanto mais concreta a imagem, melhor. Não misture coisas reais com abstrações. “Os tucanos alçaram vôo rumo à modernidade” mistura uma ave com um conceito.

 

A regra é clara. Mas como aplicá-la? Escrevendo, por exemplo, como o chefe em sua introdução, que “algumas fogueiras se fazem necessárias para manter a pureza estilística da revista”? Pureza estilística não é conceito abstrato? Fogo não arde materialmente? Se tucanos não podem alçar vôo senão rumo a concretíssimos poleiros, as chamas também não podem consumir solecismos, apenas o papel que os exibe. Se, queimando esta malfadada circular de Veja, eu pudesse suprimir o ilogismo de seu conteúdo, sem dúvida teria feito isso; mas, cioso de não misturar o abstrato e o concreto, abstive-me de recorrer ao ígneo expediente, e pus-me a redigir estas longas e tediosas observações.

Se elas parecem hostis, insolentes ou malévolas, digo que desconheço quem seja o redator-chefe de Veja e que nothing personal, just business. Que a bordoada atinja o erro, não a pessoa de seu autor. Este deve ser um profissional excelente, pelo menos tão bom quanto seus colegas, e por isto mesmo o erro é significativo e merecedor de correção pública, o que não se daria no caso de mera inépcia pessoal.

Também me ocorre um episódio. Ciro Franklin de Andrade, que foi um dos meus primeiros mestres no jornalismo, tinha um hábito exemplar. Quando um foquinha escrevia despropósitos, ele o chamava a um canto e lhe dava, discretamente, paternais explicações. Mas, se a coisa era obra de um chefe, de um profissional experiente, de um figurão do jornalismo, ele simplesmente recortava o trecho e o grudava no mural, para ensinança de aprendizes e castigo de instrutores. Cruel? Inesquecível.

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