Leituras

Entre dois silêncios

Mendo Castro Henriques

Euronotícias, Lisboa, 2 de junho de 2000

netmendo@mail.telepac.pt

“Quem é ?” Foi assim que o mundo recebeu o Cardeal Karol Wojtyla, Arcebispo de Cracóvia, quando o colégio dos cardeais o elegeu Papa, a 10 de Outubro de 1978. Havia quem o conhecesse do Concílio Vaticano II onde marcara posição com uma proposta sobre a importância da liberdade religiosa, para católicos e não-católicos. Mas a população na praça de S. Pedro, à espera de fumo branco, recebeu com um longo momento de silêncio, registado pela televisão, o primeiro papa não-italiano em 456 anos, e o primeiro polaco entre os 264 papas da história da Igreja.

Após o silêncio, todos passaram a comunicar facilmente com este homem nascido a 18 de maio de 1920, em Wadowice, e forjado no grande caldeirão do séc. XX que é a Polónia. Aí se tinham cruzado Nazismo e Holocausto, Comunismo e Gulag, autoritarismo e democracia. E o jovem Wojtyla que dera provas de poeta, filósofo, operário, actor, desportista, e poliglota, tornou-se sacerdote antes de ficar a pessoa melhor informada no mundo e o papa mais viajado da história. Assim conduziu a Igreja para o séc. XXI.

Foi este indivíduo, nascido no segundo mundo, pontífice com sede no primeiro mundo e viajante e evangelizador incansável do terceiro mundo, que quis trazer para a Igreja os que se sentiram frequentemente isolados e alienados pelos muros do Vaticano. Mostrou sabedoria e senso comum e qualidades de comunicador ímpar. Não discriminou ninguém, de acordo com o seu motto mariano totus tuus. E não obstante a tentativa de assassinato a 10 de Maio 1981, tem demonstrado pelos anos fora capacidade crescente para Atravessar o Limiar da Esperança, título de um seu livro de 1996. Não se cansa, nem sequer à medida que se aproxima um segundo silêncio na sua vida.

Mas é tudo menos um super-homem. As imagens e as realidades do pontificado de Karol Woytyla irão sugerir muitos mitos sobre JP II, a celebridade. E haverá também forças interessadas em secundarizar a sua acção, esquecendo que ele é porta-voz de um movimento que não começou nem terminará com ele e que impulsiona a abertura da sociedade. João Paulo II ensinou a humanidade – porque é de todos que ele cuida – a não se deixar dominar por um poder unidimensional.

Nos 22 anos de pontificado que já conta, o papa ajudou a Igreja a forjar uma voz social e política isenta. Com os fundamentos teológicos cristãos, ensinou que o poder dos valores deve equilibrar os valores do poder. Outra coisa não se poderia esperar de quem conheceu as encruzilhadas políticas do totalitarismo. Mas a coragem, a inteligência e a moderação necessárias para esta mensagem são um seu dote pessoal, indispensável para cristãos e não-cristãos. Os não-cristãos têm que perceber que a liberdade fica mais defendida por uma voz da Igreja que contribui para quebrar a possibilidade de qualquer monopólio do poder –americano, europeísta, asiático, seja o que for. Os cristãos têm que interiorizar que nunca mais a Igreja utilizará os aparelhos de poder para impor uma sociedade de verdade única, mas que, em democracia, integra a sociedade civil com obrigações e direitos perante o Estado e o sector privado.

Com que forças conseguiu o papa incutir este exemplo num mundo de forças e de poderes ? Qual, afinal, o poder do papa e da Igreja ? A Igreja Católica não tem força militar; a potência económica da Santa Sé é débil; os cristãos são fisicamente perseguidos em muitos países. O que move as populações do Brasil, África, Europa, Filipinas a ter esperança nas palavras do papa? O que nos toca nas mensagens para as vítimas de Hiroshima e de Auschwitz, bem como da Bósnia, Kossovo, Tchetchénia e Kalisz ? O que o move nos pedidos de perdão e de reconhecimento dos erros da Igreja ? O que faz dele um papa quase português com devoção a Fátima ? É evidente mas não é demais repetir.

Toda a religião possui elementos políticos e o desempenho de um político e de uma política é avaliado segundo três dimensões: bem comum, eficácia, e valores. Mas enquanto o alcance de bem comum e eficácia também possam ser distorcidos e manipulados em democracia, o sentido dos valores sai do controle público devido aos fundamentos culturais; para o Papa, devido aos fundamentos religiosos. Em tempos recuados chamava-se a isto o poder espiritual, mas nem tudo ficou igual desde a célebre carta de 496 do Papa Gelásio ao Imperador Anastácio. Felizmente.

Ora o papa possui uma filosofia rigorosa sobre a supremacia individual perante os poderes da colectividade. Numa época de cultura de morte, guerras não-declaradas, genocídio, eutanásia, aborto e outros derivados do totalitarismo no Ocidente, e de exploração e pobreza imposta por políticos corruptos no terceiro mundo, o papa apresenta-se como o grande representante do poder dos valores. Numa época em que os media propagam banalidade, brutalidade, egoísmo, desconfiança, ele apela ao amor e à solidariedade, e mostra como vale a pena viver a humanidade. Ninguém pode viver os valores por ninguém. E esta mensagem, na linguagem das filosofias ou na linguagem de Jesus Cristo, não é manipulável.

JP II adquiriu um saber de experiência nativa. Lutou contra o totalitarismo nazi na 2ª guerra. Opôs-se ao comunismo na sua Polónia desde a década de 40. Na primeira metade da década de 1980, papa e Igreja foram um ponto seguro para o sindicato Solidariedade. Os acontecimentos de 1989, como mostra na encíclica Centesimus Annus de 1991, foram possibilitados pela actuação polaca. A história confirma que JP II estava decidido a regressar à terra natal caso os tanques soviéticos rolassem em Varsóvia. E em Junho de 1999, demonstrou na sua pátria por que razão materialismo e liberdade são rivais, e disputam a economia de mercado. A história dirá ainda, como afirmou o cardeal Sodano em 13 de Maio de 2000, que o terceiro segredo de Fátima também anuncia o fim da guerra fria.

O exemplo polaco multiplicou-se e permitiu ao Papa adquirir uma voz social e política absolutamente isenta que mudou a agenda da Igreja. O modelo repetiu-se com variações em todo o globo. À América Latina, o papa trouxe a sua intensa devoção individual e excelentes credenciais anti-totalitárias. No México e no Brasil, envergonhou os capitalistas de coração insensível à solidariedade. Em Cuba esteve contra o embargo comercial imposto pelos EUA e contra as violações dos direitos humanos por Fidel, mais preocupado com o sofrimento dos cubanos no actual regime do que com os resíduos comunistas do mesmo.

É um papa sem papas na língua. Chama subdesenvolvidos aos países com desemprego. Indicou que a unidade de Europa é somente possível com um retorno à fé cristã. Insistiu que cada nação deve conceder a instrução e a pesquisa científica a todos. No vácuo deixado pelo comunismo, JP II está cada vez mais incomodado pelo ídolos do capitalismo. Um ídolo é sempre um ídolo, mesmo que se pareça com um dólar. Nem o “padre” Nobel Kenneth Arrow – o mentor da Centesimus Annus – ensinou que o mercado resolve a distribuição de bens públicos. Nem JP II foi apenas um bom parceiro da guerra fria para os EUA.

Quando João Paulo II fala, a maioria das populações rejubila embora a maioria dos intelectuais ainda desconfie. Mas por que razão centenas de milhões de mulheres e homens escutam com cuidado e amor as suas palavras ? Talvez porque ele mostra, simplesmente, como vale a pena viver. Depois, é acusado de restringir o direito de escolha no uso das pílulas e preservativos, de estar contra o controle de nascimento, o aborto, a pena de morte, a eutanásia, contra as segundas núpcias após o divórcio, contra padres do sexo feminino, e pelo celibato no sacerdócio. Mas ninguém discute que ele defende acima de tudo a dignidade da vida humana.

Tendo nomeado mais de 3/4 quartos dos cardeais que escolherão o seu sucessor, e um grande número de bispos que um dia serão cardeais, João Paulo II estabilizou a agenda da Igreja para a geração vindoura. Seja qual for o sucessor – Carlo Maria Martini, Arcebispo de Milão, ou o Cardeal Camillo Ruini, ou o brasileiro Lúcio Moreira Neves ou, mais provavelmente nenhum destes três, a agenda da Igreja está traçada.

À medida que transitamos do séc. XX para o XXI, e do 2º para o 3º milénio, sente-se como o papa trabalhou, oportuna e inoportunamente, por toda a humanidade ao levar a Igreja onde ela foi desejada. Não é apenas o bilião de católicos que lhe deve estar grato. Ante o novo silêncio que se aproxima e os mitos que ficam pelo caminho, todos podem agradecer que alguém cuide da humanidade como o fez Karol Wojtyla, bispo de Roma e pastor universal da Igreja.

 

Condor Choca Militantes

Janer Cristaldo

Baguete Diário, 26 de maio de 2000

Para eles, as nações não tinham fronteiras e o palco de lutas era o planeta todo. Em 35, uma judia berlinense, oficial do Exército Vermelho soviético, veio coordenar a revolução no Brasil, assessorada por aparatchiks belgas, alemães, franceses e argentinos. Osvaldo Peralva, membro brasileiro do Kominform, sediado em Bucareste, ao denunciar a conspiração toda em O Retrato (Editora Globo, 1962), foi banido do mundo intelectual e classificado como agente da CIA. O que Peralva denunciou com conhecimento de causa foi mais tarde documentado por William Waack, no excelente Camaradas (Companhia das Letras, 1993), com pesquisas nos arquivos do Kremlin.

Em 36, foram todos para a Espanha, dar apoio bélico e moral a Stalin, que tentava imobilizar a Europa estrangulando-a com o controle do Mediterrâneo. Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres da Espanha em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: “Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas”. Aproveitando a vaza, um vigarista malaguenho fez fortuna internacional, dando o título de Guernica a um quadro em torno à morte de um toureiro.

Em 59, eles deram apoio logístico e de mídia a Fidel e Che, para instalar a mais longa ditadura da América Latina. De Paris, um filósofo feio, baixinho e confuso veio dar seu aval ao tirano do Caribe. Uma foto da época é das mais emblemáticas: Sartre, de pescoço espichado para o alto, adorando Castro como um Deus. Em La Lune et le Caudillo (Gallimard, 1989), Jeannine Verdès Leroux nos relembra este momento de extraordinária poesia.

— Todos os homens têm direito a tudo que eles pedem – pontifica Castro. – E se eles pedem a lua? – pergunta Sartre. O ditador retoma seu charuto e se volta para o filósofo baixinho: – Se eles pedem a lua, é porque têm necessidade dela.

Pediam a lua no bestunto do ditador e do filósofo. Em verdade, queriam dólares, pão e liberdade. Da mesma forma que a Espanha, em 36, foi um campo de treinamento para a Segunda Guerra, a América Latina era laboratório de experimentos sociais para os filosofadores europeus que, no dizer de Camus, assestavam suas poltronas no sentido da História.

Também dos salões de Paris vinha o apoio teórico a Che Guevara e seus celerados, através de Régis Debray, mais tarde ministro de Mitterrand. Che morreu em odor de santidade e hoje é cultuado na Bolívia, como San Ernesto de la Higuera. Danielle Mitterrand, a viúva enamorada pela figura romântica do guerrillero, dá apoio a guerrilha zapatista em Chiapas, comandada por um agitprop branco travestido de líder indígena, o subcomandante Marcos. E a mulher de Debray criou a biografia fictícia da guatemalteca Rigoberta Menchú, embuste que mereceu o prêmio Nobel da Paz de 92.

Nos anos 60, eles tentaram reeditar no Brasil a Intentona de 35. Para isso, foram treinados na China, União Soviética, Cuba e Argélia. Fracassados e escorraçados em 64, os sobreviventes migraram ao Chile para assessorar Allende e ao Uruguai para dar apoio aos tupamaros. De Cuba, vinha o brado de guerra: “un, dos, tres, mil Vietnãs”. Derrotados no Uruguai em 73 por Bordaderry, deixaram o país conhecido como a “Suíça latino-americana” em destroços, com mais da metade de sua população ativa refugiada no exterior. Para simbolizar o apoio de Cuba ao regime marxista que se instalara no Chile, Castro presenteou Allende com uma submetralhadora. Presente de grego: foi a mesma que o líder marxista usou para suicidar-se em 73. Derrubado o regime de Allende, eles rumaram à Argentina e Portugal, onde a “Idéia” estava em marcha. Em 76, instaura-se, com Videla, a ditadura militar na Argentina. Era o momento de dar de rédeas rumo a outros nortes.

Em 75, alguns militares lusos, entusiasmados com a derrocada de um salazarismo já moribundo, tentaram instalar na península ibérica a república socialista que os espanhóis já haviam exorcizado. A esperança migrara para Portugal. Ou para o Peru, onde o Sendero Luminoso e o Tupac Amaru assassinaram, nos 80, milhares de peruanos, sob a inspiração humanitária do Grande Timoneiro.

Era o que, em Paris, chamávamos de la grande randonée. Aventureiros de todos os quadrantes, alguns imbuídos de nobres ideais, outros de ressentimentos e vontade de poder, migravam de um país a outro para “fazer a Revolução”. Em qualquer geografia sentiam-se em casa: sempre havia um comitê para recebê-los como heróis e delegar-lhes novas tarefas. Só no Rio de Janeiro, o cardeal Eugenio Sales alugou 80 apartamentos para abrigar aparatchiks de toda a América Latina, que chegaram a acolher grupos de 150, simultaneamente. O total de militantes hospedados, entre 76 e 82, chegou a cinco mil pessoas.

Eles percorreram o século e o continente latino-americano, receberam doutrinação ideológica e treinamento de guerrilha em diversos países. Quem atesta esta internacionalização são os próprios guerrilheiros em suas memórias. Foram financiados pela China, ex-URSS e até pela miserável Cuba. Além de dispor santuários para onde quer que fugissem, gozavam de exílios confortáveis nas sociais-democracias européias. Se um aparatchik era preso na mais discreta fronteira do mundo, no outro dia manifestantes em Paris, Berlim, Estocolmo ou Londres pediam sua libertação. A luta não tinha fronteiras. Agora condenam, indignados, a chamada operação Condor.

Que horror! Os militares da América Latina trocavam informações e serviços para combatê-los. Isto me lembra um debate dos anos 70 em Estocolmo. Pacifistas denunciavam as Forças Armadas suecas, porque estas usavam armas que feriam e matavam. Um oficial, muito pedagógico, teve de vir a público para esclarecer: “a função de uma arma é ferir e matar”.

Consta que os responsáveis pela operação Condor até se comunicavam em código. Maquiavélicos, estes senhores.

Baguete

Caros umbigos

Olavo de Carvalho

22 de maio de 2000

Este texto não me pareceu caber em nenhuma das publicações para as quais tenho escrito. Ficou portanto na gaveta, ou melhor, no HD, de onde sai agora direto para esta homepage. – O. de C.

A revista Caros Amigos, de certo sucesso nos últimos tempos, é um mostruário significativo das idéias dominantes na intelligentzia nacional. Como essas idéias não são muitas, um exame da coleção completa basta para por à mostra o inteiro horizonte de consciência dessa gente – um quadro que se notabiliza menos pelo que abrange do que pela imensidão do que deixa fora.

A seleção é, em parte, intencional. Se personalidade quer dizer constância nas escolhas e rejeições, poucas publicações podem se gabar de ter tanta personalidade. Redatores, colaboradores e até entrevistados solidarizam-se num fundo de concordância ao qual a discussão de divergências menores dá o colorido que faz a unanimidade parecer menos de convicções que de atitudes. Isto revela a felicidade na escolha do nome, destinado a vender a imagem da intelectualidade progressista como um círculo de pessoas maravilhosas unidas espontaneamente pela força atrativa de suas virtudes e de seus encantos. Um espírito de companheirismo informal, sublinhado pelo estilo solto e popularesco da linguagem, dá uma tremenda força de sedução persuasiva à idéia subjacente de que todas as pessoas boas e inteligentes fazem parte da patota e se amam perdidamente.

Os jornalistas mais velhos não terão dificuldade em reconhecer aí a ampliação em escala nacional da atmosfera reinante na equipe da velha Realidade, da qual algumas estrelas brilham agora em Caros Amigos como numes tutelares a perpetuar o espírito da coisa. O culto do umbigo comum permitiu que essas pessoas permanecessem unidas ao longo de três décadas, acumulando um sentimento de identidade grupal tão forte que um dia pôde finalmente transbordar do círculo originário para abarcar toda a intelligenzia.

A destreza com que se reproduz essa imagem de edição em edição produz três efeitos bem previsíveis. O primeiro é a automática obtenção da cumplicidade do leitor: atraído pelo convite de juntar-se aos bons para ser um deles, ele logo se incorpora espiritualmente ao time, adquirindo por procuração o estatuto de pessoa maravilhosa.

O segundo incide sobre os infelizes que caiam no desagrado da patota. Num ambiente só de gente linda, qualquer feiúra, por mínima que seja, forma um contraste chocante. Ser reprovado pelos Caros Amigos não é ser criticado na imprensa: é ser expelido da esfera da bondade e do diálogo, é ser excomungado, é ser rejeitado para as trevas exteriores onde tudo é inominável malícia e perversidade. Para complicar ainda mais a situação da vítima, a referência pejorativa aos de fora é feita com aquela desenvoltura de quem se dirige a um círculo de entes queridos que não levam nada a mal. Expressões como “canalha”, “ladrão” e “f. da p.” (por extenso) podem ali ser usadas com a maior inocência, porque ninguém tem a impressão de estar falando em público. O impacto conjugado da intenção e do estilo é mortífero: ai daquele que é odiado em comum pelos que se amam uns aos outros.

O terceiro efeito recai sobre os próprios orquestradores da operação. No ambiente de fusão solidária, as contradições mais explosivas podem ser abrigadas sem dar na vista. Eis como a coisa funciona. O programa geral e o vocabulário são ferozmente antiglobalistas e nacionalistas. Caros Amigos seria, no panorama de neoliberalismo e Nova Ordem Mundial, um emblema de resistência minoritária correspondente ao que foram, na ditadura militar, O Pasquim ou Movimento. Graças ao milagre da unidade sentimental, no entanto, ninguém estranha que ali apareça, encarnando a resistência nacionalista, nada menos que a dupla Boff & Betto, composta de um adepto confesso do poder global e de um notório apologista da New Age, ideologia oficiosa da Nova Ordem Mundial. Também ninguém vê nada de mais em que a guerrilha cultural nacionalista dê o maior apoio a movimentos indígenas que lutam pela transferência de parcelas do nosso território para as mãos de solícitos administradores multinacionais.

Suprimidas da festinha as discussões sobre esses tópicos desagradáveis, o antiglobalismo de Caros Amigos reduz-se a uma retórica feroz dirigida contra alvos perfeitamente inócuos. Da Nova Ordem Mundial, só dois componentes podem ser atacados à vontade: o governo FHC e a velha imagem do Tio Sam já fartamente demonizada pela esquerda nacionalista dos anos 50. O primeiro, coitado, por mais que distribua propaganda marxista para as crianças através do MEC, consta como o emblema mesmo do direitismo hidrófobo só porque diz amém a Bill Clinton e Tony Blair, ídolos das esquerdas nas suas respectivas pátrias. Quanto à segunda, os Amigos estão confiantes em que lutar contra o globalismo é descer a lenha no puritanismo, nos Founding Fathers e em tudo quanto de tradicional e americano vem sendo arrasado pela ideologia politicamente correta da Nova Ordem Mundial. A Nova Ordem, penhorada, agradece: com inimigos como esses, quem precisa de amigos?

Mas, para não dizer que não inovou em nada, um dos últimos números de Caros Amigos, pelas mãos de Gilberto Felisberto de Vasconcellos, traz ao arsenal nacionalista uma descoberta extraída das obras de Silva Mello e destinada a abalar os alicerces do poder global: se os americanos são mais altos, nós temos o peru maior. No mínimo, isso prova de que é injusto acusar o time de ficar olhando somente para o próprio umbigo: ele olha também o que está logo abaixo.

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