Leituras

Os roedores da glória

30 de junho de 1999

JOSÉ INGENIEROS
(1877-1925)

De O Homem Medíocre, trad. Gesner de Wilson Morgado, Rio, Melson, 1963.

Todo aquele que se sente capaz de criar um destino, com o seu talento e com o seu esforço, está inclinado a admirar o esforço e o talento nos demais; o desejo da própria glória não pode sentir-se coagido pelo legítimo enaltecimento alheio. Aquele que tem méritos sabe o que eles custam, e os respeita; estima, nos outros, o que desejaria que os outros estimassem nele. O medíocre ignora esta admiração franca: muitas vezes se resigna a aceitar o triunfo que ultrapassa as restrições da sua inveja. Mas aceitar não é amar, resignar-se não é admirar.

Os espíritos de asas curtas são malévolos; os grandes engenhos são admirativos. Estes sabem que os dons naturais não se transformam em talento ou engenho sem um esforço, que é a medida do seu mérito. Sabem que cada passo no sentido da glória custa trabalhos e vigílias, meditações profundas, tentativas de fim, consagração tenaz, a esse pintor, a esse poeta, a esse filósofo, a esse sábio; e compreendem que eles consumiram porventura o seu organismo, envelhecendo prematuramente; e a biografia dos grandes homens lhes ensina que muitos renunciaram o repouso ou o pão, sacrificando, tanto um como outro, a fim de ganhar tempo para meditar, ou para comprar um livro iluminador de suas meditações. Essa consciência daquilo em que o mérito importa, os faz respeitar. O invejoso, que o ignora, vê o resultado a que os outros chegam e ele não, sem suspeitar quantos espinhos foram semeados no caminho da glória. Todo escritor medíocre é candidato a criticastro. A incapacidade de criar impele-o a destruir. Sua falta de inspiração o induz a corroer o talento alheio, empanando-o com especiosidades que denunciam a sua irreparável inferioridade. Os altos engenhos são equânimes na crítica de seus iguais, como se reconhecessem, neles, uma consangüinidade em linha direta; no êmulo, não vêem nunca um rival.

O verdadeiro critico enriquece as obras que estuda, e em tudo o que toca deixa um rastro de sua personalidade., Os criticastros, que são, por instinto, inimigos da obra, desejam diminui-la, pela simples razão de que eles não a escreveram. Nem saberiam escreve-la, se o criticado lhes contestasse: “Faze-a melhor”. Têm as mãos travadas por fitas métricas; seu afã de medir os outros corresponde ao sonho de rebaixá-los até à sua própria medida. São, por definição, prestamistas, parasitas, vivem do alheio, pois se limitam a baralhar, com mão hábil, o mesmo que aprenderam no livro que procuram desacreditar. Quando um grande escritor é erudito, reprovam-no como falto de originalidade; se não o é, apressam-se a culpá-lo de ignorância. Se emprega um raciocínio que outros usaram, denominam-no plagiário, embora assinale as fontes da sua sabedoria; se omite a assinalação, acusam-no, por serem vulgares, de improbidade. Em tudo encontram motivo para maldizer e invejar, revelando a sua antipatia interna.

O criticastro medíocre é incapaz de alinhavar três idéias fora do fio que a rotina lhe sugere. Sua bojuda ignorância obriga-o a confundir o mármore com o mecaxisto, e a voz com o falsete, inclinando-o a supor que todo o escritor original é um heresiarca. Os pacóvios dariam o que não têm, para saber escrever um pouquinho, para serem incorporados à crítica profissional. É o sonho dos que não podem criar. Permite uma maledicência medrosa e que não compromete, feita de mendacidade prudente, restringindo as perversidades para que fiquem mais agudas tirando aqui uma migalha e dando ali um arranhão, velando tudo o que pode ser objeto de admiração, rebaixando sempre com a oculta esperança de que possam aparecer a um mesmo nível os críticos e os criticados. O escritor original sabe que atormenta os medíocres aguilhoando-lhes essa paixão que os desespera em face do brilho alheio; o desespero dos fracassados é a lucro que melhor pode premiar o seu labor luminoso. O ridículo de um Zoilo chega sempre a andar passo a passo com a glória de um Homero.

Fermentam, em cada gênero de atividade intelectual, como pragas pediculares da originalidade; não perdoam aquele que incuba, em seu cérebro, essa larva silenciosa. Vivem para manchá-lo ou destroná-lo, sonham com o seu extermínio, conspiram com uma intemperança de terroristas, esgrimem sórdidas calúnias que fariam enrubescer um paquiderme. Vêem um perigo em cada astro e uma ameaça em cada gesto; tremem, pensando que existem homens capazes de subverter rotinas e preconceitos, de acender novos planetas no céu, de arrancar sua força aos raios e às cataratas, de infiltrar novos ideais às raças envelhecidas, de suprimir as distâncias, de violar a força de gravidade e de abalar o governo…

Os espíritos rotineiros são rebeldes à admiração: não reconhecem o fogo dos astros porque nunca tiveram, em si, uma única chispa. Jamais se entregam de boa-fé aos ideais ou às paixões que lhes assaltam o coração; preferem opor-lhes mil raciocínios, para privar-se do prazer de admirá-los. Confundirão sempre o equívoco e o cristalino, rebaixando todo ideal até às baixas intenções que supuram em seus cérebros. Pulverizarão todo o belo, esquecendo que o trigo moído e feito farinha já não pode germinar em espigas douradas, à luz do sol. “É um grande sinal de mediocridade – disse Leibniz – elogiar sempre moderadamente”. Pascal dizia que os espíritos vulgares não encontram diferenças entre os homens : descobrem-se mais tipos originais, à medida que se possui maior engenho. O criticastro é miserável; admira um pouco todas as coisas, mas nada merece a sua admiração decidida. Aquele que não admira o melhor, não pode melhorar. Os que não sabem admirar não têm futuro. É uma covardia aplacar a admiração; é preciso cultivá-la, como fogo sagrado, evitando que a inveja a cubra com a sua pátina ignominiosa.

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Olavo de Carvalho

30 de julho de 1999

Ao leitor Diogo Rosas Gugisch, de Curitiba, que protestava contra o boicote da Gazeta Mercantil ao meu trabalho de estudioso e intérprete da obra de Otto Maria Carpeaux, o sr. Daniel Piza Nabolla, editor do caderno de cultura desse jornal, enviou a seguinte resposta, que o destinatário me retransmitiu hoje por e-mail:

Caro Diogo,

Imaginar que dei minhas opiniões em contraste com as de Olavo de Carvalho é que é uma gozação. Quanto ao trabalho de pesquisa de dois anos em ritmo “mouro”, soube que ele não estava sozinho, ao contrário de mim quando organizei o livro de Francis (além disso, montar verbetes é bem mais complicado do que juntar artigos). Mas não desmereço a empreitada, não tanto que a destacamos em capa. Um abraço,

Daniel Piza

A resposta evidencia que toda discussão racional se tornou impossível no presente caso, porque a discussão racional subentende a referência a um conjunto de dados que seja acessível a ambas as partes, e a diferença entre o comércio editorial e o estudo científico da literatura não está, ao menos no momento, acessível ao sr. Piza Nabolla.

Sua antologia de frases de Paulo Francis é o tipo da obrinha de ocasião, que nenhum repórter tarimbado levaria mais de uma semana para realizar, principalmente se composta, como é o caso do Dicionário da Côrte, exclusivamente de textos recentes, conservados nos arquivos eletrônicos dos jornais que os publicaram, e prontos para obeceder ao comando Copy and Paste do programa Word. Quanto a “montar os verbetes”, por enigmática e prestigiosa que se anuncie esta expressão, consiste apenas em colocá-los em ordem alfabética, tarefa que, se pode apresentar dificuldades temíveis desde o ponto de vista do sr. Nabolla, não deve ter sido tão árdua para o seu computador, mesmo que não se tratasse de um pentium e sim — como o próprio sr. Nabolla — apenas de um pentelium.

Que o sr. Piza Nabolla enalteça até às nuvens a micharia que, com atrozes dores de parturiente, foi tudo quanto até hoje o seu cérebro criador pôde dar ao mundo, é coisa que não se deve estranhar, pois, afinal, até as ratazanas lambem as crias, sem nojo algum e até com ares de quem pariu coisa que preste.

Que, porém, ele o faça em detrimento de algo como os Ensaios Reunidos, alegando que “montar verbetes é bem mais complicado do que juntar artigos”, só mostra que não tem a menor idéia do que seja a pesquisa e edição de textos literários. Não posso, evidentemente, argumentar com alguém que ignora tão completamente um dado essencial da discussão. Mas esse dado é acessível a qualquer aluno de letras e é, na verdade, a condição prévia para o ingresso nos estudos literários, de vez que nenhum estudante incapaz de distinguir entre uma simples publicação comercial e um documento preparado para uso científico logrará chegar ao fim do primeiro ano de faculdade.

A proliferação dos erros produziu a multiplicação das explicações“, dizia Joubert. É verdade, mas não vejo sentido em ficar explicando ao sr. Piza Nabolla que a pesquisa de jornais extintos, em arquivos de quatro Estados, seguida de cotejo e anotação de 3.000 páginas de originais defeituosos e da redação do primeiro estudo abrangente sobre o seu autor, não é propriamente “juntar artigos”. Ele teria a obrigação de saber disso, ou, não o sabendo, pelo menos deveria ter imaginação bastante para fazer uma idéia da coisa. Mas a imaginação pressupõe o senso das proporções, que, já se viu, falta completamente ao sr. Nabolla.

Que a responsabilidade de um caderno de cultura seja entregue a um sujeito capaz de expor com tanta candura sua ignorância dos elementos básicos da investigação literária, eis um fato que ilustra, mais que qualquer outro, o estado de completo descalabro a que chegou a nossa imprensa soi disant cultural.

Mas não é somente no aspecto intelectual que o sr. Nabolla Piza está bem abaixo das responsabilidades que nominalmente lhe incumbem. Pelo lado moral ele não está nada melhor. Pois, além de ser um ignorante presunçoso, é também um mentiroso e um difamador.

Mentiroso, porque simplesmente não é verdade que ele preparou sozinho o Dicionário da Côrte de Paulo Francis — antologia de autor vivo que contribuiu pessoalmente para a feitura da obra, não só lendo e aprovando a seleção, mas escrevendo-lhe o prefácio (Dicionário da Côrte de Paulo Francis, São Paulo, Companhia das Letras, 1996).

Difamador, porque a frase “soube que ele (Olavo de Carvalho) não estava sozinho (na preparação do livro de Carpeaux)” é um primor de ambigüidade perversa, destinado a deixar no leitor a impressão de que meus méritos não são somente meus, mas também de algum misterioso ghost writer.

Sim, porque essas palavras não podem se referir a meus auxiliares — pesquisadores, revisores, artistas gráficos —, a cujas contribuições, ostensivamente listadas e reconhecidas no começo do livro, nada deve o meu trabalho pessoal de intérprete e biógrafo de Otto Maria Carpeaux.

Ninguém, para referir-se a fato público e notório, usa a expressão “soube que…”. Ao contrário: este modo de dizer alude a alguma informação discreta ou sigilosa, a que o falante teria tido acesso por meios especiais. Ao usá-la, o sr. Piza Nabolla tenta deixar o leitor com a pulga atrás da orelha, perguntando a si mesmo: “Qual será o cérebro que move o Olavo de Carvalho?”.

Da minha parte, não tentarei incutir na mente dos leitores pergunta semelhante no que concerne ao fofoqueiro que pretende assim minar minha reputação: ninguém daria atenção às minhas insinuações, pois todo mundo já sabe que nenhumcérebro move o sr. Nabolla.

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de José Ingenieros

República Popular das Letras

Seção de Alistamento de Militantes, Amiguinhos e Puxa-Sacos em Geral

Últimas Adesões ao Pacto de Silêncio
(ou: Consenso Nacional da Vaca Amarela)

Nós, abaixo assinados, comprometemo-nos, pela nossa honra profissional, a nada informar ao público leitor sobre os trabalhos de pesquisa, introdução e notas realizados pelo sr. Olavo de Carvalho para a edição dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux.

Signatário Publicação Data
Nelson Ascha Kessab Folha de S. Paulo 14 de julho de 1999
Luiz Paulo Roberto Pires Noronha O Globo 22 de julho de 1999
Rosane Pavam e Pavamzinho Gazeta Mercantil 25 de julho de 1999
Daniel Piza Nabola Gazeta Mercantil 25 de julho de 1999

Aguardam-se novas adesões a qualquer momento.

Traidores e Adversários do Pacto

“Fico devendo a Olavo de Carvalho, ao editor José Mário, da Topbooks, e à UniverCidade Editora, que patrocinou o livro, uma das minhas maiores alegrias em tantos anos de estrada, na vida em geral, na literatura em particular.”

CARLOS HEITOR CONY, Folha de S. Paulo, 15 de julho de 1999.

“O ensaio biobibliográfico de Olavo de Carvalho é muito bom porque consegue fazer distinções que a esquerda brasileira jamais conseguiu.”

ALBERTO DINES, carta a José Mário Pereira, 13 de julho de 1999.

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