Leituras

A Justiça brasileira perante a Nova Ordem Mundial

Mensagem enviada por Olavo de Carvalho ao II Encontro Regional da Justiça do Trabalho da 15ª Região, S. José do Rio Preto, SP.

26 de agosto de 1999

Impossibilitado de estar fisicamente presente a esse simpósio, atendo ao gentil convite do TRT de Campinas enviando como representantes, desde o outro lado do oceano, alguns exemplares dessa espécie de seres, por natureza, alados e aéreos: as palavras. Num escritor, elas são os únicos atributos que importam; e talvez, desobstruídas de toda interferência da minha presença física, acabem me representando melhor do que eu mesmo. Dito isto, entro no assunto. De tempos em tempos ouvimos falar que a justiça brasileira está em crise. Crise é um estado de conflito radical entre os princípios fundamentais e as leis incumbidas, teoricamente, de realizá-los na esfera prática. Quando uma sociedade perde de vista os princípios que a inspiram e fundamentam, as discussões sobre as leis proliferam ilimitadamente, sem que ninguém tenha a certeza íntima e sincera de defender a opinião correta, pois só os princípios poderiam fundar esta certeza e nessa hora o que falta não são opiniões, mas justamente os princípios capazes de arbitrá-las. É aí que cada um procura tanto mais teimosamente persuadir os outros quando menos persuadido ele próprio se encontra. Ao mesmo tempo, junto com as opiniões, proliferam as próprias leis, numa tentativa estéril e vã de ordenar por fora aquilo que por dentro já não é senão fragmentação e desordem no meio da cegueira geral.

Recentemente, um amigo meu, o advogado Cândido Prunes, me informou que, só no que concerne a um item específico e limitado — a alocação de recursos do orçamento federal —, o número de dispositivos legais já sobe a 5.200, entre leis, decretos, medidas provisórias, etc. etc. Idêntico florescimento quantitativo observa-se em muitos outros domínios da legislação, entre os quais é até covardia mencionar o direito tributário. A multiplicação das normas vigentes tem dois efeitos bastante óbvios: em primeiro lugar, elas perdem sua força normativa, já que cada uma é atenuada, mediatizada, desviada e eventualmente, na prática, até mesmo neutralizada por uma centena de outras. Em segundo lugar, se considerarmos — para voltar só ao caso do orçamento — que só raríssimos seres humanos são capazes de decorar 5.200 versos, quanto mais 5.200 normas, a situação assim criada torna nulo e sem efeito um dos princípios fundamentais, que é aquele segundo o qual ninguém tem o direito de alegar desconhecimento da lei. Na prática, ninguém tem mais é a possibilidade de alegar, verossimilmente, o CONHECIMENTO da lei. Nenhum brasileiro pode hoje, nos atos mais simples da vida comercial, familiar, funcional, etc., acreditar que sua simples boa-consciência espontânea seja um indicador confiável de que ele está dentro da lei. Quando as leis se transformam num emaranhado inabarcável a olho nu, a prudência recomenda que o cidadão esteja ciente de que a qualquer momento pode estar cometendo alguma infração sem perceber.

Eis aí um exemplo de conflito radical entre um princípio e as leis que, teoricamente, deveriam ser o seu prolongamento lógico. Ao contrário do que acontece no domínio do puro pensamento teórico, onde as conseqüências derivam das premissas linearmente e sem desvios, no curso tortuoso da vida histórica acontece que as conseqüências se voltam contra as premissas e, numa rebelião suicida, revogam seus próprios fundamentos. Isso é o que se denomina uma crise da justiça.

A expressão “crise da justiça” parece denotar, desde logo, o império da injustiça. E o império da injustiça, por sua vez, não pode apresentar outra aparência senão a de um caos sangrento, a luta de todos contra todos. Será isso o que ocorre no Brasil?

Algo na vida cotidiana de algumas grandes capitais parece confirmar esse diagnóstico. A atmosfera de medo, brutalidade e desconfiança, o banditismo triunfante e auto-satisfeito, a insubordinação e corrupção de tantos funcionários do Estado — tudo isto confirma a veracidade ao menos parcial do diagnóstico de injustiça generalizada que se associa espontaneamente à expressão “crise da justiça”.

No entanto, quem percorra o interior do Brasil, tanto o campo quanto as pequenas cidades nas quais se distribui a maior parte da nossa população, ou mesmo as capitais de província que ainda não entraram em crescimento canceroso e conservam proporções compatíveis com a escala humana, não encontra nada daquela turva e inquietante desordem que sacode as capitais maiores. Mesmo nas regiões mais pobres, onde a desigualdade social mais pronunciada deveria — se a violência tivesse causas econômicas — produzir os maiores distúrbios, o que se observa ainda é o mesmo bom e velho povo brasileiro de sempre, ordeiro, pacífico, sempre mais inclinado a enfrentar suas dificuldades pelo trabalho e pela oração do que a jogar as culpas sobre outras pessoas (mesmo quando estas têm de fato uma parcela de culpa nada pequena) e sempre resistindo, com uma serenidade milagrosa, à tentação da amargura e do ressentimento.

Em 1997, num debate de que participei em Porto Alegre, defrontei-me com o sr. João Pedro Stedile, o qual, agitando os braços e elevando a voz, proclamava existir na área rural brasileira “um estado endêmico de violência”. Com toda a calma, mas sem poder conter de todo o riso ao menos discreto que a situação me inspirava, apelei ao testemunho do próprio sr. Stedile, que dizia uma coisa enquanto orador e outra completamente diversa enquanto escritor. Pois o livro de sua autoria, “A Questão Agrária no Brasil”, do qual, por uma dessas coincidências providenciais, um exemplar tinha vindo parar às minhas mãos algumas horas antes do debate, informava que em toda a extensão do campo brasileiro, onde se concentram mais de 30 por cento da nossa população, o número de homicídios, ao longo da última década, não tinha passado de 40 por ano, um número inferior ao registro, não digo anual, mas mensal, de qualquer delegacia de bairro nas grandes capitais. O número, se algo provava, era que o campo era ainda, como sempre, a região mais pacífica do Brasil. E esse número seria ainda reduzido pela metade se líderes apressados como o próprio Sr. Stedile, incitando e comandando invasões sem sentido nem proveito, não tivessem precipitado artificialmente situações de ódio que uma estratégia mais inteligente e mais humana teria evitado, alcançando com menos dores os objetivos de um movimento que, em si, nada tem de injusto.

O sr. Stedile não deve ter apreciado muito essas observações, pois, quando chegou a sua vez de me interpelar, recusou-se a fazê-lo, bufando, esfregando nervosamente as mãos e alegando que seu oponente não merecia a honra de ser interrogado, afirmação que interpretei como sinal de que suas perguntas, se as fizesse, teriam sido demasiado científicas para os meus parcos recursos intelectivos.

Mas conto esse episódio só para ilustrar que, em plena crise da justiça, reconhecida e proclamada por todos, o estrato mais profundo da vida brasileira, a vida do povo brasileiro, permanece obediente a regras tradicionais de convivência que nem a confusão das leis, nem a perplexidade dos intelectuais urbanos, nem a brutalidade e a corrupção das grandes cidades lograram abalar.

Ao dizer isto, acabo de formular um problema. Problema, dizia Ortega y Gasset, é consciência de uma contradição. Porque o fato é que nós, homens letrados, professores, jornalistas, doutores, bacharéis, nos atormentamos diante da crise da justiça, que para nós significa desorientação e caos, significa não saber o que fazer, significa perplexidade e dificuldade para discernir o certo e o errado, enquanto no interior do Brasil os homens iletrados, o povão que com tanta empáfia denominamos ignorante, parece perfeitamente orientado, perfeitamente sabedor do certo e do errado, perfeitamente capaz de obedecer quase que por instinto às regras não escritas que tradicionalmente ordenam as relações entre os homens, os grupos, as famílias, e permitem que a vida, mesmo no meio de tantas dificuldades e desventuras, ainda tenha um rosto humano.

A justiça está em crise? Sim, a justiça escrita está em crise. Os papéis avolumaram-se, os registros acumularam-se, as decisões de tantos legisladores e intérpretes foram formando uma montanha densa de enigmas e impossibilidades, até o ponto em que os tribunais inferiores, não sabendo o que fazer, têm de chutar cada vez mais os problemas para os escalões superiores e estes, como se fossem deuses, têm de arbitrar o inarbitrável, inteligir o ininteligível e produzir justiça desde o acúmulo de injustiças.

A última coisa que eu desejaria ser, hoje, é ministro do Supremo Tribunal Federal. Contaram-me que cada uma dessas criaturas tem de examinar, em média, oito processos por dia. Algum de vocês já teve de tomar na vida uma decisão forçada pela urgência das circunstâncias? Pois esses senhores tomam uma atrás da outra, incansavelmente, movidos a comprimidos para não dormir e a enxertos de pontes de safena. Sim, a justiça dos homens letrados está em crise.

Essa crise, para piorar, não vem só de dentro. De todos os lados, vendo a justiça vacilar, outros homens letrados perdem a confiança nela e a atacam, desejando subjugá-la, pedindo que seja submetida a controle externo — como se o controlador não tivesse de ser em seguida controlado por outro controlador, e este por outro, e assim por diante infindavelmente, e como se a proliferação dos controles não fosse, por si própria, a prova mais eloqüente do descontrole do conjunto.

Mas, no meio de tanta celeuma e desorientação geral, olhem em torno. Não verão um povo descontrolado e possesso, mas um povo tranqüilo e firme, fiel a normas de senso comum que ninguém lhe ensinou, que parecem vir espontaneamente do fundo das épocas ou talvez do fundo da natureza das coisas. Esse povo, que desconhece as leis, parece conhecer mais profundamente que nós, letrados, os princípios que as fundamentam. Eles bastam para orientá-lo nas questões básicas da vida, pelo menos até o ponto em que é necessário recorrer à justiça dos letrados, porque aí tudo se complica formidavelmente.

Não é de hoje que esses dois Brasis coexistem em camadas separadas e mutuamente impenetráveis como o óleo e a água: o Brasil da ordem costumeira, lento, firme, seguro de si, e o Brasil das leis escritas, nervoso, inquieto, sempre devorando-se a si mesmo em acessos furiosos de autodestruição em que o proibido se torna obrigatório e o obrigatório proibido.

Não será precisamente nesse descompasso entre a vida e as leis que reside a famosa “crise da justiça”?

Nesse caso, a justiça brasileira não está em crise só neste momento. Ela viveu em crise, pelo menos, desde o século passado.

As leis são obras de gente letrada, e a gente letrada tem o hábito de olhar menos para o povo iletrado do interior do que para as gentes ainda mais letradas do Exterior. Sim, desejamos acompanhar as transformações do mundo, temos medo do que vão dizer de nós em Nova York e Paris, tememos ser chamados de atrasados e caipiras. Por isto, tão logo alguma nova doutrina surge por lá, nos apressamos a remoldar por ela todo o conjunto das nossas leis. Nossas constituições, que se sucedem velozmente, refletem menos a ordem real da nossa vida do que os ideais da classe letrada, a que o povo permanece profundamente indiferente. Não as fizemos para expressar o que realmente somos, para manifestar por escrito os princípios que governam a nossa vida. Ao contrário: fizemo-las para ser o que não éramos, fizemos para nos tornar, por obrigação escrita, aquilo que, de olho num mundo em rápida transformação, as classes letradas desejavam que fôssemos. Repetidamente, nós, o povo, temos decepcionado essas grandes esperanças dos reformadores. Repetidamente temos insistido em ser somente o que somos.

A crise atual da justiça, novamente, sacode as classes letradas sobre o pano de fundo da indiferença popular, reiterando o descompasso entre os dois Brasis.

No momento, porém, a crise apresenta um componente novo, ausente em todas as mudanças anteriores, traumáticas o quanto fossem, com que procuramos adaptar a um mundo em mudança um povo que quase sempre insistia em não mudar. É que antes nos limitávamos a copiar, com admiração e inveja, as novas normas produzidas no Exterior. Éramos nós, os letrados brasileiros, que íamos no encalço da moda.

Agora, os novos moldes não esperam até que os copiemos. Já não somos nós que os procuramos. São eles que nos procuram, são eles que se impõem, respaldados em poderes incalculavelmente vastos que decidem os destinos do mundo e não nos perguntam se concordamos.

As novas normas, os novos valores, as novas leis, os novos critérios vêm prontos do Exterior e não querem saber nossa opinião. Os nos adaptamos, ou somos jogados para fora dos trilhos da História, ou ao menos para fora do mundo economicamente real. Nossa única escolha é entre a obediência e a exclusão. Eis a justiça brasileira ante a Nova Ordem Mundial.

Crise da justiça? Esta expressão, como vimos, tem sentido duplo. Designa, de um lado, a confusão geral entre os doutores, à qual o povo permanece largamente indiferente, regido, como sempre, por princípios e costumes que ele não aprendeu com os doutores. Este é o sentido imediato da expressão “crise da justiça”.

Mas, numa escala histórica mais duradoura, ela designa o descompasso permanente entre a esfera das leis escritas, sempre em mudança para acompanhar o ritmo do mundo, e a vida do povo brasileiro, que, assentando-se nos princípios e na autoconfiança da consciência limpa, não precisa conhecer as leis para agir de maneira correta e sã.

Há duas crises da justiça brasileira: a nova e a velha. A nova reflete a dificuldade que as classes letradas encontram para criar um aparato judicial que funcione tão bem quanto se supõe que funcione a justiça de tal ou qual país dito mais avançado. Essa crise reflete o desejo das classes letras de lutar contra o arcaísmo, o desejo de entrar na modernidade.

Mas a crise mais velha, o divórcio entre leis e costumes, agrava-se precisamente na medida em que a classe letrada vai mudando as leis antes mesmo que o povo tenha se dado conta de que elas existem. Por isto dizia Euclides da Cunha: “Estamos condenados ao progresso.” Sim, condenados: o progresso, a modernidade, nos vem sempre de fora, de repente, como um traje apertado que nunca nos cabe direito.

Enquanto esse desajuste consistiu apenas numa diferença de ritmo entre as classes letradas e o povo, foi sempre possível alguma solução de compromisso, graças ao gênio brasileiro do meio-termo, da conciliação, das soluções práticas fundadas num acordo tácito de descumprir as leis da maneira mais legal possível. Mas agora já não são as nossas classes letradas que buscam adaptar-se a um modelo estrangeiro admirado e invejado. Agora é o próprio modelo que chega de repente e nos impõe, do dia para a noite, as mais bruscas modificações de costumes, de normas, de leis.

A modernidade bate à nossa porta, não como um portador de boas novas, mas como um oficial-de-justiça que nos traz uma intimação: adaptem-se ou morram.

A questão que se coloca para todos nós, nesta hora, é se esta adaptação supremamente radical e brusca não abrirá até às dimensões de um abismo intransponível o hiato já existente entre a cultura do nosso povo e as instituições legais com que as classes letradas procuram revesti-la. A questão é saber se, para ajustar-nos ao mundo, não nos desajustaremos definitivamente de nós mesmos, perdendo, para sempre, o senso de unidade cultural já tão enfraquecido por tantas adaptações anteriores. A questão é saber se, para adaptar-nos à Nova Ordem Mundial, não institucionalizaremos a desordem nacional, cristalizada no abismo entre a cultura popular e as leis.

A Nova Ordem Mundial, por si — garanto —, não está nem ligando para esse problema. O que ela quer é obediência, ajuste, concordância, coerência geométrica de um mundo arquitetado por engenheiros comportamentais para a maior glória do poder global. Se para tanto for preciso esmagar aqui e ali um país a mais ou a menos, quem se importa? O carro da História, dizia Trotski, esmaga as flores do caminho.

Entre o carro e as flores, deixo portanto vocês ante esse enigma, que não me cabe resolver em seu lugar.

Que cada um, no silêncio da sua intimidade, medite e receba, com a ajuda de Deus, a inspiração melhor, e que o pensamento de todos acabe por encontrar o caminho mais afortunado para este país.

Muito obrigado a todos pela sua atenção.

Obrigado

Olavo de Carvalho

9 de agosto de 1999

Prezados amigos,

Muito obrigado a todos pelas manifestações de solidariedade. O que mais me espanta nos fatos recentes é justamente que, ascendendo ao poder sem a menor resistência, arrombando uma porta aberta com a ajuda do dono da casa, a esquerda hidrófoba esteja de tal modo acostumada a seus privilégios de menina mimada, que já não suporta a mínima oposição, nem mesmo teórica e vinda de um homem só. Nada, nem um gesto, nem uma palavra pode contrariar as exigências da grã-senhora, que, imbuída de seu estatuto de dona de todas as virtudes, condena à morte, pelo crime de estar “despreparado para o debate democrático”, um simples cidadão isolado que ousou não gostar dela, desprezar os encantos da madame. Com isto, ela se desmascara: a prepotência raivosa da Rainha de Copas já permite vislumbrar nela os traços da velha prostituta que, no leste europeu e na China, se embriagou do sangue de cem milhões de pessoas.

No artigo que publiquei na Folha de S. Paulo na última quinta-feira, aplaudi a abertura da Unicamp para os trabalhadores rurais no ciclo “Realidade Brasileira” e critiquei a uniformidade ideológica das lições transmitidas, a ausência de um confronto entre posições diversas. Em resposta, fui acusado de ter preconceito contra os pobres e de não estar “preparado para o debate democrático”. A Novilíngua de 1984 já está, portanto, adotada como idioma oficial do Brasil.

Ato contínuo, chega-me a notícia de que estão tramando a minha morte. Isso já não é mais apenas a boa e velha incompreensão, a clássica sonsice do imbecil coletivo. É ódio insano, é demência assassina em busca de um bode expiatório.

Agradeço a todos os amigos a corajosa solidariedade com que me reconfortaram na hora do confronto com o absurdo máximo. Entre os que me escreveram, há pessoas de todas as orientações políticas e algumas sem política alguma, mas todas irmanadas no propósito de conservar a razão no meio do caos. E isto é, de fato, a única coisa que importa neste momento.

Nos próximos dias, através de minha homepage e de e-mails, procurarei manter os amigos informados do desenrolar dos fatos.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

PS – Entre centenas de e-mails que me trouxeram o conforto da solidariedade, um, um só, veio agravar a tristeza e o desgosto que, diante dos fatos que venho relatando, não posso evitar sentir. Num tom de certeza inquestionável, o sujeito declarava que eu havia “inventado essa história, um truque dos mais rasos”, e ainda afirmava que meus escritos se compunham de “xingamentos”, nada mais. O lado mais irônico do episódio é que, no meio de tantas preocupações quanto à minha vida e à dos meus, ainda tive a pachorra de responder a esse missivista, chegando a trocar com ele uns três ou quatro e-mails que já iam virando mais uma depois de tantas polêmicas de imprensa. Foi só aos poucos que me dei conta do desatino em que ia entrando. O cidadão me surpreendia no momento mais difícil de minha vida, me disparava meia dúzia de injúrias, me chamava para o mais extemporâneo dos bate-bocas — e eu, como se tivesse todo o tempo e todo o sossego do mundo, ainda lhe concedia a honra de uma resposta! Há momentos em que a boa-fé se torna uma insensatez suicida. Acostumado, como professor e conferencista, a nunca recusar explicações nem mesmo ao mais estúpido e mal intencionado dos perguntadores, pois afinal ser professor é investir naquele fundo de honestidade que se pressupõe existir em todo ser humano, lá ia eu de novo, como se diz, dando bom-dia a cachorro e chamando gato de “meu tio”. De fato, quando a crueldade mental ultrapassa um certo ponto, ela estonteia de tal modo sua vítima que esta não se dá conta do que está se passando e cai numa passividade sonsa que se oferece, indefinidamente, a novos maus tratos. A malícia, a perversidade, a torpeza de mentalidade necessárias para puxar naquela hora aquele tipo de duelo verbal eram quase inimagináveis — e, por isto mesmo, custei a imaginá-las e percebê-las. Quando dei por mim, já havia perdido horas preciosas dando explicações a quem, no fundo, não as queria nem um pouco, e tanto não as queria que, sem pedi-las, me havia julgado e condenado como inventor de minha própria desgraça, sem precisar, para tanto, de outro fundamento lógico senão sua convicção de que a esquerda brasileira é boa e eu sou mau. Por uns instantes pensei em reproduzir aqui as cartinhas infames. Depois examinei melhor o assunto, e julguei que não era o caso. Para que expor com detalhes a baixeza de quem procurava transformar um frustrado assassinato físico num bem sucedido assassinato moral? Não, não vou insistir nisso. Não é preciso nem mesmo dar o nome do remetente. Ele sabe quem ele é — e não há nada no mundo que possa libertá-lo deste castigo.

A missão civilizatória de Otto Maria Carpeaux

A reedição da obra do ensaísta austrobrasileiro, resgata oscholar por trás do jornalista e instaura mais uma polêmica do filósofo Olavo de Carvalho.

por José Maria e Silva

Publicado no Jornal Opção de Goiânia, 8 de agosto de 1999

Numa tacanha reedição do autopreconceito que norteava a corte de Dom Pedro II, sempre voltada para as idéias importadas de Paris, a universidade brasileira, com seus cursos de mestrado e doutorado, ainda não descobriu verdadeiramente o Brasil. As idéias que proliferam na academia são quase todas importadas e — mais grave — sequer são traduzidas (primeira condição para se assimilar e disseminar qualquer cultura estrangeira). Mestres e doutores preferem ler o mundo em inglês, como se algumas idéias da humanidade só pudessem ser expressadas nesse novo latim, a língua do deus-mercado. Só isso explica o descaso quase total com que a universidade trata a obra de um intelectual como Otto Maria Carpeaux, um dos grandes humanistas que marcaram a cultura brasileira neste século.

Felizmente, a obra de Carpeaux está voltando à cena. A Faculdade da Cidade, do Rio de Janeiro, e a Editora Topbooks estão lançando os Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux, organizados pelo filósofo Olavo de Carvalho. A obra sairá em dez volumes. O primeiro, que já está chegando ao mercado, reunirá os ensaios que vão de A Cinza do Purgatório, seu primeiro livro publicado no Brasil, em 1942, até Livros sobre a Mesa. Os dois volumes seguintes serão dedicados aos ensaios dispersos, recolhidos por Olavo de Carvalho e pela equipe que comandou. Obras históricas breves é o tema do quarto volume e os Ensaios políticos ocuparão o quinto e o sexto volumes. A seguir, do volume sétimo ao décimo, será reeditada um monumento de Carpeaux — sua História da Literatura Ocidental.

Todo esse ambicioso empreendimento editorial nasceu de um projeto de pesquisa coordenado pelo filósofo Olavo de Carvalho e financiado pela Faculdade da Cidade. Entretanto, por ser tão combativo hoje quanto Carpeaux o foi em seu tempo, Olavo de Carvalho não vem recebendo os devidos créditos por seu trabalho. Folha de S. PauloGazeta Mercantil e O Globo, mesmo reconhecendo a importância da edição dos ensaios de Carpeaux, a ponto de concederem-lhe fartura de páginas e fotos, limitaram-se a mencionar, de passagem, o nome de Olavo de Carvalho, desconhecendo o brilhante estudo introdutório que o filósofo escreveu para a reedição dos ensaios de Carpeaux. Nesse ensaio, disponível na Internet, Olavo de Carvalho dimensiona, com agudeza crítica, o humanista e o militante, o erudito e o panfletário.

O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony foi um dos poucos a reconhecer o trabalho realizado por Olavo de Carvalho. A respeito, escreveu: “Curiosamente, Carpeaux e Olavo não se conheceram. Um dos desencontros que eu considero mais cruéis do destino, uma vez que os dois, guardadas as posições radicalmente pessoais de cada um, tinham um approach idêntico da condição humana. Até mesmo na capacidade da exaltação e da polêmica. De minha parte, considero-me redimido por encontrar na presente edição das obras de Carpeaux o sonho que persegui durante anos mas para a qual não tive tempo e competência para realizá-lo”. Já o editor Daniel Piza, da Gazeta Mercantil, e o ensaísta Nelson Ascher, da Folha de S. Paulo, estão sendo chamados por Olavo de Carvalho, respectivamente, de Nelson Ascha Kessab e Daniel Piza Nabolla. Os dois subestimaram o trabalho realizado pelo filósofo paulista.

Em seu estudo sobre Carpeaux, Olavo de Carvalho tenta compreender o quase esquecimento a que sua obra vinha sendo relegada, apesar do enorme sucesso que fez em vida de seu autor. Para Carvalho, isso se deve a complexa personalidade intelectual de Carpeaux. “As dificuldades aparecem quando começamos a comparar um escrito com outro, em busca da unidade de pensamento que subentendem”, escreve o filósofo. “Aí descobrimos, por exemplo, que esse militante da esquerda, perseguido e censurado pela ditadura reacionária, compartilhava das temerosas reservas de Ortega y Gasset ante a rebelión de las masas; que esse apologista da revolução cubana tinha horror da politização geral da cultura; que esse denunciador das mazelas do capitalismo fazia a apologia do economista Friedrich Hayek, precursor do neoliberalismo; que esse ídolo dos estudantes brasileiros sentia o mais fundo desprezo pelo “proletariado intelectual”, as massas de bacharéis que as universidades despejam todo ano na atividade cultural e política, vazios de cultura superior e intoxicados de slogans demagógicos”.

Apesar de ter-se tornado um ídolo da juventude de esquerda, protagonizando, já sexagenário, o combate de rua ao regime militar, Carpeaux, para Olavo de Carvalho, é “exatamente o avesso de um marxista: não acreditava na primazia do econômico, enfatizava a importância dos fatores espirituais e identificava mesmo de vez em quando, nos movimentos da História universal, sinais misteriosos de uma intervenção da Providência, o que o tornava mais próximo de Bossuet que de Marx”. Mesmo afirmando que, com o passar dos anos, Carpeaux foi afetado “atmosfera brasileira dominada pelo marxismo”, Olavo de Carvalho sustenta que, “em seus últimos ensaios críticos — contemporâneos de suas mais violentas polêmicas antiamericanas — ele mostra um senso da supratemporalidade que só pode ser diagnosticado como idealista ou como cristão e que é estranho a toda sensibilidade marxista”.

Olavo de Carvalho argumenta que, para Carpeaux, o “passado é o juiz do presente”, que o crítico austrobrasileiro tinha uma devoção quase religiosa pelos monumentos literários inscritos na tradição. Entretanto, acrescenta o filósofo que “o passado, para Carpeaux, não tinha jamais a pompa venerável e inofensiva de um leão empalhado”. E observa: “Levado por sua formação e pela contínua meditação da história à tranqüilidade compassiva de uma contemplação que tudo perdoa porque tudo compreende, Carpeaux continuou no entanto, por temperamento, um homem combativo, inflamado, capaz de arrebatamentos de cólera na defesa de posições que para ele tinham significação menos política do que moral”.

Acerca da revolução operada na vida de Otto Maria Carpeaux, com sua mudança para o Brasil, onde teve que aprender o idioma desconhecido aos 40 anos, Olavo de Carvalho conclui: “Seus primeiros ensaios mostram o intuito evidente de transportar para o Brasil o legado dessa visão essencialmente austríaca de uma unidade civilizacional anterior — ou posterior — à fragmentação moderna. Essa visão indicava claramente o sentido de uma nova paideia, que poderia ter sido a matriz de uma nova e mais poderosa cultura brasileira. Poderia ter sido, mas não foi. Os elevados propósitos de Carpeaux pairavam muito acima das cabeças do seu auditório. Reconheceram nele apenas o mais visível, o exterior: a erudição germânica, a introdução de novos autores até então desconhecidos no meio brasileiro”. Para Olavo de Carvalho, a visão universal que Carpeaux oferecia ao país foi apagadas por arraigadas “filosofias provincianas”, que reduziram Carpeaux apenas um “interessante divulgador jornalístico”, fazendo que nunca ele fosse enxergado “por inteiro”. Quem sabe, agora, com os Ensaios Reunidos, isso seja possível.

Quem foi Carpeaux

Otto Maria Karpfen nasceu em 1900, em Viena, filho do advogado e pianista Max Karpfen e da violonista Gizela Schmelz Karpfen. Aos 20 anos, ingressou na Faculdade de Direito, que abandonou para estudar química, física e matemática e filosofia e letras, na Universidade de Viena. Em 1925, obtém o título de doutor e começa a trabalhar como jornalista. Casou-se, em 1930, com Helena Silberherz. Em 1939, com a eclosão da Segunda Guerra, mudou-se para o Brasil, naturalizando-se brasileiro cinco anos depois. Carpeaux exerceu o jornalismo no lendário Correio da Manhã, onde trabalhavam intelectuais como Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Holanda, e foi diretor da biblioteca da Faculdade Nacional de Filosofia e da biblioteca da Fundação Getúlio Vargas. Crítico do regime militar, chegou a ser preso, por algumas horas, em 1967. Morreu no dia 3 de fevereiro de 1978, vítima de infarto.

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