Destaque

Ser e Conhecer – Introdução geral

 § 1. Formulação do problema

Aula do Seminário de Filosofia, São Paulo, 10 de março de 2001

Toda a tradição moderna em filosofia toma como fundamento e ponto de partida o reconhecimento dos limites da consciência cognitiva individual. É verdade que ela começa com a tentativa cartesiana de romper esses limites pela afirmação da certeza absoluta que o eu pensante tem de si mesmo enquanto pensante. Mas também é verdade que essa afirmação permanece subordinada ao reconhecimento daqueles limites, e isto sob três aspectos: (1) eles são o dado inicial do qual ela será apenas a conclusão parcial que não chega a impugnar a validade da dúvida baseada neles; (2) o cogito que se afirma tem a impotência congênita do eu solipsista, que não pode escapar de seus próprios limites senão pelo apelo a “Deus” – um Deus que, não tendo aí nenhuma função orgânica, não sendo nem mesmo o fundamento do eu como o era no cogitoagostiniano, entra no sistema como puro agregado externo e expediente lógico in extremis, para salvar a  construção vacilante; (3) impotente para lançar uma ponte para o mundo exterior, o cogito cartesiano não o é menos para lançá-la entre ele próprio enquanto pensante e… enquanto existente.

Quando Péguy, num texto célebre, festeja Descartes como “ce chevalier qui partit d’un si bon pas”, ele expressa da maneira mais eloqüente o fato de que a tradição moderna valorizou em Descartes antes o seu ponto de partida (a dúvida) do que o seu ponto de chegada (a certeza do cogito). Mas isto é o mesmo que celebrar o fracasso do empreendimento cartesiano, louvando apenas as intenções que o inspiraram e que ele terminou por frustrar. Certeza vazia, incapaz de fundar a ciência, o cogitocartesiano deixou menos marcas na origem da tradição moderna do que as deixou o método mesmo da dúvida, a idéia de repor tudo em questão e, como se diria depois, “raciocinar sem pressupostos”. Essa idéia, que pervade todo o ciclo moderno em filosofia, expressa, no mínimo, o sentimento dos limites da consciência individual, sentimento que constitui assim o terreno psicológico sobre o qual floresce o pensamento moderno.

A variedade de suas expressões não deve nos fazer perder de vista a unidade desse sentimento básico. É preciso enxergá-lo não só nas suas manifestações diretas e patentes, como também nas indiretas e esquivas: não só no ceticismo de Hume ou na crítica kantiana, mas também nas tentativas de transferir para a alçada de algum outro sujeito – seja ele o Espírito objetivo, a volonté génerale, o Volkgeist, a consciência de classe, o Id, o inconsciente coletivo, as estruturas da linguagem, o consenso da comunidade científica, o gênio da espécie – a responsabilidade pela garantia da veracidade e eficácia do conhecimento. A simples enumeração casual de algumas dessas tentativas já evidencia que a afirmação dos limites ou da impotência cognitiva da consciência individual, quando não é princípio claramente afirmado, é pressuposto implícito; e, quando não ocupa o centro do sistema, circunscreve e delimita o seu horizonte.

Por trás da variedade e discordância das escolas, delineia-se assim um fundo de unanimidade – a unidade negativa daquilo que, para simplificar (e por outros motivos que se tornarão claros mais adiante), denominarei negação da consciência.

O que é curioso nesse fenômeno não é apenas a sua generalidade, sua quase onipresença no panorama heterogêneo do pensamento moderno; é que essa quase onipresença tenha sido apenas displicentemente reconhecida, como se se tratasse de obviedade sem maior importância, indigna de atrair qualquer curiosidade especial ou de suscitar ao menos a pergunta: Por que?

Sim, tudo aquilo que embora reconhecido não se afirma de maneira clara e explícita continua oculto entre névoas, protegido de todo olhar iluminante capaz de ressaltar o que nele há de estranho, de portentoso, de supremamente incomum e problemático.

De repente, a pergunta que não se fez pode se revelar como a mais relevante de todas. E a pergunta, no caso, é: como foi possível que toda uma tradição filosófica de quatro séculos, digamos mesmo toda uma civilização, tomasse como fundamento óbvio e inquestionável do conhecimento as limitações e deficiências do poder cognitivo da consciência individual, e raciocinasse sempre a partir delas, sem que, precisamente, essas limitações mesmas  viessem jamais a ser questionadas e sem que jamais à negação se opusesse qualquer tentativa de afirmação?

Como foi possível que uma pretensão cognitiva tivesse tantos impugnadores, sem que houvesse defensores?

Pois mesmo aqueles que, nesse período, afirmam resolutamente o poder do conhecimento, como Spinoza ou Hegel, celebram apenas a virtude cognitiva da razão, considerada de maneira universal e abstrata, e não da consciência individual concreta, cujos limites e cuja fragilidade eram assim implicitamente afirmados na medida mesma e no momento mesmo em que, enaltecendo “a razão”, se dava por pressuposto que era mediante sua absorção nela e sua conversão despersonalizante em faculdade abstrata que a consciência individual concreta poderia ter a esperança de conhecer o que quer que fosse.

Ora, se cada um desses filósofos era apenas indivíduo humano concreto, sem poder alegar-se a priori detentor de meios de conhecimento superiores aos da individualidade humana, a pergunta é: desde onde eles impugnam a eficácia desses meios, os únicos de que dispõem?

Se o filósofo moderno não pudesse colocar-se, de algum modo, numa posição superior à da sua mera individualidade empírica, sua negação do poder cognitivo desta última equivaleria apenas à autoparalisação de uma consciência individual e à imediata desmobilização de todo esforço filosófico. Em vez disso, vemos o movimento filosófico alimentar-se dessa negação, progredir graças a ela, revigorar-se nela.

À negação da consciência individual parece corresponder, ipso facto, a afirmação de um poder cognitivo supra-individual que o filósofo incorpora e personifica a partir do instante mesmo da negação e por mérito dela.

Que poder seria esse? Quais as suas possibilidades e limites? Que títulos justificam a pretensão filosófica de representá-lo? E, sobretudo: seria ele efetivamente uma instância superior à consciência individual ou apenas a parte superior da própria consciência individual, separada das partes inferiores e hipostasiada como entidade independente?

A tripla intuição

Por Olavo de Carvalho

2 de março de 2000

1 – Tripla intuição

A tripla intuição é um ato no qual se fundem, constituindo um único e indivisível ato, três intuições:

a) uma intuição sensível da fonte de luz;
b) uma intuição sensível do ato de ver, ou seja, toma-se consciência do que se vê e do fato mesmo de ver, isto é, de que se vê;
c) e, finalmente, uma intuição racional de causa-e-efeito.

Esta intuição racional de causa-e-efeito é por sua vez, a raiz da faculdade seguinte que é a razão. E isto é o que torna claro o motivo que levou Hegel a definir a razão como a unidade transcendente do conhecimento e da consciência de si – é o elo entre o que se conhece e a consciência de conhecer. A consciência do nosso modo de conhecer é algo que temos que levar em conta para sabermos se esse nosso modo de conhecer é válido. A simples referência ao objeto não resolve; a simples intuição sensível, se desacompanhada da intuição psicológica e da intuição racional que conecta uma à outra como causa-e-efeito, não têm validade cognitiva.

Podemos ter uma intuição sensível a partir de uma coisa falsa, de um indício falso. Quando temos uma intuição psicológica, temos apenas uma intuição do que estamos sentindo, experienciando, mas não das sua causas. Se sentimos tristeza, por exemplo, não sabemos se esta tristeza tem causa justificada ou é uma tristeza gratuita, não podemos sabê-lo por intuição e sim por raciocínio o qual de pouco adiantará se não conseguirmos conectar os vários pedaços do silogismo. Fica claro então que a tripla intuição é a raiz de tudo; e que nela, a parte que mais interessa é a intuição racional da conexão causa-e-efeito, na qual o olho e o Sol surgem apenas como variantes de uma mesma luz que, no Sol, é fonte e, ao mesmo tempo, é no indivíduo a sensação de luz o que está em jogo nos dois casos, no sujeito e no objeto, é a luz. Este é o elemento comum ao Sol e à visão.

Podemos perguntar se esta mesma tripla intuição seria possível tomando por base uma intuição psicológica e poderíamos responder que teoricamente sim, pois se temos uma intuição de um objeto, do que sentimos perante ele e de que o mesmo é a causa do que estamos sentindo, então tivemos uma tripla intuição, embora esse caso envolva questão mais complicada.

A diferença entre uma intuição sensível interna e a psicológica é que, a primeira refere-se a uma simples alteração corporal qualquer; a segunda, a intuição do sentimento, ao estado psicológico global, que não tem uma localização particular. Não se fica triste no estômago, na perna – fica-se triste no ser inteiro. A intuição sensível psicológica pode ser acompanhada de intuição sensível interna, porque os estados psíquicos às vezes têm traduções físicas simultâneas. Podemos intuir as duas coisas juntas, como por exemplo, ao sentirmos medo, nosso estômago pode contrair, este é o caso da tripla intuição: uma intuição sensível interna, uma intuição psicológica e uma racional, esta ultima, esclarecendo que os dois atos vêm da mesma fonte.

Em geral, todos os autores que estudaram teoria do conhecimento e perguntaram sobre o valor do conhecimento humano, sempre estudaram a percepção dos objetos, de corpos, deixando de lado este corpo muito singular que é a luz, que não pode ser comparado a nenhum outro corpo desde que ele é a condição de possibilidade de percepção dos corpos. Muitas questões sobre a objetividade do conhecimento teriam sido evitadas se tivessem enfocado este objeto.

Poderíamos fazer a seguinte objeção: vemos uma cadeira e podemos duvidar de que ela exista objetivamente ou se ela é apenas um jogo de impressões da nossa visão, mas não poderemos fazer a mesma coisa com a luz, porque é ela que possibilita a atividade da visão, portanto se ela for retirada não poderemos ver mais nada. Não se pode considerar então, a luz como sendo uma impressão subjetiva, ao passo que todos os demais objetos podem ser considerados impressões subjetivas uma vez que não dependemos deles para ver.

Robert Grosseteste foi um dos primeiros que enfocou a luz por esse prisma científico, sendo este uma tema relativamente ausente na discussão da teoria do conhecimento. Ele considera que a homogeneidade do meio luminoso torna este meio tão indiferenciado que acaba ficando imperceptível. É como no caso do peixe, que estando todo o tempo na água, não a percebe, da mesma forma que o homem, que estando na luz o tempo todo, não percebe que está na luz. Daí não a levarem em conta. Anteriormente a Robert Grosseteste, a luz só havia sido considerada de forma mítica e poética.1

Perceber que vê é por si mesmo um ato intuitivo, uma convicção imediata e individual de uma evidência. No caso, porém, o ato intuitivo torna-se ainda mais rico pelo fato de que uma intuição externa (a visão do Sol como fonte de luz), vem junto com uma intuição interna (a intuição de enxergar), constituindo com ela uma unidade indivisível. Neste ato está para o homem a raiz mesma da noção de verdade, como unidade do perceber e do percebido, do interno e do externo, do pensamento que está no sujeito com o pensado que está no objeto. Platão dizia que os astros no céu constituem para o homem o modelo do pensamento verdadeiro, o que este exemplo do Sol ilustra nitidamente. A apreensão intuitiva da unidade luz/visão/objeto é a intuição instantânea da inteligência como capacidade de captar a evidência; a evidência como veracidade oferecida pelo objeto à inteligência. Pode-se perceber, no caso, a diferença entre um símbolo autêntico e o que seria mera analogia de atribuição extrínseca ou metafórica.

O símbolo tradicional segundo o qual o Sol é o olho do mundo e o olho é o sol do corpo, não é simples metáfora mas uma correspondência funcional verdadeira, escorada no nexo causal real que une a luz à visão. Não se trata de imagem poética mas de uma realidade patente, de uma evidência, mais ainda, o nexo dos objetos então é de tal natureza que não poderia ser captado mediante simples encadeamento discursivo, parte por parte, aos poucos, mas somente num ato único e indivisível de intuição. Porque, no caso, a intuição sensível externa do Sol como fonte de luz tem de vir junto com a consciência de ver, isto é, com uma sensação e do sentido de um ato interno do próprio corpo.

O nexo luz/visão não poderia ser captado a posteriori, por meio do raciocínio discursivo; também não o poderia por conceito, pois este teria que se formar em cima da imagem da luz. Esta imagem da luz é luminosa ou não? Teria que ser novamente luminosa, pois se imaginamos a luz, estamos forçando nossos olhos a terem uma imitação da reação à luz, então voltamos ao mesmo ponto: ou captamos a luz intuitivamente ou não a captamos jamais, ou é um ato único ou não é ato nenhum.

Diz-se assim: Jesus é a luz do mundo, chega-se a supor neste caso, uma luz inteligível, neste caso a ligação entre o sujeito e o objeto se estabelece através de Deus, como o faz São Boaventura. O primeiro objeto que existe é Deus e é à luz dele que vemos todas as coisas, mas não precisamos recorrer à Teologia, porque temos não a luz inteligível, mas a luz material, e esta, só pode ser percebida num ato intuitivo. A conexão de sujeito e objeto não precisa ser procurada tão alto, porque o argumento de São Boaventura está sujeito à crítica céptica: negando-se a existência de Deus, o argumento perde a força.

1 - A analogia Sol/olho é uma analogia de atribuição intrínseca e não extrínseca ( ou metafórica ). É o caso de analogia de atribuição intrínseca exemplo como a asa do avião: trata-se de asa mesmo, ou seja, com a mesma função das asas dos pássaros; o Sol é o olho do mundo, assim como o olho é o sol do corpo. Em nenhum dos dois casos se trata de metáfora e sim de analogia. No caso da asa, a função dela no avião e nos pássaros é a mesma; no caso do Sol e do olho, a função de ambos é iluminar.

Duvidar da existência de Deus é possível, porém para duvidar da existência do sol é necessário sofrer de patologia mental gravíssima. Para Descartes, a unidade entre sujeito e objeto é também provada mediante Deus, para ele a prova da existência do mundo real é Deus, porém não é possível provar a existência do mundo mediante Deus e provar a existência de Deus mediante o mundo. Esses argumentos apelam, todos, aos argumentos retóricos, os quais tinham validade num meio teológico por excelência, onde todos acreditavam em Deus. Na geração seguinte, essa prova tornou-se algo problemático, dado a crescente descrença em Deus.

De um ponto de vista científico, podemos partir da tripla intuição do Sol como fonte de luz e a discussão encerra, a partir dela, podemos generalizar para a luz em geral e podemos então por analogia supor a existência de uma luz inteligível do intelecto, porém, é preciso ver que o intelecto não é uma coisa separada e distinta desta mesma tripla intuição, não é outra coisa misteriosa, ele é exatamente esta mesma intuição, esta mesma evidência, podendo se aplicar a objetos mais universais.

A tripla intuição poderia ser realizada por um cego a partir de uma outra experiência análoga e interna. Neste caso, seria preciso determinar o que lhe é tão permanente quanto é para quem vê a luz, a partir do que, se poderia determinar qual o momento físico de sua primeira intuição. Um exemplo de perda da tripla intuição é o caso da pessoa histérica, que não conecta seu estado físico com seu estado psíquico, ao mesmo tempo que está com raiva, sente taquicardia sem perceber que está com raiva e atribui a taquicardia a algum outro motivo.

A intuição só é intuição do presente. Caso só tivéssemos a faculdade intuitiva, levando em conta que consideramos o nexo indissolúvel entre a luz e a inteligência, ficaríamos loucos no caso do eclipse solar, e só poderíamos sair dessa angústia com o conhecimento racional, que junta o presente com o ausente, e que de certo modo, presentifica o ausente através da sua representação, e estando representados os vários elementos que provieram da intuição sensível externa e da interna, monta-os através da memória e imaginação, seja de forma imagética, seja de forma conceitual e intuímos então, a relação entre eles e a ordem de suas causas e efeitos. A intuição desta relação só é possível se houver uma retenção dos dados da memória e uma operação de concentração (operação abstrativa), que vai então esquematizar esses dados numa certa ordem, de maneira que a sua conexão apareça, pois a intuição apenas é insuficiente, daí decorre que podemos imaginar a complexidade de todo o esquema de imagens e conceitos necessários para conectar a posição da Lua, do Sol, da Terra e do observador, de forma a chegar ao resultado que hoje temos que é o nosso sistema solar, antes de tudo isso, era perfeitamente justo ter medo de eclipses.

Os animais, por outro lado, embora tenham todas as possibilidades de realizar a tripla intuição, não o fazem, enxergam e é evidentemente que percebem a distinção noite/dia, porém a consciência de si mesmos, não a têm. O homem percebe que o Sol ilumina a ele mesmo e ao mundo, assim como aos outros seres, humanos ou não, nesta hora, a percepção singular do indivíduo eleva-se a um certo nível de universalidade, o que não acontece com os animais. A mesma tripla intuição que no caso humano é qualitativamente igual para todos, pode repetir-se nos vários níveis, ainda que a base seja sempre a mesma.

Quando o indivíduo percebe que o Sol ilumina a terra e tudo quanto sabe que existe, e que de noite o Sol some e fica tudo escuro, instantaneamente este indivíduo percebe a luz e a claridade, do ponto de vista de todos os seres dotados de visão, o que implica que esta intuição no homem não é só individual, dado que o indivíduo não percebe que apenas ele enxerga, ainda que desde bebê já o perceba, embora neste caso, perceba tratar-se apenas de uma luz que o ilumina, mas no momento em que perceber que o Sol ilumina a terra, e que tudo aparece pela existência e presença do Sol, terá transcendido o ponto de vista individual, ainda que continue sendo um ato intuitivo do sujeito em particular, contém agora todos os valores universais inerentes.

No desenvolvimento do ser humano individual, repete-se aquilo que é uma experiência comum a toda espécie, porém é forçoso que algum dia um primeiro homem tenha percebido que o Sol ilumina a terra, ou exatamente isto ocorreu ou alguma experiência similar estruturalmente idêntica a esta, mas seja com o Sol, com a luz, audição ou qualquer outra coisa, algo é certo: é a tripla intuição o fato básico sem o que, nada haveria.

Muitos filósofos perceberam que a consciência de si é a garantia da objetividade do conhecimento; a consciência do fato de que não apenas sei, mas também de que sei que sei. Vejo um copo e sei que vejo, mas mesmo assim, com o conhecimento do copo e com a consciência de que estou vendo o copo a existência deste não fica garantida, é o caso de uma dupla intuição: consciência de si e consciência do objeto. Já a consciência da conexão, é dada só por raciocínio e não por intuição. Há consciência de um objeto e de um estado interno, e o que garante a causalidade externa a este estado interior? O que garante ser o estado interno causado realmente por este estado externo? Com relação a todos os objetos, esta conexão só pode ser obtida por raciocínio, o elo causal não é auto evidente, e só no caso da luz isso é diferente, pois nesse caso não se está simplesmente vendo um objeto: está-se vendo um objeto que permite o fato da visão. O elo causal aqui é intuitivo, e não discursivo, ou seja, é o caso da prova por evidência.

Se a percepção da luz tem tudo isso de interesse, a observação do olho de outra pessoa também tem seu interesse, pois quando alguém não está prestando atenção ao que dizemos, sabemos disso, assim também como quando conversamos com alguém que não está entendendo nada do que estamos falamos, mas como sabemos isso? Pelos olhos da outra pessoa, pois o olhar do outro influencia nosso olhar muito mais do que qualquer outro objeto, embora influencie mas não determine, como a luz o faz. O olho do indivíduo é uma luz para o corpo dele e não para o nosso corpo. Se estamos com a roupa desabotoada e alguém olha para isso, desperta nossa atenção para este algo, não fomos nós que olhamos e sim este alguém que serviu de corretivo para uma postura do nosso corpo e não dele, e vemos tudo isto através do olho dele, isso o olhar do outro fará ocasionalmente, já a luz o faz permanentemente, sem luz, ninguém teria consciência seja da roupa desabotoada, seja de qualquer outra coisa.

Nem a luz nem o olhar do outro são só objetos, o olhar do outro é também um sujeito autoconsciente, e penso ser por intuição e não por inferência ou conclusão racional que sabemos disso, não possuo prova disso, há muitos que acreditam que só por raciocínio é possível sabermos que o outro pensa e que também é, como eu, autoconsciente. De qualquer forma, a prova disto teria que ser experimental e não de tipo auto-evidente como no caso da luz, além do mais, todas estas provas dependem de o indivíduo ter provado a luz. Daí poder-se diversificar a tripla intuição para outras percepções mais complexas, mais indiretas, menos evidentes, mas o que interessa é este elemento básico, a tripla intuição, a partir do que se pode construir toda uma teoria da percepção.

Se não tivemos a intuição da luz, não intuímos a diferença entre luz e trevas; se não tivemos a intuição de luz e trevas, também não tivemos a intuição da diferença entre ver e não ver, e então não sabemos o que vemos. Portanto, a consciência de que enxergamos seria impossível sem a intuição da luz, são três atos que não podem estar separados nem no discurso nem na intuição, pois após tê-la, podemos desdobra-la, separando cada um de seus elementos de forma lógica. Essa unidade do ternário é algo que precede o discurso, a redução do três a um e a trindade do um, não é tão difícil então de entender, porque o homem só começa a inteligir quando junta três em um, e é quando começa o movimento da inteligência.

Numa linguagem tomista, podemos dizer que essas três intuições estão fundidas mas não confundidas. Em que outro domínio poderíamos compreender a unidade do múltiplo se não fosse a partir dessa tripla intuição, que é a da primeira unidade do múltiplo? A validade do conhecimento tem uma base intuitiva, empírica, não sendo necessário portanto buscar uma base metafísica.

É necessário, em teoria do conhecimento, encontrar qual é a base, qual é o fundamento da objetividade do conhecimento, buscar o que torna o conhecimento válido, e aí encontrarmos uma base intuitiva empírica, não um fundamento metafísico, como o de Descartes que diz que o conhecimento se fundamenta em Deus, como também o faz São Boaventura, ou ainda como Kant que encontra um fundamento moral, já que não encontra fundamento cognitivo algum. No entanto, demonstramos que existe um fundamento empírico e julgo que esta solução não foi encontrada antes porque o modelo no qual se baseou a investigação das teorias do conhecimento foi sempre uma investigação de sujeito/objeto corporal, espacial e não luminoso.

Descartes diz que estamos sempre nos seguintes termos: temos um sujeito e temos um objeto, primeiro temos a unidade sujeito/objeto, juntos, porém, a análise mostra que um está distinto do outro, no sentido em que existe a minha visão e existe o objeto visto, daí passa-se a procurar qual é a conexão entre um e outro. Segundo os céticos, essa conexão vem por força do hábito: estamos acostumados, diante de certos estímulos, a acreditar que haja determinados objetos ali, mas nada prova que existam, tanto é que começamos a procurar uma terceira instância que os conecta, ou seja, uma garantia da existência do elo, a qual, segundo São Boaventura, está em Deus.

Descartes, no seu argumento, parte da seguinte consideração: se tudo que eu vejo é apenas uma fantasia do meu entendimento, e os objetos correspondentes não existem de maneira alguma, então eu estou totalmente enganado e isso seria um mundo caótico, um mundo de fantasia, e só um Deus infinitamente mau poderia me enganar deste jeito e como Deus não é mau isso não acontece. Já Kant procura uma base não divina, mas humana, e esta base são as categorias, as formas a priori do entendimento e absolutamente necessárias ao entendimento: só conhecemos através delas, são válidas a priori, estão no ser humano, de modo que não garantem a objetividade do conhecimento, mas apenas a sua veracidade lógica, não garantem que elas correspondem a algo real e para resolver esta questão, basta introduzir como objeto, a luz.

É evidente que o fato de a condição da percepção do objeto ser o próprio objeto – no caso da luz – não prova extensivamente a validade de todo o nosso conhecimento, mas prova a possibilidade do conhecimento real obtido, a possibilidade teórica. Partindo-se da tripla intuição, podemos estudar seus análogos nos vários sentidos: a validade da audição, do tato, do senso comum, da memória, do raciocínio etc. Não só é possível fazer isso como é bom que se o faça, porém, a questão geral da validade do conhecimento está aqui resolvida, porque sabemos que existe algum conhecimento necessariamente válido na ordem material, a partir de uma experiência empírica.

Na ordem formal, sabemos que existe conhecimento válido: os conhecimentos lógicos são válidos, porém precisamos saber se, se aplicam a objetos reais. A lógica basta para validar-se a si mesma, dado que tem seu próprio fundamento absoluto na identidade, porém não sabemos se ela é toda válida, no sentido de que é coerente. Será que ela se aplica a toda realidade? Se consideramos todo o edifício da lógica já formada e conseguimos encaixa-la no mundo material por um ponto, então podemos utilizar a dedução lógica para o ponto seguinte, e este ponto será a tripla intuição. Mesmo a questão do cego, nada prova contra esta teoria, pois o cego o é por privação, que é a falta de algo que deveria estar presente em conformidade com a natureza de determinada espécie considerada, apenas aquele indivíduo em particular não enxerga. E provando que exista um único homem que enxerga, esta teoria continuaria válida, e este homem contaria aos demais o que viu, fazendo uso da linguagem, e esta por sua vez, baseia-se num esquema tríplice análogo: um sujeito, um objeto e um nexo. De qualquer forma, a linguagem presume um pensamento discursivo e este a intuição.

Esta capacidade única, central e originária da tripla intuição é a raiz de todas as faculdades cognitivas humanas. O desenvolvimento desta, pode ser mais lento ou mais rápido, mais linear ou mais problemático, mas é evidente que a intuição tripla é a condição sine qua non da possibilidade do conhecimento. A estrutura tripla da significação, por exemplo, o triângulo, signo/significado/ significante, seria impossível sem essa tripla intuição originária. Com o que, podemos concluir que certamente esta foi anterior mesmo ao dom da fala, tanto na ontogênese quanto na filogênese do homem.

O que significa dizer que tanto na origem da espécie (ontogênese) quanto na origem do indivíduo ( filogênese ), está presente, de forma básica, a tripla intuição, dado que num e noutro caso, a fala está presente. Restaria apenas estabelecer as diferenças de como isso se dá na evolução da espécie e do indivíduo.

A inteligência intuitiva que arraiga na tripla intuição originária é, pois, raiz e condição mesma da cognição. Para que se entenda melhor a natureza do ato intuitivo, é necessário examinar mais detalhadamente os seus tipos: a intuição sensível externa, a intuição interna e a intuição intelectual.

A intuição sensível externa é a consciência imediata da presença de um corpo ou de uma qualidade sensível, note-se bem : a intuição sensível não se confunde com a simples estimulação do órgão pela cor ou pela luz, ao contrário, corpos e cores estão constantemente diante dos nossos olhos, os quais estão portanto reagindo continuamente à estimulação luminosa, sem que por isso nos demos conta de tais objetos e cores. É somente quando a atenção se detém num corpo , forma ou cor particulares, que podemos falar propriamente de intuição sensível, de captação consciente de uma patência ou evidência.

A intuição em geral ( e não apenas a sensível ), não se confunde também com o conhecimento conceitual, que opera indiretamente, substituindo as presenças reais dos objetos pelas suas representações subjetivas, criadas, concebidas pelo homem, embora o conhecimento conceptual exija também a intuição, pois o nexo entre conceitos tem que ser percebido intuitivamente.

O que implica dizer que não há intuição inconsciente, pois algo estando inconsciente torna patente que não houve intuição.

A intuição pode funcionar sem o conceito, isto é, não precisamos saber o que é discursivamente uma coisa para termos dela uma intuição perfeita quando está colocada diante de nós, apenas o pensamento discursivo temp de vir em auxílio da intuição, quando se trata de perceber o nexo entre coisas presentes e coisa ausente, pois esta tem que ser pensada mediante conceitos e esquemas.

No caso do eclipse, por exemplo, vemos apenas o eclipse, não vemos a Lua, mas lembramos que havia um Sol onde agora só existe escuridão, neste caso, estamos conectando o ausente com o presente, o que não se trata mais de intuição sensível.

A intuição diferencia-se em sensível interna ou intelectual, segundo o modo de presença do objeto à inteligência.

Na intuição sensível externa, o objeto ou fenômeno percebido está física e corporalmente presente, por exemplo, diante dos nossos olhos. Na intuição interna, que capta os estados do nosso próprio corpo ou de nosso psiquismo, o objeto não está presente diante dos nossos cinco sentidos mas está diante de nós, por exemplo, sabemos quando estamos tristes e sabemos imediatamente, por um ato cognitivo único e indiviso, em que a consciência da tristeza se efetiva e se atualiza para nós.

A tristeza inconsciente não é tristeza, se o indivíduo está inconsciente de sua tristeza, é forçoso admitir que está alegre. O elo entre um pensamento e outro é sempre intuitivo, é imediato, apenas os vários juízos, sentenças, são separados, o nexo porém, é sempre intuitivo.

Na intuição intelectual, o objeto está colocado diante de nós só intelectualmente. Por exemplo, concebo a idéia de linha reta. Linhas retas puras não existem na natureza e só podem estar presentes intelectualmente. A imaginação mesma não conseguiria produzir um desenho de linha perfeitamente reta, sei no entanto o que é linha reta e este saber me é imediato, presente. Posso ir ainda mais adiante: após conceber a linha reta, percebo num só ato intuitivo que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos, note-se que, embora eu tenha construído, conceituado a idéia de linha reta, a qual portanto não é uma intuição no sentido puro, a propriedade que a reta possui de ser o caminho mais curto entre dois pontos é algo que está na reta mesmo e não na idéia que construímos.

Quando pensamos numa reta, não pensamos no caminho mais curto entre dois pontos, só depois é que descobrimos esta propriedade da reta. Tendo uma intuição intelectual da linha reta, neste mesmo objeto descobrimos alguma característica que não tinha sido pensada antes, uma propriedade que não estava presente no conceito inicial da linha reta, é o que se chama juízo sintético, porque houve a síntese de duas verdades: uma que estava pensada antes e outra que não, que foi percebida depois, o que constitui um exemplo de intuição imediata de ordem intelectual, racional.

Esta propriedade está objetivamente presente naquela linha e eu a percebo num só ato de inteligência. Isso indica que a intuição, embora seja em si conhecimento direto e imediato, sempre tem de se apoiar em alguma outra coisa possibilita a presença do objeto.

Não existe intuição sem presença, daí que o objeto pode estar presente de três maneiras: no mundo externo, no mundo interno ou intencionalmente, ou seja, está presente à inteligência, precisa, outrossim, para que o objeto se torne presente, haver num caso, sentidos externos, no outro sentidos internos e ultimo, a imaginação e o raciocínio.

A evidência não precisa ser explicada, pois ela é o fim da explicação. Explicar significa desdobrar (do latim ex plicare), e só se pode desdobrar o que está dobrado, pois se já foi desdobrado (explicado), deve-se parar por aí. De forma que, numa demonstração, ela deve recuar apenas até o momento em que, ao ouvinte, surja uma evidência, partindo-se desta evidência, prossegue-se então o raciocínio.

Por exemplo, se peço a alguém para conceber a linha reta, conceito este que todo mundo tem, isso já é o bastante. Se além disso, peço a pessoa que tente imaginar a linha reta, esta mesma linha reta some, pois a imaginação não mantém permanentemente reta a linha de sua atenção, depois, posso ainda pedir que a pessoa defina linha reta, ora, essas duas últimas condições (imaginar e definir a linha reta) atrapalham a intuição originária.

A interferência indevida de outras funções na intuição prejudica o processo intelectivo e a inexistência de um hábito da intuição e da evidência é que vai provocar uma doença que é muito comum: o pensamento alienado, e este é o pensamento que escapa das condições da própria experiência, portanto deve-se reservar o pensamento sem intuição para os casos em que a intuição não é possível, pois o que se dá com algo que eu desconheça completamente e que está fora da minha experiência eu só poderei averiguar por pensamento, por raciocínio, e caso possa ter a intuição, tudo que eu pense deve ser referido a ela.

Toda a intuição é instantânea, sendo assim, ela não dura e no instante seguinte ela é substituída por uma recordação, por uma imagem. Passa-se então a ter a intuição não da coisa, mas da imagem que a representa, e não sendo mais intuição, trata-se agora de uma de uma imagem, ou melhor, de uma intuição interna, a qual não está mais diretamente vinculada àquele objeto que foi intuído em primeiro lugar.

A partir do momento que a memória atua, o objeto intuído já não está mais presente, não há mais evidência, porém, é necessário retornar a ele sistematicamente, caso contrário a construção lógica conseqüente, por mais perfeita que seja não tem o poder de eliminar a incerteza quando da conclusão final. O pensamento pode estar certo, pode levar à conclusão certa, mas omitindo-se a base intuitiva na qual se apoiava (como esta intuição que virou memória, sendo esta só uma função subjetiva e por isso mesmo sujeita à critica e dúvida) a conclusão passa a parecer incerta, embora seja inabalável. É por isso que São Tomás de Aquino diz que a maior parte das pessoas ignora a demonstração lógica, pois esta, transfere a veracidade da intuição para a conclusão, mas se a evidência inicial não é mantida, retida, revigorada, a conclusão, por mais certa que seja, não convence. A mente habituada passa a ter na própria demonstração lógica uma espécie de evidência intuitiva, e para isso duas coisas precisam ser treinadas:

1) não perder de vista a intuição originária (deve-se criar uma situação na qual seja possível refazê-la, e, no caso não consegui-lo, adquirir confiança no já sabido);

2) como demonstração lógica pode ser bastante comprida, onde se vai conhecendo um juízo após outro discursivamente, é preciso que se monte este discurso de forma simultânea, e que se tenha a intuição da conexão simultânea das partes, em outras palavras, sobre uma intuição originária, faz-se um raciocínio, depois tem-se não apenas que voltar a intuição originária da premissa, como ter uma nova intuição de todas as propriedades deduzidas e tomadas em conjunto, simultaneamente.

Estas são as duas condições para um entendimento real, e só chegando a esse ponto é que se adquire a confiança na força da demonstração e ganha-se um órgão cognitivo, que é a intuição racional na sua plenitude.

Podemos tomar como exemplo, as catedrais góticas e os tratados da escolástica, aquelas, vê-mo- las de uma vez, simultaneamente, não sabemos lê-las, nestes podemos ler cada questão uma a uma e nos esquecermos, chegando a determinado ponto, das questões anteriores. As catedrais têm evidência intuitiva, mas somente na forma e não no significado, enquanto que os tratados têm evidência discursiva e não intuitiva. Juntando um com o outro, acaba-se lendo a catedral e vendo o edifício das idéias como se fosse uma catedral, mas é algo que só se obtém por exercício, como resultado de hábito adquirido, é algo impossível a todo o homem, porém em termos virtuais e não reais, exigindo habitualidade para a sua realização, pois do contrário seria o mesmo que considerar que, bastaria um homem ter músculos para que pudesse lutar contra o atual campeão de boxe com alguma chance.

A memória é a mãe do conhecimento, uma demonstração não decorada é uma demonstração não entendida, primeiro, é necessário apreênde-la discursivamente, parte por parte, depois olha-se o conjunto e deve-se então intuir a simultaneidade de todos os nexos, pois além dos nexos sucessivos ou discursivos, existe uma multidão de nexos internos que não aparecem discursivamente e isso só pode ser intuído e é a isso que chamamos intuição racional.

A intuição não pode ser cultivada, porque é faculdade passiva, coloca-se o objeto na frente, em condições adequadas e haverá intuição. Ela não pode ser forçada, diferentemente do raciocínio e da memória, ela é involuntária. Há inclusive ofertas de técnicas para obtenção da facilidade intuitiva, porém, seu preço para o indivíduo é impagável. Todos têm intuição, não se trata de eliminar as construções racionais falsas para que uma pessoa tenha intuição, basta apenas fornecer os meios para que se faça uma construção racional certa.

A intuição não é algo excepcional, como geralmente é a idéia que dela se faz, está presente todas as horas dos dia, e só é apresentada como algo excepcional devido ao fato de só podermos ter intuição das coisas presentes. Normalmente, o que nós temos presente são só os objetos dos sentidos, o que gera no máximo intuições sensíveis vulgares.

Os objetos mais complexos e mais elevados, só os conhecemos discursivamente, raramente temos ocasião de que eles se apresentem a nós. A intuição sensível é vulgar e comum, mas uma intuição racional a respeito de coisas verdadeiramente importantes é muito rara e este caráter excepcional não está na natureza da intuição mas na complexidade e elevação dos objetos. Ter intuição de ordem metafísica é muitíssimo raro pois se necessita de várias condições para isso, pode-se ler a Suma Teológica de São Tomás de Aquino quantas vezes quiser e não conseguir transformar o que se leu em uma intuição.

O momento que aquilo que é conhecido discursivamente se eleva diante de alguém como uma totalidade simultânea de nexos que vão, não somente em um sentido, como no discurso, mas em todos os sentidos simultaneamente, se chama contemplação.

Hugo de São Vito distingue pensar, meditar e contemplar. Pensar é simplesmente ir de uma idéia a outra, sem rumo determinado, meditar é continuar pensando na mesma coisa buscando sua natureza e suas causas (é um pensamento continuado, é propriamente o que chamamos de raciocínio discursivo, ininterrupto), contemplar é algo que se consegue apenas depois de conseguir meditar, ou seja, é quando o edifício construído pelo raciocínio discursivo aparece todo de uma vez, é quando se vêm não só os nexos silogísticos de um pensamento com o pensamento seguinte, mas entre todos os pensamentos ao mesmo tempo, vendo-se as conexões cruzadas, como se fosse um edifício.

Um edifício não é uma coluna que sustenta o teto, depois outra coluna que sustenta esta primeira, pois todas estão sustentando o teto ao mesmo tempo e vemos todas ao mesmo tempo. No discurso, uma coluna vem após a outra, cada parte segue uma outra e assim por diante, no fim é que vemos todas as colunas sustentando o mesmo teto, e este é o momento da contemplação. Distingue Hugo de São Vito ainda, a contemplação em dois tipos: a contemplação dos objetos naturais e dos divinos, sendo assim, é necessário apenas chegar à contemplação das coisas naturais porque o salto daí é algo mínimo, não trata de uma função diferente mas de objetos diferentes. A razão e a intuição são as mesmas pois a intuição que faz um indivíduo tomar consciência de que ele está com problemas orgânicos é a mesma com a qual ele intui as realidades superiores.

A intuição, para efetivar-se, necessita do concurso de outra função: dos sentidos para a intuição sensível, do sentimento para a intuição psicológica, da razão para a intuição racional e assim por diante. Para obter a intuição de realidades universais, precisa-se de um auxílio imenso da razão, da memória, etc., trata-se de um edifício construído com o auxílio de todas as faculdades sob a direção da razão para dispor tudo, como em uma tela, para que a intuição possa ver o conjunto e, sendo assim, o que há é intuição, sendo impróprio falar-se de “intuição metafísica”, como se tratasse de uma intuição superior a outra intuição qualquer. Em todos os casos a intuição é qualitativamente igual, ou seja, é apresentação do objeto à consciência, apenas sendo este o que pode mudar e não aquela função, assim como pode mudar o grau de integração e organização das faculdades. Se admitíssemos que além destas funções existe uma outra função superior, misteriosa, que não está presente no comum dos mortais, que precisa ser ativada, então sairíamos completamente do terreno científico. E aí seria necessário um meio igualmente misterioso para ativar uma função da qual não dispomos e isso requereria um outro indivíduo e a isto poderíamos chamar de iniciação, ou seja, alguém “liga” determinada função e esta funciona conforme quem a ligou. De fato, pode haver transmissão de alguma coisa, pode haver algum apoio, porém sem que isso seja essencial, pois a intuição é algo que todos têm, e por igual, o que ocorre é que nem todo homem tem a sorte de conseguir a harmonia das funções de forma que todas elas concorram para um mesmo fim. O que acontece entre a intuição das coisas naturais e das coisas divinas é uma mutação, no sentido em que fala Pradines, é uma subida de nível, onde a partir do momento em que uma função adquire uma certa perfeição, ela passa a ser regida por outra constelação de causas, ela atinge uma autonomia.

Vimos que a intuição sensível depende dos sentidos, que a intuição psicológica depende da intuição sensível e assim por diante, e que a intuição racional depende de todas as anteriores, porém, se o indivíduo perde a intuição sensível visual, e como o que ele adquiriu já está adquirido, ele não perde a intuição racional, isto significa que ele está funcionando em uma outra constelação de causas, não mais dependendo daquela sensível, é o que denomina-se mutação, uma espécie de assunção, de subida a um nível onde as mudanças inferiores não afetam mais, de forma que as supremas intuições de ordem metafísica podem também adquirir uma certa autonomia. O que não impedirá que o homem, que tenha chegado a grandes conhecimentos de ordem metafísica, não possa ter distúrbios de memória, mas isso não o fará esquecer esse conhecimento de ordem superior, porque já se tornaram autômatos, mediante esta mutação ou autonomização.

Todas as faculdades que temos, têm raiz no animal, sem exceção, inclusive a intuição de objetos metafísicos, porém, é uma raiz e, como na planta, depois que cresceu pode-se tirá-la de um lugar e pô-la em outro, Ela continuará vivendo do mesmo jeito, embora dependa da terra, mas não depende daquela terra em particular. As faculdade animais são como uma terra na qual as faculdades humanas vão crescendo, e não se distinguem em natureza da espécie animal, mas distinguem-se em autonomia. Os grandes filósofos do passado, como Aristóteles e São Tomás de Aquino, sempre consideraram as coisas desse modo, nunca tiveram vergonha de sabê-lo e dizê- lo, que se deve começar de baixo e ir subindo gradativamente.

Quando se faz essa passagem, de todo esse transcorrer, das intuições para a contemplação e de todas elas junto de uma vez, ou, ao contrário, se temos uma intuição de algo que apresentamos de uma maneira discursiva, que possa ser entendida e, portanto, isso possa ser reconstruído para outra pessoa, é a isso que chamamos a passagem do analítico para o poético e vice-versa, dito de outro modo, quando se tem uma determinada seqüência de intuições conectadas dessa maneira para que depois se contemple o todo, temos a passagem do analítico para o poético.

Esta subida e descida é a totalidade do mundo do conhecimento e da cognição, é a passagem desses vários níveis: do possível para o provável, para o verosímil e para o certo. Quando alguém escreve um livro, dispõe tudo na ordem discursiva certa, poupando ao leitor o trabalho de achar a ordem discursiva, e não o trabalho de achar esta ordem numa ordem simultânea e isso só o leitor pode fazer, donde se conclui que todo aquele que escreveu um livro escreveu apenas meio livro. Guénon diz que um livro também chamava gradual, pois de fato o livro o é, uma escada não pode ser chamada de gradual, pois ela tem que ter todos os degraus ao mesmo tempo necessariamente, assim como um edifício tem que ter teto, sustentação, paredes, etc., ao mesmo tempo, já um livro só pode ser lido frase por frase, e só depois o leitor deverá remontá-lo mentalmente, e o mesmo deve ser feito com uma demonstração, ou seja, deve-se remontá-la passo a passo, elemento a elemento.

Não se pode ter intuição sensível sem apoio dos sentidos, que tornam presentes os objetos intuídos. Não se pode ter uma intuição de um estado interno se não se tem a sensibilidade interna que, por sinais variados, torna presentes à consciência estados de tristeza alegria, etc. E não se pode finalmente, ter intuição intelectual sem o auxílio do pensamento e da memória, que nos trazem os objetos para que neles se intua algo. Deste modo, a intuição é direta e imediata, no sentido lógico, isto é, logicamente ela não depende de nenhum outro conhecimento para poder validar-se, mas psicologicamente, para poder produzir-se de fato, a intuição necessita das várias funções que compõe o ser humano vivo. O enfoque psicológico estuda o mundo real de produzir-se das cognições, enquanto a lógica estuda as condições da sua veracidade.

A intuição é o fundamento das demais faculdades num sentido lógico, não no psicológico e muito menos no cronológico, ela é a origem, o fundamento necessário das demais faculdades no sentido destas serem realmente cognitivas, ou seja, de poderem apreender, conhecer realmente a verdade. É ela quem fundamenta o valor cognitivo das demais faculdades, nenhuma delas, de per si, tem sua validade cognitiva assegurada; os sentidos isoladamente, não garantem a existência real dos objetos do mundo exterior; a memória não garante a veracidade das coisas pensadas, ao passo que a intuição tripla fundamenta, não só a si mesma como todas as demais faculdades.

Muitas das demais faculdades os animais as também têm. Não tendo porém a intuição tripla no sentido pleno, pois tal conhecimento no animal não tem valor cognitivo, este não conhece portanto as coisas objetivamente, apenas subjetivamente. Dizemos que o homem é um animal racional no sentido em que, tendo a intuição racional, ele tem a garantia da veracidade dos seus conhecimentos, sejam estes derivados da razão, da memória ou dos sentidos, é o único animal que possui a noção da veracidade, que tem a crítica dos seus próprios conhecimentos, não apenas pode chegar a uma representação global do real mas pode também olhar essa representação inteira e julgá-la verdadeira ou falsa, aceitá-la ou rejeitá-la. O sentido autocrítico, a crítica do próprio conhecimento à luz do critério de veracidade ou falsidade, é a diferença específica do ser humano, mas isso requer que ele tenha uma noção inicial da verdade firme – e esta noção é justamente dada pela tripla intuição. Juntando esta com a capacidade propriamente racional, a qual permite a construção de uma totalidade representativa, então o homem pode ter a intuição tripla do conhecimento total, pode erguer uma imagem total do real, com o auxílio da imaginação, da memória, do raciocínio, etc., e em seguida intuir a simultaneidade dos nexos com a sua consciência deles e proclamar a sua veracidade ou falsidade.

Quanto a sua veracidade, a intuição é independente de outro qualquer conhecimento, de qualquer outra função cognitiva. Mas quanto ao seu produzir-se, ela depende existencial e praticamente das demais funções. Portanto, quando dizemos que a intuição origina as demais funções, estamos falando do ponto de vista lógico, não psicológico, isto é, a intuição origina as demais como fundamento da validade lógica dessas funções, ou seja, é a intuição tripla, originária, que funda a possibilidade de as demais funções operarem como funções cognitivas, dotadas de valor cognitivo verdadeiro. Do ponto de vista puramente evolutivo e temporal, é claro que o sentido surge no desenvolvimento do indivíduo antes da intuição tripla, mas operam desordenadamente e não podem pretender a uma validade cognitiva nem sequer mínima.

Seria importante que o estudo lógico ou gnoseológico da intuição tripla fosse complementado por um estudo da evolução das faculdades, isto é, da gênese temporal das faculdades, no sentido de saber qual surgirá de qual, e em que ordem. Se no sentido lógico, a intuição tripla é o fundamento ou origem, no sentido psicológico, é um ápice ou coroamento, ou seja, somente o homem inteiro, o homem plenamente desenvolvido pode ter a intuição tripla, não é algo que o antropóide possa realizar e o bebê a tem em estado rudimentar – falta a um e a outro o desenvolvimento necessário para poder ter certeza da certeza. A questão então seria saber quais são as condições genéticas de ordem psicológica necessárias para que ela ocorra, ou ainda, como o organismo psíquico vai se formando a ponto de desembocar na intuição tripla? (No sentido pleno, entender que se entende, perceber que se percebe, perceber que a luz ilumina o olho e por isso o olho vê a coisa iluminada). Ela é um fundo permanente que tem que estar presente para poder ser dito que um determinado conhecimento é racional, porque se não há – seguindo a definição de Hegel – união entre o conhecimento e a consciência de si, não há conhecimento racional. A continuidade ou intermitência da intuição tripla são distinções psicológicas, não lógicas – uma primeira vez ela tem que ocorrer, a questão é passar do ponto de vista lógico – questão já resolvida – para o psicológico e essa passagem implica em alguns problemas, porque entra-se então na contingência e esses problemas teriam de ser resolvidos sob a forma de estudo como aquele feito por Piaget, que investigou no sentido de saber em que momento determinadas estruturas cognitivas passam a ser adquiridas pelo indivíduo. A partir de que momento o cogito cartesiano seria possível? Quais seriam as condições psicológicas propícias a esta tomada de consciência do sujeito enquanto sujeito autoconsciente?

Porém o cogito é um terço da intuição tripla, é uma intuição psicológica – penso! E pensar é um estado, Piaget determinou as etapas da evolução do cogito, podemos colocar a mesma questão: Em que momento e sob quais condições é possível a realização da tripla intuição?

A teoria dos discursos só ficará perfeitamente clara se nós compreendermos as diferentes funções cognitivas humanas e suas relações e desde que a todo momento estamos apelando a conceitos como razão, imaginação, etc., é necessário que definamos cada uma delas, fazendo uma interrupção na disciplina lógica e entrando na psicológica.

É só a partir da intuição tripla que surge a possibilidade da veracidade ou falsidade das afirmações, recordações, etc.

O que não tem possibilidade de ser verdadeiro também não tem a possibilidade de ser falso, só a partir do momento onde entra o valor cognitivo da faculdade é que entra a questão da veracidade ou falsidade. Todas as outras faculdades podem existir e funcionar, mas a partir de um certo momento elas podem acertar ou errar. Necessariamente temos que ter em mente a dualidade de métodos: o lógico (a partir do qual abordamos a questão da intuição tripla) e o psicológico (que passaremos a abordar uma vez que vamos nos ater ao estudo das faculdades cognitivas).

Porém, mesmo antes disso é necessário que o homem possua já a aptidão ao menos para a intuição tripla, e essa aptidão, mesmo que ainda em estado virtual, já constitui a inteligência intuitiva.

A inteligência intuitiva, inaugurada pela intuição tripla, desenvolve-se crescendo até chegar a um ápice que é a intuição racional, a qual por sua vez é a razão.

2 – Razão ou inteligência construtiva

A inteligência intuitiva encontra logo os seus limites. Inteligência da coisa presente, deixa de enxergar a multidão das ausentes, quer opere sobre os sentidos (intuição sensível), quer sobre os estados internos (intuição psicológica), quer sobre algum conceito intelectual (intuição racional ou intelectual), a intuição necessita de um objeto imediatamente presente à consciência.

Os objetos muitas vezes são inacessíveis, distantes de fato no tempo, e assim a intuição não tem sobre o que operar. As demais faculdades vêm então em seu auxílio, trazendo sejam recordações do objeto, sejam imagens, seja um conceito, seja o objeto presente no todo ou em parte.

Também é evidente que em toda intuição, há toda uma rede de relações que se sustenta.

Se um conceito torna o objeto presente no seu todo, a operação é de natureza discursiva e não intuitiva. Começa a haver intuição no momento em que se dá algo semelhante àquele da linha reta: percebemos nela propriedades que não estavam presentes no seu conceito mesmo; percebemos nela algo que não lhe tínhamos atribuído, neste caso, podemos considerar que o pensamento simplesmente colocou o objeto diante de nós para que a intuição pudesse fazer o resto, por outro lado, quando se coloca um conceito total de um objeto ou ente qualquer, com todas suas propriedades, não é preciso ter intuição do objeto.

Também é evidente que, quando a propósito em um texto cada objeto é evocado, toda uma rede de relações se sustenta, todo um arcabouço de construções mentais canalizam, orientam, enquadram a atenção e fazem surgir o objeto, enfim, a intuição de uma coisa presente seria possível sem que nela tivesse subentendida, pressuposta, a moldura racional das relações com todas as coisas ausentes. É certo que a intuição atualiza, efetiva a evidência de um objeto presente.

Quando se intui algo através da imaginação, tem-se intuição do conceito e não da coisa mesma, quando existe intuição racional, dá-se neste caso o ajuntamento de conceitos onde é percebido o nexo entre estes, nexo que não estava dado. Os conceitos são dados, o nexo é intuído. Pode-se recordar ou mesmo lidar com o conceito de tristeza, uma vez que se tem o conceito, se pode lembrar de momentos que se esteve triste, sem no entanto estar ou ficar triste por isso, isto ocorre porque não se está tendo intuição da tristeza, mas de seu conceito, se está apenas tendo intuição da recordação da tristeza. Uma vez que este fato não está ocorrendo agora – não se está triste agora, há apenas a recordação do conceito de tristeza, pode-se inclusive reparar que este fato possui algo em que antes não se havia reparado, e isso é intuição racional, intuição de evidência, de nexo. Não fosse assim, toda vez que se fizesse um conceito não haveria distinção entre conceito e a intuição do objeto, entre o conhecimento de um conceito e o conhecimento do objeto. Mas há esta distinção, pois o conceito é um signo, que representa mas não apresenta o objeto. Quando porém encaramos vários conceitos juntos, pode ser que se apresente um nexo no qual não se tinha pensado antes, o que caracteriza a intuição racional.

A intuição racional, ao mesmo tempo que virtualiza, passa para a latência, para o plano de fundo, a rede das relações possíveis.

Inversamente, o raciocínio atualiza, chama a atenção justamente para esta rede de relações possíveis, passando para o fundo, para o lusco-fusco de uma rede de conceitos o objeto real presente. Talvez a melhor maneira de compreender a distinção entre intuição e raciocínio seja dizer que a intuição só pode captar um objeto presente, portanto um objeto colhido em sua plena realidade, no seu ato de existir, ao passo que o raciocínio opera com conceitos. Os conceitos captam os objetos enquanto meros esquemas de possibilidades lógicas.

O conhecimento inicial tem que ser intuitivo e imediato, caso não seja, tem que ser provado, e esta prova vem a ser a função do discurso analítico, que vai de uma intuição a outra, de forma que toma-se como evidente uma coisa já provada, mesmo que não haja recordação da intuição originária, como por exemplo, na Geometria, em que se parte de conceitos intuitivos de ponto, reta, plano, etc. e de certas leis evidentes como “o todo é maior que a parte”, etc. Transfere-se portanto, a evidência desses primeiros conceitos para outros que se querem provar verdadeiros, inversamente, pode-se partir de afirmativas presentes e recuar até a inicial, uma vez que dúvidas que surjam requeiram este procedimento. De forma que o ponto final a que se chega, por este último procedimento, é uma evidência inicial, o que significa dizer que se chega a um princípio de identidade. Ora, aqui vemos que o raciocínio é o contrário da intuição, e psicologicamente falando, o raciocínio exige esforço, enquanto a intuição pode ser obtida sem esforço.

A intuição, na verdade, é incomunicável, dela transmite-se sua tradução discursiva; pode- se colocar os dados em uma certa ordem que, vendo-os, um outro indivíduo consiga ter a intuição do que se quer transmitir, temos então os dois extremos que são a credibilidade e a forçosidade. A prova lógica é necessariamente forçosa; a sua credibilidade depende da intuição da premissa, em ausência do que, todo raciocínio seria inútil, esta intuição da premissa não pode ser forçada. Inversamente, o discurso poético e o retórico têm pouca forçosidade lógica, em termos lógicos, nada provam, convencem na medida em que facilitam a intuição, é uma questão de criar uma forma arquitetônica que permita a visão do conjunto, e isso é do domínio da estética, que é a disposição ordenada dos dados. O raciocínio força o cérebro em uma direção, espreme-o, enquanto que a estética lhe permite o repouso, facilitando a intuição; o raciocínio cria um canal, a possibilidade lógica da intuição, não propícia ajuda psicológica, é como ler Dante, São Tomás de Aquino, um mundo de palavras que passa a parecer um amontoado de formalidade lógica. O que pode ser utilidade nesta hora é a estética, a retórica, o aspecto literário, que criam condições psicológicas à emergência da intuição. É o que se visa conseguir então com a teoria dos quatro discursos, a teoria das faculdades cognitivas e a teoria dos gêneros literários. Encerram esse conjunto de matérias, as possibilidades lógicas e psicológicas necessárias à assimilação do conhecimento.

Geralmente, o pensamento é um complexo de imagens e palavras, de signos verbais e imagens, ao considerarmos o pensamento lógico sob um grau acima do pensamento puramente imaginário, isto não quer dizer que o pensamento mesmo dispense as imagens, mas quer dizer que estas estão encadeadas segundo conceitos verbais correspondentes, ao passo que o pensamento puramente imaginário vai por liames analógicos, e quando a imaginação consegue encadear as coisas logicamente, deixa de ser imaginação e passa a ser raciocínio.

O homem pensa com o corpo inteiro, a alma inteira, com toda a sua inteligência e ao pensar, nenhuma parte de si fica de fora. O pensamento apenas verbal é o pensamento, se assim se pode chamar, de computador, que pode gerar no máximo uma pseudofilosofia, neste caso, trata-se de um raciocínio seco, sem ignição; é uma mera combinatória possível de pensamentos; não são pensamentos pensados. O pensamento verdadeiramente pensado tem uma raiz, sempre, na intuição, portanto raiz na memória, na vontade, etc. Aquilo que é próprio de um computador é um pensamento que pode vir um dia a ser pensado por um ser humano real, por um indivíduo autoconsciente, para o que, é necessária a conexão voluntária e o esforço conjugado de todas as funções, condição indispensável para se chegar a um conhecimento. Nenhum ser humano pode pensar à semelhança do computador, que vai combinando os pensamentos existentes sem que entrem novos dados, a menos que estes lhe sejam introduzidos por um ser humano. Ao contrário disso o homem está a cada momento recebendo novos dados, além de haver na memória um reservatório inesgotável de dados que, tão logo seu pensamento falhe, surge a esta para completar o que falte. E isto é inimitável – sendo imitável apenas a estrutura formal do pensamento, a estrutura formal das decisões, a estrutura formal do raciocínio analógico, etc., mais ainda, o pensamento humano está ligado a dados e informações que provêm continuamente da memória e dos sentidos.

A memória, por sua vez, depende do corpo e dos sentidos, a forma humana realimenta continuamente o pensamento, donde se conclui que para imitar o pensamento humano, é necessário que a forma humana seja imitada e para tanto, seria necessário, no caso de um computador, que este tivesse corpo, coração, cérebro, preocupações humanas e recebesse os dados como um ser humano – caso em que, sendo feito um computador assim, poderia dele se dizer: é um ser humano! Não há portanto, termo possível de comparação entre o pensamento artificial e o pensamento humano. Pois como poderia haver assimilação voluntária de dados numa máquina, à semelhança da vontade do homem? Não é possível sequer imaginar que, ao inventar o homem a máquina, isso tenha podido interromper o bom funcionamento das leis da natureza e mesmo considerando-se os bebês de proveta, cujos nascimentos diferem da forma costumeira, tanto na fecundação quanto onde se desenvolverá (fora do útero materno), todos os procedimentos terão necessariamente que imitar o procedimento da natureza, senão não vinga. A estabilidade do real impede que um homem nasça ornitorrinco, que dois mais dois somem cinco e que o progresso resolva todos os males humanos…

Do exposto até aqui, pode-se perceber que muito da mentalidade atual decorre de um equívoco que prosseguiu com Descartes, persistiu num cochilo de São Tomás de Aquino, pelo fato deste ter confundido a razão com o pensamento discursivo (embora o conceito com o qual tenha operado fosse o de razão, mesmo). São Tomás chama de inteligência o que chamamos de inteligência racional e inteligência intuitiva, Descartes e outros vão considerar que razão consiste na capacidade de fazer silogismos ou de fazer cálculo (o que também uma máquina faz).

Todos esses conceitos errados geraram falsos problemas. O pensamento, conceituado (erroneamente) como foi, coloca-se como logicamente distinto das demais funções humanas, quando na verdade, na prática, o pensamento funciona o tempo todo ligado às outras funções e orientado pela função que estou denominando razão, que é o senso de harmonia do todo. Caso não fosse assim, seriam indistintos o pensamento do computador e o nosso, pois o pensamento formalmente lógico (como o do computador), algo como o algoritmo dos pensamentos possíveis, nunca pode ser verdadeiro ou falso, pois a veracidade ou falsidade deste está na premissa que o desencadeia e quem dá a premissa é o homem. A preocupação de que uma máquina possa pensar melhor que o homem é como o medo de um escultor pela estátua que construiu, é um medo criado e fomentado pelos criadores da ficção científica.

Há um livro de Norbert Wimman, Deus, Golen e Cia, que é hilariante. Trata-se da possibilidade de alguém inventar uma máquina capaz de inventar outra melhor do que esta. Na hora em que isto é feito, não é possível saber a diferença entre homem e Deus. É uma grande piada contada pelo inventor da cibernética, a máquina, criada pelo homem, para fazer uma máquina melhor do que ela, fez uma máquina melhor do que ela. Nada mais lógico.

O raciocínio, para que se efetive, tem que contar com o apoio da vontade, de forma que todo o ser seja forçado a dirigir-se à meta pretendida, que é a coerência do todo, isso é o oposto do que Gurdjieff propunha aos seus discípulos, ou seja, lhes propunha exercícios de descoordenação motora e ao invés de fazer convergir todas as funções para um todo ordenado, coerente e lógico, ele as fazia concorrer entre si, de forma a ficarem independentes uma das outras, apenas o sujeito que estivesse no começo desta linha de montagem não ficaria comprometido, ao contrário de Freud, que tentava por ordem no caos, Gurdjieff procurava caotizar o que estivesse na luz.

A vontade de saber, de conhecer a verdade é o que impulsiona o indivíduo e isso poderá leva-lo a defrontar-se com coisas que aparentemente podem assustá-lo, como aconteceu com Freud e Nietzsche. O primeiro assustou-se com o mundo subterrâneo, louco, assassino, que descobriu; e o segundo, ao descobrir motivações pouquíssimo (ou nada) nobres por trás dos atos aparentemente superiores e os mais aparentemente morais. Ambos viram a humanidade pelas costas o que é difícil de se ver sem enlouquecer, não eram muito rigorosos quanto a lógica, do ponto de vista do método, tinham imaginação suficiente para por à frente das vistas o objeto e crê-lo real; possuíam grande facilidade retórica. Freud inclusive, era um estilista primoroso, tanto é assim, que inúmeras coisas que concebia como possível, passaram a ser francamente admitidas como possíveis, após este e Nietzsche terem expostos suas idéias. A indignação e o descrédito quanto a espécie humana, é compreensível e é grande. Porém, como distinguir a indignação verdadeira da simples ocasião de desrecalque? É sabendo que, se não existisse a indignação verdadeira, não poderíamos suspeitar da falsa.

Pergunta-se então qual o papel da revelação nisto tudo, uma revelação estabelece um cômputo de símbolos, portanto tem uma função muito mais poética do que lega, abre um novo mundo para a civilização inteira, embora nela mesma não sejam dados os critérios de verdade lógica, verdade científica. Ao estabelecer um campo de símbolos que antes não existia, abre-se então um continente novo para o ser humano, que não se imaginava. O livro sacro em grande parte é sibilino, não é claro, é para ser interpretado, o papel inicial dele é sobretudo o de mudar a imaginação, depois o sentimento e depois a vontade e a inteligência sendo afetada em último lugar. Pode-se ocorrer que, do momento da revelação até a explicitação da doutrina passem mil, dois mil anos e é prazo longo demais para a ciência se pronunciar a respeito de algo – aqueles a quem interessasse a resposta científica do problema já estariam todos mortos. O sentido dado pela revelação não é dado diretamente à inteligência, mas sobretudo à imaginação, o que permite um arrebatamento das pessoas que passam a se esforçar num determinado sentido e só muito posteriormente a dúvida surge, ou seja, quando alguém coloca uma questão que requeira esclarecimento. Neste momento então surge a doutrina e na medida da expansão da religião, começam a surgir as dificuldades de interpretação, surgem questões que no meio simples, onde a revelação nasceu, não existiam. Vai-se passando então, gradativamente, do discurso poético ao analítico. No caso da doutrina cristã, essa passagem do poético para o analítico levou 1300 anos, até hoje havendo pontos não completamente esclarecidos, no começo, segue-se mais pelo instinto, pela inspiração, pelo entusiasmo religioso, sem que se esteja entendendo uma palavra sequer do que foi dito, não sendo necessário haver este entendimento, pois as coisas vão se encaminhando pela simples razão de que as pessoas entusiasmadas pelo mesmo objetivo são naturalmente coordenadas.

Não é necessário muita discussão neste momento inicial, as discussões só passam a surgir com a emergência dos intérpretes, dos teólogos. Sempre houve na história mais teólogos que se equivocaram por causa da Bíblia ou do Corão do que psicanalistas por causa de Freud e a psicanálise. O que é Freud diante de todos aqueles que querem salvar a nossa alma? No caso de Freud e a psicanálise, a pessoa tem que pagar, o que torna grande parte da população defendida contra seus erros. Há um certo espírito fáustico, que pode tanto criar problemas para o homem quanto empurrá-lo para frente; pode haver um desejo mórbido de experimentar o possível ou um impulso de crescer e este é o espírito prometeico que existe e que tem de persistir no homem, no mito, quem salva Prometeu é Hércules, que simboliza a vontade.

O progresso do conhecimento tem que estar sob o domínio da vontade, de modo que não haja extravasamentos, esta vai ser o elemento equilibrante entre o autoritarismo dogmático, conservador, tradicionalista, e as funções de permanência, progresso e mudança. Quanto de permanência e quanto de mudança deve haver? Compete à estimativa, que deve perceber o perigo e agir. Em O Homem e a Natureza, de Seyyed Hossein Nasr é dito que o espírito prometeico é o que está devastando o mundo. Porém como ele explica o surgimento do deserto da Líbia? A civilização islâmica com todo o seu tradicionalismo e simbolismo da natureza produziu um belo deserto que está lá até hoje e Israel com toda a sua tecnologia transformou um deserto num jardim. A Líbia era uma região riquíssima e havia governantes islâmicos tratando errado a região, provocando uma catástrofe ecológica (o que ocorreu em mais ou menos 1400 da nossa era).

3 – RAZÃO

Devemos fazer o possível para nos afastar das maneiras vulgares e correntes de entender o que seja razão, as quais a identificam como cálculo matemático, como a simples lógica formal, ou ainda como a faculdade de raciocínio, de pensamento discursivo.

O pensamento discursivo nada mais é que a redução de múltiplos pensamentos em uma unidade. Ao se prestar atenção ao silogismo, nota-se que ele não passa de uma operação de verificação do que existe de comum entre dois juízos ou proposições, este requer então o chamado termo médio, que está presente tanto na premissa maior quanto na conclusão, por isso, o termo médio encadeia um ao outro, transfere uma identidade de juízo para outro. O pensamento discursivo então não passa de uma aplicação da identidade.

A identidade, o princípio da não contradição, e o princípio do terceiro excluído, são princípios intuitivos, porém, a função que os capta não é a intuição, pois a identidade nunca é um objeto presente, ela nunca aparece como tal. O que aparece são os entes, sejam entes corporais, sejam entes de razão. Os princípios, propriamente, não aparecem. Pode-se intuir a identidade em alguma coisa, mas esta não nos aparece enquanto tal, não se capta a identidade em si mesma, porém, uma vez captada, dela pode-se extrair um princípio. Para se entender isso é preciso usar o mesmo procedimento usado no estudo da intuição, ou seja, é necessário buscar uma experiência que possa fundar não só a idéia da identidade como também sua veracidade.

O conceito de verdade não foi deduzido da experiência – foi intuído e uma verdade fica sendo modelo de todas as outras, o que é justamente a experiência da tripla intuição. Pode-se tentar explicar que o homem conhece o que conhece porque tem predisposição para conhecer, isto explica apenas a possibilidade do pensamento racional, da intuição, mas não explica que esta tenha aparecido verdadeiramente. A entrada em funcionamento e a tomada de consciência destas faculdades têm que ter por base uma experiência, um momento inaugural que desencadeia a posse da faculdade em questão. Se anteriormente descobrimos esta experiência com relação a intuição e chegamos à conclusão de que é a experiência da luz, pode-se perguntar: existe alguma experiência para o homem que funde a possibilidade, a noção e a veracidade do pensamento discursivo ou racional? Talvez, mas não podemos assinalar uma experiência em particular, e sim um tipo de experiência que é a experiência do mesmo e do outro.2

Se existe já nos sentidos e na memória a idéia do mesmo e do outro, a identidade surge simplesmente na hora em que pensamos novamente o mesmo pensamento e erigimos em princípio esta experiência imediata a qual vem a ser um dos fundamentos naturais do pensamento racional. Devemos ter em conta, porém, que o pensamento discursivo não esgota a razão pois a razão é muito mais que isso.

Se eu faço um juízo que implica identidade, dizemos que esse juízo é racional. Então o pensamento discursivo é simplesmente a identidade transferida do pensamento. É fácil ver que diante dos sentidos de qualquer ser, os outros seres e situações desfilam em uma multiplicidade inesgotável dentro da qual se distingue o mesmo e o outro, o semelhante e o diferente. A operação de aplicar a identidade e a de reconhecer o mesmo e o outro é um conhecer que, no fundo, é um reconhecer. Este reconhecer se dá no momento onde os sentidos captam atualmente a mesma coisa que a memória capta no passado.

A memória é um sentido interno, está dentro de nós, com ela, produzimos uma ficção de percepção, dito de outro modo, um fingimento de percepção. E se este fingimento de percepção, que chamamos recordação, coincide com a percepção real que temos através dos sentidos externos, reconhecemos o mesmo. Produz-se uma imagem com os sentidos internos ao mesmo tempo que os olhos oferecem uma outra imagem que vem de fora, quando as duas imagens coincidem, dizemos que é o mesmo. É, pois, uma superposição do externo e do interno e esta só é possível graças a tripla intuição, e no caso da, o interno e o externo são imediatos, ou seja, não há separação entre eles. Já no caso do raciocínio, do pensamento, existe primeiro um, depois o outro, tendo-se que voltar ao primeiro, ao segundo etc. Há então, um intervalo entre a ação do sentido interno e o externo e a apreensão do nexo entre estes dois e, neste caso a apreensão do nexo não é simultânea com as intuições interna e a externa, existindo então uma espécie de vai e vem, porque um dos dados não está presente.

2 - Um animal já reconhece o mesmo e o outro. Por exemplo, conhece a sua mãe e a conhece pela memória. Esta experiência, que é inegável, mesmo que seja equivocada (o animal pode enganar-se e achar uma outra mãe), pressupõe a diferença do mesmo e do outro.

A experiência interna é uma experiência de memória, de repetição (repetir = pedir de novo, querer a mesma coisa), sente-se uma sensação novamente, não porque ela foi provocada pelo mundo exterior, mas porque a pedimos, ou seja, a quisemos. E é a isso que chamamos recordação, que é colocar uma coisa de novo “perante o coração”, oferecer de novo o mesmo objeto à intuição. Deseja-se o objeto mas este não está presente; não aparece externamente. Aparecendo só desejo e a sua imagem, repetida, e está repetição coincide com aquilo que está sendo oferecido aos sentidos naquele mesmo momento. Então conclui-se que é o mesmo, e que o que gerou foi a coincidência da intuição interna com a externa. O animal faz isso assim como nós o fazemos, ou seja, compara os dados dos sentidos com a recordação que já possui.

Podemos comparar também não apenas um dado do sentido interno com outro do sentido externo, bem como do contrário, um dado do sentido externo com o do sentido interno e verificar se trata-se do mesmo objeto, visto de dois lados, em duas ocasiões. Além disso, podemos ainda comparar uma imagem do sentido interno com um simples esquema, pois dos dados dos sentidos, retemos na memória uma imagem, porém como a repetição dessa imagem é um pouco trabalhosa (como por exemplo, a imagem de um elefante com todos aqueles detalhes como do lugar onde estava, sua cor, etc.), substituímo-lo então por um esquema simplificado. Às vezes, pensamos muito rápido e não lembramos sequer do esquema e, sim, da intenção de montá-lo. E isto basta para que se reconheça o elefante. Se comparamos este esquema com a imagem atual do elefante, dizemos que é o mesmo, ao mesmo tempo que sabemos que é outro, porque um elefante estou vendo e outro estou pensando. Também podemos comparar um esquema com uma imagem produzida pela memória, pela fantasia, e ainda um esquema com outro esquema e concluir que trata-se do mesmo. A experiência primordial do mesmo e do outro que governa tudo isso é a mesma, para animal e o homem.

O que vem a ser então pensamento discursivo? Nada mais que a experiência do mesmo e do outro, transferida para dentro, com mais abstração e mais velocidade, uma vez que o pensamento abstrativo é mais veloz do que a fantasia, pois é mais fácil lembrar do conceito cachorro do que produzir uma imagem completa deste. Mediante a simplificação, o homem adquire então um pensamento mais veloz, e este por sua vez não requer a reprodução, a repetição integral da experiência dos sentidos, é a este pensamento que denominamos pensamento discursivo ou pensamento racional.

E o que é conceito? Este é um termo que vem do verbo latino cepio, cepire, que quer dizer captar, pegar e o prefixo com, significa junto. Conceito é então o esquema com o qual podemos produzir uma imagem ou até mesmo uma sensação. Se temos um esquema bem elaborado, bem simplificado, podemos ter o conceito da coisa sem nenhuma palavra. O termo “conceito” é a palavra com que designo aquele ente. Se todas as nossas palavras estivessem erradas, mas pelos nomes errados pensássemos nos objetos certos, o termo ainda assim funcionaria. O termo então, não tem tanta importância. Pois podemos ter o conceito sem ter o termo, sendo o conceito então um esquema abreviado.

O conceito é anterior à sua expressão analítica, operamos com conceitos, mas antes precisamos tê-los e a operação com conceitos chama-se pensamento discursivo. A produção do conceito não é nada mais do que uma série de simplificações, mediante as quais vamos obtendo esquemas cada vez mais vazios, menos cheios de experiência vivida e mais cheios de intenções.

Vemos determinado objeto, que depois desaparece. Mas mantemos a recordação deste e em seguida o vemos em outro momento em outro lugar, sob certa luminosidade, cor e situação. Se cada vez que tivéssemos que recordar este objeto também tivéssemos que recordar todas essas condições, primeiro poderia ocorrer que confundíssemos tal objeto com algo que o circundava; ou que a reconstrução da imagem nos desse muito trabalho, então vamos simplificando e a esta simplificação chamamos abstração, o que significa separar uma coisa da outra. Vamos tirando todas as particularidades, até não nos sobrar nenhuma imagem, restando apenas um simples esquema de intenção. Se precisássemos de palavras para fazer tudo isso, jamais poderíamos aprender o que quer que fosse, pois uma criancinha já faz isso antes mesmo de saber palavras. O processo segue então a seguinte ordem: primeiro, tem-se uma intuição sensível do objeto, depois uma intuição interna da imagem deste, e após intuições sucessivas, começa-se a simplificar o objeto e não mais recordá-lo com todos os detalhes e, no fim, não sobra propriamente imagem e, sim, uma simples e delicada intenção, muito sutil que não se realiza propriamente em imagem. E é só quando surge a comparação – tal coisa é maior que outra – é que começa a explicação e uma vez que esta não seja suficiente, produz-se uma representação sensível (como um desenho, por exemplo). A todo momento podemos explicar ou implicar e o máximo de explicação é a experiência sensível, ou seja, a visão de um objeto real, em um determinado lugar, em suma, com tudo quanto é necessário para que este objeto possa existir e quando vamos recordá-lo, o fazemos um pouco mais implícito, ou seja, pensamos no objeto sem pensar nas condições reais onde estava.

A esse processo que chamo abstração, (naturalmente me referindo a sua estrutura lógica), psicologicamente, deveria ter outro nome, simplificação, talvez, pois abstração supõe um desejo de tirar, excluir algo e, na verdade, quando estamos simplificando, não pensamos nessa hora naquilo que se exclui e, sim, no que se inclui, há uma espécie de concentração no objeto e esta concentração implica em (ou exige logicamente) abstração.

O homem começa a fazer esquemas por natureza. Não é possível apreender as coisas, se toda vez precisássemos lembra-las extensivamente. O homem é, por isso, um animal simplificante por natureza. Existe uma esquematização natural, que vai até certo ponto, até a um máximo a partir do qual é preciso comunicá-lo, e é quando surge o termo, a palavra, o fato de que uma criança antes de começar a falar, já faça essa esquematização, prova que o termo, a palavra, não é necessário à construção de esquemas, estes vem no fim do processo. Se não houver termo algum o indivíduo pode inventar um, assim como as crianças inventam nomes para as coisas, de forma que a distingui-las umas das outras.

A escola vai nos ensinar vários termos, o problema surge quando ensina ao aluno termos dos quais este não tem os conceitos, o mesmo também acontecendo na vida comum, como é o caso do pai ou mãe conversarem com uma criança respeito de coisas que esta, não sabendo o que significam, aprende a usar a palavra sem o conceito. A criança aprende que falando determinada coisa, (imaginando saber o que está falando) o pai reagirá de tal ou qual maneira. A palavra passa a ter assim, uma função não designativa mas mágica, de desencadear uma reação qualquer no pai ou na mãe e a criança passando então a falar essas palavras não por causa das coisas designadas, mas pelas ações conseqüentes destas. Permanece implícita assim toda uma cadeia e como o resultado passa ser o que lhe convém, a criança mantém o esquema.

Este hábito, contraído na infância, está na raiz de muitos pensamentos mágicos e errados que temos depois de adultos, onde esperamos que certas palavras produzam certos efeitos. Embora sem saber ao certo o que estamos falando, contamos com que o outro vá reagir de uma determinada maneira, como por exemplo, “xingar alguém de raciocínio”, imaginando-se que este não vá gostar, e por ambos não saberem o que é “ser raciocínio” a ofensa surge, tudo isso é o uso mágico da linguagem. E quando se vê esse tipo de uso de linguagem ainda presentes em discussões ideológicas, filosóficas, científicas tendemos a dar razão a Darwin quando dizia que o homem descende do macaco, pois tal pensamento é digno deste. Descartes dizia que todos os nossos problemas decorrem do fato de que antes de sermos adultos fomos crianças; e o apóstolo São Paulo dizia: “Quando eu era criança, pensava como criança; agora que sou adulto penso como adulto”. Isso infelizmente nem sempre acontece pois mesmo quando a pessoa torna-se cronologicamente adulta, continua usando as palavras apenas tomando-as apenas como instrumentos de ação, acreditando que vão provocar um efeito imediato e uma vez que esse uso se torne corrente, como aliás se tornou, as palavras passam a desencadear apenas ações, ficando implícito aquilo que realmente designam. É exatamente disso que vive a propaganda, do uso elementar da linguagem.

Recordando então da intuição sensível, partimos para a recordação, uma intuição sensível externa transforma-se numa intuição interna, e formamos um esquema. Quando este ainda conserva algo da imagem, chama-se esquema fático; quando não se tem mais imagem, e é somente uma intenção, chamamos de esquema eidético, pois é apenas uma idéia. Quando se tem o esquema eidético, tem-se o conceito, pois o esquema eidético já é um conceito, que é um instrumento mental que permite captar uma intenção e, através desta, o objeto intencionado, não precisando do objeto, mas apenas da intenção. O conceito é como se fosse um cheque, possuindo mais, ou menos liquidez, o conceito pode ainda ser substituído por uma recordação plena do fato ou não, pode estar mais próximo da intuição que o originou. A situação ideal se dá quando se tem o máximo de liquidez, como com o cheque. O conceito, quando não evoca a intuição, é inadequado, e se sempre evoca a intuição, não será possível operar apenas com esquemas e, sim, com imagens, o que acaba tornando o raciocínio pesado, pois seria como ter que fazer corresponder, ao cheque, uma imensa quantidade de dinheiro, o que tornaria difícil o transporte. Devemos ter em conta que falamos de elementos psicológicos, a palavra que evoca a imagem mais facilmente ou menos facilmente é um dado de ordem puramente psicológica e se o conceito não evoca facilmente a intuição, então não é possível saber do que se fala.

O esquema então é: fato, intuição externa, intuição interna, esquema fático, esquema eidético, conceito e termo. Esta é toda a cadeia, ou seja, conceito, termo e definição, sendo este ultimo uma expressão discursiva. Toda esta cadeia foi vista apenas para esclarecer aquele ponto inicial: existe a apreensão imediato do mesmo e do outro e esta não advém absolutamente de uma forma a priori do nosso entendimento e sim do fato de que existem as mesmas coisas e existem as outras coisas.

As formas a priori, por mais que existam (acredito que elas existam) de nada serviriam se não houvesse a experiência, pois ficaríamos com as formas a priori da identidade, da diferença, o resto da vida, mas nunca veríamos identidade da diferença, ou de qualquer outra coisa. Se não aparece algo que seja semelhante, e algo que seja diferente para que possamos ver, de nada adianta termos o esquema a priori da identidade e da diferença. Retomando a pergunta quanto a psicológica, ou seja, quando surge no homem, naturalmente, o princípio de identidade? Pela experiência do mesmo e do outro.

O pensamento discursivo não é então, nada mais que a transferência destes esquemas de mesmo e outro, desde a intuição até o pensamento, e só é possível a partir do momento em que, tomando como base a experiência do mesmo e do outro, decidimos fixar determinadas significações e intenções, operamos com estas como se entre elas existissem as mesmas semelhanças e diferenças que existem entre coisas reais, pois podemos chamar um elefante de passarinho e este de elefante, mas não podemos ver um elefante de carne e osso num passarinho nem um este num elefante. O nosso pensamento o fazemos do jeito que quisermos. Porém não podemos fazer o mesmo quanto aos sentidos pois o que percebemos através destes sentidos tem uma estabilidade, uma permanência, os sentidos nos impõem certas coisas. Na hora em que decidimos regrar nosso pensamento segundo a mesma fixidez do mesmo e do outro que observo nas coisas sensíveis, começa então o pensamento discursivo realmente regrado pelo mesmo e pelo outro, pela identidade. Porém, isto é somente pensamento discursivo. E o que é a razão? É a totalidade da experiência do mesmo e do outro.

A razão é a idéia mesma do mesmo e do outro junto com a totalidade das suas aplicações, seja na intuição externa, seja na interna, seja na intuição intelectual, seja no pensamento, seja onde for.

Além de se perceber o mesmo e o outro e o outro não poder ser o mesmo – ao que chamo não-contradição; também percebo que não existe uma terceira coisa que possam ser, ou é o mesmo ou é o outro, ou seja, não há intermediário entre o mesmo e o outro (pode existir mentalmente, realmente, não).

A distinção do mesmo e do outro que um faz com relação aos objetos sensíveis que percebe, é perfeita, e é correta, a que este faz na sua sensação interna também é perfeita, porque sabe se tem medo ou se tem raiva. Não é possível dizer que um cachorro corre porque ficou com raiva de alguém, ele corre porque ficou com medo e ele mesmo sabe disso, porém, ele não tem esquemas suficientes para perceber a multidão de mesmos e outros que nós percebemos. Primeiramente, porque o homem tem mais memória, percebe, por exemplo, a diferença entre o medo e a raiva no instante em que não os está sentindo, porque operando através dos conceitos, dos esquemas de medo e raiva, os distingue na sua ausência e isso o animal não pode fazer . A objetividade começa na hora em que se vai completando a intuição das coisas presentes pela sua relação com as ausentes, e é isso que o homem faz e que qualquer outro animal não pode fazer, pois este é dependente da presença e aquele não. Quando o estímulo cessa, para o animal que o provocou aquilo não existe mais, ficando apenas uma certa retenção pelos sentidos internos, pela memória, todavia, a esquematização do animal é muito pobre, não indo, ao contrário do que acontece com o homem, muito longe, dependendo portanto, da experiência sensorial presente.

Na medida em que se pode comparar coisas presentes com ausentes; mais ainda, em que se pode ter uma presença, um nexo intelectual através da intuição racional e ainda conectar esta intuição racional presente com um monte de nexos lógicos e coisas ausentes, vai-se completando a imagem do mundo, a imagem do real. O homem também pode completar isso com a consciência das próprias condições em que se dá seu conhecimento e quando se conecta a totalidade do conhecimento com a totalidade da auto consciência, alcança-se a objetividade. Não é possível ir além.

A noção de objetividade está muito ligada a noção de totalidade, os animais na verdade, são mais abstrativos que o homem (considerando tal termo em escala negativa), ele desconecta o ente das condições reais que cercam a sua existência e é mais fácil para um animal conhecer a essência de um objeto, do que conhecer as condições que possibilitam sua existência pois, para isso ele precisaria conectar essa essência com uma multidão de condições diversas que nunca se dão ao mesmo tempo.

O conhecimento verdadeiro é aquele que conhece a essência e as condições de existência do ente. Na hora em que se consegue juntar a essência, com as condições de existência e com as condições de conhecimento deste e daquele, então não há mais o que conhecer a respeito do objeto. E a isso chamamos objetividade.

O grande erro que os filósofos cometeram muitas vezes foi o de achar que a razão só existe no pensamento, caíram em um erro chamado abstratismo, distinguiram entre os sentidos e o pensamento e fizeram a distinção tão bem feita e de tal forma, que tudo que estava em um não estava no outro e vice-versa. A distinção que fizeram é puramente mental – de fato, o indivíduo que tem pensamentos é porque tem sentidos, e os tendo então tem pelo menos a base do pensamento e essas coisas não se dão separadamente. A distinção é puramente mental, formal e como distinguiram o pensamento dos sentidos, acharam que tudo que havia de racional nos sentidos provinha do pensamento. Mas a razão é um princípio comum que está presente nos sentidos, nos pensamentos e nas coisas.

O sentido tem a proporcionalidade. Por exemplo, se faço um barulho muito alto, o tímpano vibra muito; se faço um barulho pequeno, vibra pouco, se ponho uma luz muito forte a pupila reage muito, ao contrário reage pouco. E assim é a razão, ou seja, existe um nexo lógico de uma coisa com a outra, um nexo proporcional entre sujeito e objeto. Nexo que está presente nos sentidos, na memória, no pensamento, etc. Acontece que é mais fácil examinar a estrutura da razão no pensamento do que nos sentidos, por isso é que Aristóteles fez a lógica do pensamento falado e atualmente é que se começa a ver a lógica dos sentidos.

Se existe lógica no pensamento e nos sentidos, qual o nome que se dá a este fator (ou princípio) comum? É o que denominamos razão, a qual é o princípio de coesão universal, da junção dos semelhantes e separação dos diferentes, princípio este que está dentro da própria intuição, que o pressupõe. Não existe portanto separação entre razão, intuição, sensação, sentimento, etc.

A intuição é uma faculdade humana, a memória é uma faculdade humana, já o pensamento é uma faculdade humana, já a razão não. A razão é um nexo que está ao mesmo tempo no homem e nas coisas.

Não se pode dizer que a flor tem intuição, ela se evidencia, aparece e como se evidencia o homem tem intuição dela. A intuição é um dado humano, e a razão tem que estar igualmente na coisa intuída e no sujeito que a intuiu. A flor tem forma, emite ao ser que a vê uma informação proporcional à sua forma, ou seja, a flor emite uma informação de flor e o homem uma informação humana. Cada ser transmite aos outros uma informação suficiente a sua própria forma. Vemos o hipopótamo como hipopótamo, a flor como flor, o mosquito como mosquito, isto é a razão, esta mesmidade da aparência deles, se os seus aparecessem cada vez com uma aparência diferente, então não haveria razão.

A intuição, o pensamento, a memória, etc., são faculdades humanas. A razão é uma faculdade humana, porém, imperfeitamente, assim designo-a porque ela não é só isso. Ela é a totalidade da mesmidade das relações, dos nexos entre mesmidade e alteridade, dentro e fora do homem pois a razão aparece de uma forma na memória, de outro no pensamento, e de outro ainda na vontade.

Os escolásticos operavam com o conceito de razão universal. Na hora de explicar, explicavam só o conceito restritivo (como São Tomás de Aquino, que define a razão como a capacidade de transitar de um pensamento a outro).

Definir inteligência, intuição e razão faz parte da ciência da psicologia, no que diz respeito, por exemplo, à metafísica, à ontologia e à filosofia da natureza, estes usam conceito amplo de razão, mas quando trata da psicologia em particular, tendo que definir a razão, define o raciocínio. Este conceito abrangente e universal da razão já existe em Platão, Aristóteles e nos próprios escolásticos, e ainda em Hegel, quando este diz que o racional é real e o real é racional, mas depois de Hegel perdem isso de vista, na hora em que o pensamento discursivo alcançou um desenvolvimento muito grande, tomou então o lugar da razão universal.

Para sermos totalmente coerentes com o propósito do próprio pensamento, como devemos ser, é necessário buscar a coerência das formulações do filósofo com o seu próprio pensamento, de forma a não se prender à letra nos momentos em que um erro desses se comete. Os escolásticos já levavam isso em conta nos autores antigos, ao dizerem que Aristóteles ao escrever era negligente. Uma negligência cometida pelo filósofo, seja no desenvolvimento da sua idéia seja na simples escrita, não é um conteúdo filosófico a ser levado a sério, pois tais coisas são levadas a sério apenas por aqueles de mentalidade servil, para os quais cada vírgula escrita é sacrossanta. Pode-se perfeitamente corrigir Aristóteles, São Tomás de Aquino ou qualquer outro em nome deles mesmos deve-se fazer isso a partir da hora em que se está seguro da compreensão dos princípios fundamentais das obras em questão. Conhecendo-os poderá se notar que alguns dos desenvolvimentos que um autor deu pode estar errado, como por exemplo, quando Kant diz que “a coisa existe em si”, sendo esta afirmativa incoerente com seu próprio pensamento.

É preciso notar que o uso da linguagem filosófica atualmente e dos escolásticos no seu tempo, é muito diferente. Por exemplo, para um escolástico era perfeitamente normal alguém fazer uma distinção exagerada e depois colocar varias atenuações, ao passo que hoje em dia não é assim, pois toda a tentativa se dá no sentido de achar uma frase que expresse tudo ao mesmo tempo. Hoje tendemos mais para a dialética e a retórica, e já os escolásticos tendiam mais para o discurso analítico e este sempre tem algo de exagerado, porque faz uma simplificação geométrica.

Compreendemos por tudo isso que, o conceito clássico, platônico, aristotélico, escolástico e hegeliano da razão é como razão universal, não tendo sentido falar da intuição de plantas. Questão diferente é falar de faculdades. Cada faculdade tem um objeto que lhe corresponde. À memória correspondem as coisas recordadas; aos sentidos, os objetos dos sentidos; à intuição, a evidência. À razão, corresponde a razão mesma, esta é a faculdade cognitiva e o objeto ao mesmo tempo, percebe a racionalidade, capta a racionalidade; é faculdade do nexo, a qual capta o nexo. Todas as outras faculdades o são no sentido propriamente dito, enquanto a razão o é impropriamente. A razão não é apenas uma faculdade. Ela o é no homem ao mesmo tempo que é uma propriedade das coisas.

O que permitiu esclarecer isso de maneira definitiva foram as aplicações biológicas da teoria da informação. Observou-se que todos os seres permanentemente emitem e recebem informações dos seus circunstantes e o que denominamos a forma de um ente, não é nada mais que a totalidade das informações que ele pode emitir para nós, não podendo emitir outras além dessas, por exemplo, um pássaro não pode emitir uma informação que faça ver nele um hipopótamo, pois ele tem uma forma e esta não é só sua forma física; é também a totalidade das informações que ele pode emitir.

Vejamos outro exemplo, consideremos a águia, o mosquito e o sapo – a poucos metros do sapo, um mosquito, a cem metros de altura uma águia. No mesmo instante a águia e o mosquito olham para o sapo, cada um vê uma coisa completamente diferente do que o outro. O mosquito vê mil sapos, o sapo por sua vez, tendo uma visão de duzentos e sessenta graus, vê tudo à sua volta (como em uma lente olho-de-peixe que aumenta muito o que esta perto e diminui as que estão longe). Se o mosquito estiver a uns dois metros do sapo, devido ao tipo de visão que possui, este não consegue vê-lo, já a águia tem uma visão de tipo exatamente oposto; ela enxerga com mais clareza o que está longe. Quem tem razão? Qual é o verdadeiro sapo e qual é o verdadeiro mosquito? A águia não é vista pelo mosquito e nem pelo sapo que quando a vê já está em suas garras. Na história, introduzimos um quarto ente chamado homem que descreve o que o sapo, o mosquito e a águia vêm, simultaneamente. Cada um dos outros personagens está isolado num mundo que é o seu próprio, pois a compreensão dos tipos de visão existentes só é possível pelo pensamento abstrativo. Para comprovar que os três estão vendo o real, basta compreender que faz parte da estrutura real do sapo ser visto de uma maneira pelo mosquito de outra pela águia, os pontos de vista não podendo ser trocado entre eles, um fato que os escolásticos já sabiam. Diziam estes que cada ser percebe segundo a sua forma (Sto. Tomás de Aquino). A biologia e a informática demonstraram que a forma do ser não é apenas a forma física, é o código total das informações que podem ser transmitidas, o que em matemática chamamos algoritmo, informações diferentes conforme sejam diferentes as formas dos receptores.

Isto é a razão: esta forma que tem cada ser e que é comproporcional de um para o outro, tão comproporcional que são perfeitamente ajustados. Um pode se relacionar com o outro apenas de acordo com a sua forma e esta proporcionalidade, este sistema de nexos, está presente em todos os seres.

No Gênese bíblico é o homem quem dá nome aos animais segundo a natureza de cada um, pelo que se percebe, que o homem tem uma posição privilegiada, ou seja, ele enxerga a todos e nem todos se enxergam entre si, é o único ser para qual todos os seres estão colocados em um só mundo. Para os demais, existem mundos pequenos onde cada um está isolado.

Perguntar se o sapo-em-si existe, é uma questão que nos faz retornar a Kant. O sapo-em- si não existe, pois o que existe em si não existe para o outro e o que não existe para o outro não emite nenhuma informação, pois para emitir para si mesmo, ele precisaria criar uma dualidade em si, precisaria ser um outro ao menos provisoriamente. O objeto-em-si é uma expressão auto- contraditória dado que o objeto deriva de ob jecto “aquilo que está jogado adiante”. Existir, ser real, é poder agir. O sapo age sobre a águia , emitindo-lhe um sinal sobre sua própria forma, agindo independente de querer ou não. Um objeto em si não existe na medida em que não age sobre nada e, por isso, nem por nada nem por ninguém poderia ser percebido, não tendo portanto existência real. Mesmo o arquétipo, é o arquétipo de algo para alguém.

Quando Kant diz a coisa em si, quer dizer, a coisa independentemente de como aparece para este ou aquele outro ser em particular. Porém a existência nunca é a existência plena, é existência potencial. Se digo que o sapo existe é porque ele pode emitir informações, pois se já tivesse emitido todas as informações, que lhes são possíveis, já não existiria mais. Algo é real enquanto transmite informações atualmente e ainda pode transmitir outras, e não havendo mais nada a transmitir, deixa de existir. Essas informações o objeto (ou ser) não as emite prestadas na totalidade, há uma certa retenção. Por exemplo, uma criança que ninguém pode vê-la como adulto pelo fato desta informação ainda estar retida, ou quando a águia vê o sapo, é uma informação; quando ela o come sentindo seu gosto já é outra, pois se a águia sentisse o gosto no momento que visse o sapo não precisaria comê-lo.

A coisa em si independentemente de todos os sujeitos, só pode existir mentalmente, como suposição, nunca realmente. A coisa em si não é real. Até mesmo o conceito de coisa em si é coisa em si para alguém (trata-se de um conceito de uma possibilidade lógica). Como dizia Aristóteles, a palavra cão, não morde. O conceito de algo versa apenas sobre as suas possibilidades lógicas e não sobre a sua existência real, do contrário, seria o mesmo que ir a um restaurante e comer o cardápio ao invés da comida. A coisa em si não é nada. Nem Deus pode ser Deus em si, Ele é Deus para, como consta na Bíblia: “Se credes em mim eu sou vosso Senhor”.

Quando Kant disse que não podemos conhecer a coisa em si, não quis limitar o conhecimento, pois neste caso, está limitado pelo nada, e o nada não limita.

Temos o conceito do impossível, ele é possível? Não. É um conceito vazio. A coisa em si é impossível, e o impossível é impossível e no entanto pode ser conceituado. O homem necessita que seu pensamento vá além do real, justamente para saber o que é real, tem um ponto além do qual nada existe e ao qual chegando deve parar. Se não existisse o conceito de impossível, de nada, da coisa em si, não poderíamos fazer metafísica, não poderíamos conhecer o real na totalidade, pois totalidade é aquilo para além do qual nada existe. Nada é a possibilidade teórica de que nada existisse. É a pergunta de Heidegger: Por que existe o ser e não antes o nada? O homem pode até fazer essa pergunta, embora a pergunta em si seja absurda. Se não tivéssemos a possibilidade de pensar o absurdo, não teríamos a razão. São todos pensamentos que nada têm haver com o real, são possibilidades concebidas mentalmente assim como a possibilidade do eu não ser o eu, e embora não exista essa possibilidade posso concebê-la e uma vez concebida faço a respeito dela o seguinte juízo: isto é impossível.

O sapo em si não poderia nem ser sapo, pois, o que é ser sapo? É ser distinto de outros animais, e se não existissem outros animais tanto faria ser sapo ou vaca, então se um ente tem forma, é porque tem um limite, e se tem limite é porque tem algo fora dele, tendo algo fora dele, é sapo em relação a esse algo que não é sapo. Mas se não houvesse nada que não fosse sapo, então tudo seria sapo. O sapo existe nele mesmo, mas este existir não consiste em existir para si mesmo e sim para outros.

Réné Guénon faz a distinção entre o real e o manifestado, sempre o imanifestado está acima do manifestado. Isso é Kant sob nova forma, afirmando que a coisa em si é superior à coisa manifestada. Acontece porém que a coisa em si não existe e o imanifestado também não, este só existe como potência, ou existe como potência e sendo potência é potência para um ato, o qual não pode ser superior ao ato. O que não está manifestado não tem potência de manifestar- se ou então não é nada, ou é apenas uma potência, ou seja, ou é nada ou é potência e toda a potência é potência para um ato. E o que define a potência? O ato. Se o ato define a potência, a potência precisa do ato, embora o ato não precise da potência. O manifestado é, portanto, infinitamente superior à potência, porque pode existir ato sem potência, mas o inverso não é possível. Deus é ato sem potência e não é imanifestado: é arquimanifestado, é o ser que só faz manifestar-se o tempo todo.

Tudo isso – a admissão da existência do que não tem possibilidade lógica de existir – vem de um enfoque errado de “coisa em si”, do “imanifestado”, do “abismo”, da “infinitude”.

Não se deve confundir “para si” com “em si”, o primeiro caso pressupõe um certo desdobramento, pelo menos possível, potencial. O sapo para si, não é em si, ele é para alguém. Existe o sapo para o mosquito, o sapo para a águia, e o sapo para o sapo. Um sapo vê o outro sapo. O sapo em si, seria o objeto fazendo exclusão do sujeito porém, para ser objeto (“jogado adiante”, “mostrar-se”), precisa sê-lo para alguém, para um sujeito qualquer, o que é absolutamente inconcebível. Aquilo que não age e não pode agir, nada pode, e se nada pode, nada é.

Tudo isso são possibilidades lógicas, passíveis de serem concebidas, mas é preciso ter confundido nossa psique com o real e um sujeito que pretenda transcender tudo (como Réné Guénon, que julgava ter transcendido a teoria do conhecimento), cai preso nas malhas da própria psique, da própria combinatória lógica humana. A suprema libertação faz a pessoa ficar presa dentro de um enigma lógico que ela mesma inventou.

Bastam essas considerações para reduzir a nada, a metafísica da escola Guenoniana. No caso de Kant, ele apenas lançou a pergunta, sem falar da “coisa em si”. Os metafísicos é que tornaram a coisa em si como um ente real.

Uma metafísica errada vai resultar em uma psicologia errada, num método ascético errado e enfim em uma política errada. É o que explica um resumo que é de um livro de Martin Lings, sobre a profecia de São Malaquias, onde uma contradição saltava aos olhos. Lings é o principal colaborador de F. Schuon que advoga a tese de que os três últimos papas não são papas de verdade, neste caso, não há papa em Roma. A situação chama-se seda vacante, ou seja, a cátedra está vaga, não há Papa, considera que após João XXIII (vindo depois Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II – quatro papas!) não há papas. No entanto, M. Lings publica um livro falando daquela profecia, e de que a igreja está para acabar, pois segundo São Malaquias só haverá 114 papas e que João Paulo II já é o 112o. Neste caso, estaríamos no 112o e não no 108o, não faltariam 08 papas, apenas 06. Fico assustado pelo fato de que, tendo lido este livro a alguns anos, como demorei tanto para ver tais contradições, sendo este um assunto tão sério. Qualquer alegação do tipo que “sabedoria divina é loucura para o ser humano”, é retórica baixa.

As advertências dos sábios ao longo dos séculos devem ser levadas em conta. As limitações do conhecimento humano com relação a assuntos metafísicos sempre foram reconhecidas, de Aristóteles a Tomás de Aquino e até Kant, e uma metafísica dogmática arrisca ter mais contradições. Basta aparecer alguém com uma arrasadora crítica à filosofia anterior com tanta fé no que está falando, que assusta a todos e é só perder o medo de analisar o que dizem, para ver as asneiras que são ditas, muito mais além do que deveria ser permitido dizer. Onde René Guénon e Schuon são realmente grandes e, no caso do primeiro, é sobre tudo na parte da ciência do símbolo e na história das iniciações, e como expositor do simbolismo, não é possível achar alguém melhor, podendo se dizer dele que foi o primeiro a expor magistralmente a ciência do simbolismo. O segundo, Schuon, é grande pela teoria da unidade transcendente das religiões, tratando-se de trabalhos majestosos e é o que justifica a sua leitura porém, não deve esquecer o ditado: “Não vá o sapateiro além das chinelas”.

Um dos grandes problemas da civilização do ocidente é que, pelo fato de ser a primeira civilização fisicamente universal, junta um amontoado de contradições dentro de si mesma. Sua pretensão de universalidade obriga-a a assimilar as demais culturas e algumas destas têm pretensão de universalidade, enquanto outras são locais. Os ocidentais julgam ter que ser tolerantes com todas as demais: muçulmana, judia, indígena, etc. O que acontece é que nenhuma dessas culturas quer que alguém seja tolerante com elas – elas querem, ao contrário, ser tolerante com as demais, engolindo-as primeiro. É a disputa do poder, simplesmente. Por exemplo, logo que veio o Aiatolá Khomeini, este foi considerado simpático porque representava o espírito mesmo do povo iraniano, que estava se livrando da tirania, e como os europeus e americanos gostam de defender a cultura em termos universais, defenderam-no. Do ponto de vista do Aiatolá porém, ele não era representante de uma cultura local e sim de uma lei universal que precisava impor-se a todos. Essa contradição não está resolvida, os problemas surgidos do confronto de religiões são os mais graves que há no mundo moderno, não havendo muita solução para isso. Há uma solução teórica, metafísica, que é aquela proposta por F. Schoun, mas na prática também não vai funcionar, pois compete a Deus a solução de tais problemas, os quais precisam ser atacados com cuidado e demandam muito tempo. Não deve portanto, ser a primeira questão que cada um de nós enfrente. Reconheço que hoje não há equipamentos suficientes para tratar desse assunto pois, a urgência do problema não é argumento legítimo para a esperança de sua solução, e como exemplo disso podemos citar o caso da AIDS para a qual é urgente encontrar a solução, porém, as leis da química não têm tanta pressa, ou qualquer preocupação com esse problema.

Retornando ao tema principal, recordemos que as faculdades cognitivas são todas faculdades, mas a razão é impropriamente dita uma faculdade, dado que ela é faculdade e ao mesmo tempo o objeto percebido, ao mesmo tempo que é o nexo entre a faculdade que percebe e o objeto percebido.

Os conceitos foram expostos aqui numa ordem mais psicológica, para facilitar sua compreensão. A ordem lógica não é necessariamente a ordem psicológica mais propícia. Cabe a cada um reconstituir depois na ordem lógica, de forma a poder ter todos esses conceitos prontos para uso.

Para esclarecer e definir bem a situação da problemática da razão no século XX, uma leitura indispensável é o trabalho de Max Horkheimer, Eclipse da Razão, do qual citarei um trecho a seguir.3

“Quando pedimos a um homem comum que explique o significado do termo razão, a sua reação é quase sempre hesitante e embaraçada. Mas seria um erro interpretar isso como um índice de uma sabedoria que fosse demasiada profunda ou de um pensamento demasiado abstruso para que pudesse ser expresso em palavras. O que essa reação de fato trai é o sentimento de que não há no caso nada que seja suscetível de investigação, que o conceito de razão se explica por si mesmo e que a questão colocada é supérflua. E se o apertamos para que responda, o homem médio dirá que as coisas racionais, o homem médio dirá que as coisas racionais são as coisas evidentemente úteis. E que todo homem racional é aquele que se supõe capaz de decidir o que lhe é útil. Naturalmente é preciso ter em conta as circunstâncias próprias a cada situação, as leis, os costumes, as tradições, etc. Mas a força que, no fim das contas, torna possíveis as ações racionais, é a faculdade de classificação, de inferência e o de dedução, qualquer que seja o conteúdo específico. Ou seja, o conceito corrente é que a razão consiste em última análise na faculdade de classificação, inferência e dedução. Em suma, o pensamento discursivo.

É o funcionamento abstrato do mecanismo do pensamento. Pode-se chamar a este tipo de razão a razão subjetiva. Ela se preocupa essencialmente com os meios e os fins e com a congruência dos métodos. Os seus objetivos são tomados como admitidos e supõe-se que eles se explicam por si mesmos. Ela dá pouca importância à questão de saber se esses objetivos enquanto tais são racionais. E se ela se preocupa tão pouco dos fins, ela admite que esse fins são eles também racionais no sentido subjetivo, isto é, que lhe serve ao interesse do sujeito sob o aspecto da conservação de si: conservação do indivíduo tomado em particular ou conservação da comunidade que tem que subsistir.

Que um objetivo possa ser racional em si com base em virtudes que o conhecimento nos faz perceber nele, isto qualquer referência a uma forma qualquer de lucro e proveito ou vantagem subjetiva é uma idéia totalmente estranha à razão subjetiva.

Por ingênua e superficial que possa parecer essa definição da razão, nem por isso ela deixa de constituir um sintoma importante na profunda mudança de perspectiva que se produziu no pensamento ocidental no curso dos últimos séculos.

Durante muito tempo, com efeito, prevaleceu uma concepção da razão diametralmente oposta àquela que falamos. Essa concepção afirmava a existência da razão enquanto força não somente no espírito individual mas igualmente no mundo objetivo, nas relações existentes entre os seres humanos e as classes sociais, nas instituições sociais, na natureza em suas manifestações. Os grandes sistemas filosóficos como os de Platão e o de Aristóteles, a Escolástica e o Idealismo alemão, fundavam-se numa teoria objetiva da razão. Esta visava a constituir um sistema abrangente ou hierárquico de todos os seres, incluindo o homem e seus objetivos. O grau de racionalidade da vida de um homem podia ser determinado conforme esta estivesse mais ou menos em harmonia com esta totalidade. Sua estrutura objetiva e não somente o homem e seu objetivos, devia ser a medida das ações e pensamentos individuais. Este conceito da razão não tinha jamais excluído a razão subjetiva. Mas considerava esta última como uma expressão parcial e limitada da racionalidade universal.

3 - Eclipse da Razão, Max Horkheimer - Editorial Labor do Brasil, 1976 - Cap. 1

O esforço supremo deste tipo de pensamento estava na reconciliação da ordem objetiva do racional com a existência humana. A teoria da razão objetiva não estava centrada na coordenação apenas entre conduta e objetivo mas em conceitos e na idéia do maior bem, maior bem este fixado como o objetivo supremamente racional.

Existe uma diferença fundamental entre esta teoria segundo a qual a razão é um princípio inerente à realidade e a doutrina da razão como faculdade subjetiva do espírito.”

O diagnóstico feito por Horkheimer é perfeitamente verdadeiro. De uns cem anos para cá, a filosofia perdeu totalmente de vista esta idéia da razão como uma realidade objetiva presente na natureza, a filosofia perdeu, mas a Biologia não, sobretudo na teoria da informação aplicada à biologia e na idéia da razão objetiva, ela está presente. Então, apesar de filósofos continuarem especulando o quanto queiram – a Ciência continua andando do mesmo modo.

O diagnóstico de Horkheimer está perfeito, embora não toque nas causas intelectuais do problema, toca nas causas sociais e nas causas propriamente culturais, e creio que a causa técnica, foi sobretudo por causa dessa confusão iniciada na escolástica entre raciocínio e razão. Ora, a razão só pode ser conhecida no raciocínio, pois é pela análise do raciocínio que captamos as formas da racionalidade e depois aplicamos as conclusões de tal análise a outras coisas. Porém, isto não quer dizer que a razão só exista aí, pois a ocasião, o instrumento ou o meio pelo qual podemos conhecer algo não se identificam com a natureza deste algo, por exemplo, os micróbios que só podem ser conhecidos através do microscópio o que não quer dizer que só haja micróbios no microscópio.

É tão somente pela análise do pensamento discursivo que compreendemos as estruturas internas da razão, estas uma vez descobertas no pensamento discursivo, podem depois se verificar em presentes na realidade, mais ainda, pode-se ir mais além e ver que estas estruturas têm origem não no pensamento, mas na realidade mesma. O próprio pensamento discursivo não seria possível se não existisse essa base corporal, sensorial, da razão, a qual está presente na própria forma dos seres (na forma corporal, na estrutura total das informações que emitem e das informações que podem receber), o que o estudo da percepção comparada dos vários animais nos mostra.

Há um livro onde há um capítulo magistral que trata desse assunto. Foi escrito por Raymond Ruyer, biólogo, que passou a vida inteira estudando as estruturas das formas vivas e as estruturas correlativas da percepção, o livro se chama A Gnose de Princeton, pois o autor morou em Princeton certo tempo. Raymond Ruyer conta neste livro que os cientistas de Princeton tinham inventado uma nova religião (sendo isso ficção do autor), baseada inteiramente na ciência, diz que vai expor os dogmas e as doutrinas dessa nova religião, a qual é uma religião secreta, cultivada entre os cientistas, entre sua elite. (Embora isso fosse invenção do autor, muita gente acreditou nisso e foi para Princeton). Neste livro existe então um capítulo onde o autor tira conseqüências filosóficas de uma vida inteira de investigação sobre a estrutura dos seres vivos, e este capítulo seria assinado por Sto. Tomás de Aquino, caso ele o tivesse lido.

Com tudo o que foi exposto, vimos ao mesmo tempo a explicação da razão e do pensamento discursivo, este último sendo a capacidade de transitar entre signos, entre conceitos, juízos ou imagens, conectando uns aos outros intencionalmente.

Outro estudo interessante sobre isso é o de Jean Piaget, que é um estudo que trata da esquemática de percepção dos vários seres.

Quando uma conclusão filosófica chega a estes termos, ou seja, de ser experimentalmente testada, qualquer discussão filosófica posterior a respeito, posterior, é supérflua. Quem pode então a desmentir a veracidade da afirmação não é mais a filosofia. É a ciência.

O pensamento discursivo, é então um trânsito entre os signos mas não um trânsito qualquer e, sim, um trânsito racional, fundado no princípio de identidade, o mesmo e o outro, o da não contradição, do terceiro-excluído, etc. É, pois, a fala racional.

A palavra grega logos tem uma relação com a linguagem: a palavra latina ratio tem uma relação com a idéia de proporção de cálculo. A proporção é um tipo de razão (ratio). E a razão, é as duas coisas: ratio e logos, pois nenhuma das duas palavras esgota o sentido mesmo da razão, é a fala coerente mas também é a proporcionalidade matemática. Ela é a forma dos próprios seres, no sentido pitagórico. Aliás, o próprio Horkheimer faz um comentário sobre isso:

“A teoria pitagórica do número, que havia nascido da mitologia astral, se transformou, diante do platonismo, numa teoria das idéias, que tenta definir o conteúdo supremo do pensamento como objetividade absoluta. Em última análise, situá-lo para além da faculdade de pensar, ainda que ela esteja em relação com esta.”

É pela faculdade de pensar, na faculdade de pensar, tomando-a ao mesmo tempo como agente do conhecimento e objeto do conhecimento, que compreendemos a razão.

Investigamos e verificamos que estas estruturas estão situadas além do pensamento, para baixo e para cima; estão situadas também no mundo corporal, através da forma dos seres; estão situadas acima do pensamento na medida em que são as próprias estruturas do possível e do impossível, tomado ontologicamente, e este seria então o sistema dessas possibilidades, o qual seria o mundo das idéias.

Diz Horkheimer: “a crise atual da razão consiste fundamentalmente em que, num certo ponto, o pensamento ou se tornou incapaz de conceber uma tal objetividade ou então começou a negá-lo, não vendo nele mais que uma ilusão.” Porém, a objetividade nas estruturas racionais, no mesmo instante em que a Filosofia a nega, a Biologia a confirma. Por este motivo é que chega um ponto onde não se pode levar a filosofia a sério, porque não está à altura dos conhecimentos científicos já adquiridos. No instante mesmo onde a investigação científica permitiu resolver certas questões, a filosofia desaprendeu até mesmo a colocar a questão (temática essa que pode ser vista em Sabedoria e Ilusões da Filosofia, de Piaget). Neste livro – que até Sto. Tomás de Aquino assinaria – Piaget diz que a investigação puramente lógico-analítica dos problemas tem seus limites. Chega-se a um ponto onde se precisa de uma investigação científica experimental senão não se decifra o enigma. Ele faz distinção entre Filosofia e Ciência. Se a Filosofia apenas como investigação lógico-dialética, sem a investigação científica e natural, a autoridade dela fica limitada; ela não tem mais que sentenciar sobre coisas onde a Ciência já tem algo definitivo a dizer.

A razão rege o pensamento idealmente; ela é o modelo ideal do pensamento. Mas nem todo pensamento cumpre com todas as exigências da racionalidade, embora não possa fugir totalmente da razão. Todo pensamento tem uma estrutura racional. Apenas a sua referência ao objeto pode torná-lo irracional, quando toma um objeto por outro. Mesmo o engano é fundado também na racionalidade, pois é a aplicação errada do princípio racional, a um domínio onde ele não cabe. Um princípio de que vale para um domínio, é aplicado em outro. O pensamento de um louco é assim. O propósito do pensamento é regrar-se pela totalidade da razão e pela totalidade da experiência. O pensamento é o princípio de conexão, de movimento, que vai operar sobre os dados da experiência, mas não diretamente e sim sobre os dados da memória e da imaginação, pois raciocinamos e conceituamos imagens de coisas, e não as coisas.

Os sentidos são as faculdades que nos conectam com o mundo exterior. A memória é a retenção deste mundo exterior sob a forma de um simulacro no interior; e o pensamento é uma faculdade totalmente interior portanto, não pode operar diretamente com um dado externo, percebido naquele momento e sim com o dado retido pela memória, retido e reproduzido, ou seja, repetido pela memória. E mesmo que a coisa esteja presente, precisa haver um intervalo, um hiato, pois perceber e pensar uma ao mesmo tempo é difícil.

A intuição é um ato racional mas não é um ato de pensamento. Ela percebe imediatamente a coisa e o nexo entre elas mas não de modo discursivo, pensado (seqüencialmente, um depois do outro), e sim mediante conceitos – mas percebe nas próprias coisas. É um ato racional mas não discursivo, portanto, o que prova que o discurso não é razão, embora nela se baseie.

É, por isso, que para entender perfeitamente a Teoria dos Quatro Discursos tem-se que entender isso que aqui expressamos. O discurso é uma espécie de reprodução do esquema racional, mas uma reprodução desenvolvida no tempo, ao passo que o desenho, por exemplo, é uma reprodução do esquema racional desenvolvido no espaço. Se fazemos o desenho de uma casa, esse desenho só pode representar a casa toda de uma vez e não a casa nas sucessivas fases da sua construção e da sua decadência, para o que precisaria de vários desenhos. As representações espaciais e temporais não são as primeiras distinções fundamentais. E quando vamos para as temporais, temos as representações discursivas, quando surge então a Teoria dos Quatro Discursos.

4 – Memória e Imaginação

Foi dito que a memória e a imaginação são a mesma faculdade. Quando é repetição, trata-se de memória; quando é recombinação é imaginação. É o pensamento ou não que faz esta recombinação? Será que a imaginação poderia recombinar sem a ajuda do pensamento? Ela o faz de maneira autônoma, ou as duas se combinam para que se possa ter a imaginação?

Aí temos uma zona de disputa entre a memória e o pensamento, não sei a solução para isso, mas não creio que para compreender o que já foi exposto seja necessário resolver essa questão, pois na verdade, nenhuma faculdade funciona sem as outras. É fácil ver que existe uma diferença entre combinar duas imagens numa só e combinar discursivamente duas idéias. No pensamento, as coisas combinadas permanecem perfeitamente distintas, na imaginação, não, pois se juntamos “as asas do passarinho e o corpo do cavalo”, formamos outro ser, que é o Pégaso, ao qual atribuímos então, uma espécie de existência. A síntese não aparece como síntese mental, mas como se fosse um ser e esta é a característica da imaginação. Já o pensamento, quando combina, tudo quanto combina pode separar. Quando juntamos vários elementos para formar um conceito, continuamos sabendo quais foram os elementos juntados. Com a imaginação, não ocorre isso; pois esta tende a acreditar imediatamente na substacialidade de tudo quanto compõe; não existe diferença interna entre a coisa lembrada e a coisa imaginada. A imagem do passado e a imagem do possível são imagens do mesmo modo e a imaginação não as distingue. Para ela, não existe diferença entre o possível e o real, o que aliás, é outra questão que me leva a crer que, se a pessoa elimina a distinção entre o possível e o real, é porque a imaginação já tomou a dianteira em relação as demais faculdades. Para a imaginação, tudo é igual, daí ser possível que algumas pessoas temam as imagens do sonho, ao passo que se o pensamento fizer isso, será fácil perceber que trata-se de um pensamento equivocado, pois um pensamento errado pode tomar uma coisa meramente possível por algo real, enquanto a imaginação sempre toma o possível por algo real. Tem que haver então uma colaboração qualquer do pensamento na imaginação, de forma que esta possa fazer o que faz. É possível notar na imaginação o princípio do mesmo e do outro. Não sabemos se existe uma interferência do pensamento na imaginação ou se essa zona de disputa entre pensamento e imaginação é devida simplesmente ao fato de que a imaginação também se funda nos mesmos princípios da razão.

As faculdades são suficientemente diferentes (pelo menos empiricamente ), para se poder admitir que são coisas realmente distintas, pode-se estudar a relação entre elas, por exemplo entre o pensamento e a imaginação, para ver onde termina uma coisa e começa outra, mas a distinção fundamental é que o pensamento combina e separa e sabe o que combinou e o que separou, enquanto que a imaginação não, pois para tudo quanto a imaginação combina, ela dá substancialidade, tratando essa combinação como se fosse um ente real, sem qualquer distinção das partes que entram na composição deste ente.

Não é a memória que dá a noção de realidade à coisa, pela razão que, como no exemplo anteriormente citado, Pégaso não é composto por partes e a imaginação já dá uma síntese pronta, pois se pegarmos a asa do passarinho e colocarmos no corpo do cavalo, temos uma operação do pensamento, e isso é uma combinatória. No caso da imaginação, a composição do ente imediata e instantaneamente; age mediante uma síntese imediata que não leva em conta a distinção das partes, porque o Pégaso, para a imaginação, é um outro ser, que não é nem passarinho nem cavalo. E não é também a memória que vai nos dar a distinção entre o que é real e o que não o é, porque não há lembrança de como se combinaram as coisas para que elas chegassem a um resultado que é distinto das partes que a compuseram. A imaginação funciona espontaneamente, não segue um processo construtivo que possa ser reconstituído. A memória já nos dá a coisa pronta, fornecendo os entes a serem relacionados e depois, analisando com auxílio do pensamento é que se pode verificar que se viu o cavalo, depois as assas do passarinho e, no fim, a combinação das duas coisas. Logicamente falando, é combinação; psicologicamente falando não é combinação. A memória não tem noção de antes e depois para esta, tudo é atual e o pensamento, é que vai organizar a memória.

Quando as pessoas fazem regressão de memória (que é uma forma de hipótese), inibe-se uma parte do cérebro onde há as distinções temporais e esta é a parte do pensamento discursivo. Começa a pessoa então a receber os dados da memória sem a conexão de tempo. Vivencia coisas que aconteceram há vinte anos como se estivessem acontecendo agora. A pessoa hipnotizada tem memória e esta funciona mais que nunca, pois a memória independe, desconhece o tempo e o pensamento é que é o senso comum, ou sentido comum, que organiza ou afunila os dados numa perspectiva temporal sendo a memória apenas retentiva, sendo a atualidade do passado e do futuro. Para ela, tudo é atual. Por exemplo, pode-se dizer que a memória é um registro de todos os atos passados e presentes num mesmo arquivo, como num cartório, onde todos os registros de crianças estão lá, desde o século passado, e estão lá ao mesmo tempo. A distinção temporal não está, portanto, nos registros e sim na decifração desses ou dos índices que a eles remetem, de forma que seja possível saber se o que se procura é um dado do passado ou do presente e isso é uma operação do que articula racionalmente, na escala de tempo cronológico; o senso comum articula numa perspectiva de tempo afetivo, nem tudo que aconteceu a alguém tem para esse a mesma importância, quando tais dados são recuperados pela memória, pois algo que aconteceu há vinte anos pode ter sido importante somente naquele tempo, Porém, quando a memória presentifica esse mesmo dado, este pode carecer completamente de importância afetiva. A memória só dá a imagem e não o valor afetivo e se conseguíssemos desligar certas áreas do cérebro, desligando-se momentaneamente o senso comum e o raciocínio, de maneira que continuassem funcionando sem relação com às imagens, estas seriam vivenciadas como se fossem atuais, como uma presença.

Há portanto, duas escalas de tempo: a afetiva e a cronológica. A escala de tempo cronológica é a mesma para todos e é social, conforme contamos nossa própria vida para nós mesmos, com mais ou menos racionalidade, temos a cronologia real mais ou menos perfeita dos eventos. Há também uma escala afetiva, que tem poder de interferência, no sentido que um evento que nos aconteceu há muito tempo pode ainda nos afetar presentemente, não pela memória mas pelo senso comum, pelo sentimento.

A memória é o registro de tudo. Todas as sensações ocorridas estão todas na memória e o tempo todo e não se pode confundi-la com a recordação, pois esta é uma operação complexa que se faz em cima da memória e que depende do senso comum, da vontade, do pensamento e de mais uma série de fatores. A recordação é a capacidade de usar a memória como também a de não usá-la, ela é um registro passivo, no sentido de que nada acrescenta e no sentido de que não fiscaliza e nem organiza, não tem domínio sobre si mesma e, pelo fato de ser passiva, curiosamente se torna criativa, pois não tendo organização própria, mistura tudo. E é o senso comum, o pensamento, a razão, que vão dá-lhe ordem. A memória é pois criativa por deficiência.

Os escolásticos chamavam memória e imaginação de fantasia, por que são constituídas de fantasmas – falsas percepções, simulacros de percepções.

5 – Estimativa

Trata-se de um pressentimento. O fato de cada ente ter sua forma e desejar permanecer nela, exige que este tenha um pressentimento de que essa forma pode vir a ser lesada, isto vem do amor a si mesmo. Não existiria perseverança na forma se não existisse o amor à própria existência. Estimativa é então o amor à própria existência.

Não se trata apenas de sobrevivência, esta é só um de seus aspectos, busca-se o útil e foge-se do nocivo, em vista da manutenção da possibilidade de sobrevivência, mais ainda, apenas o homem tem a noção de sobrevivência, tendo os demais animais apenas a noção de perigo. Precisamos portanto, admitir que existe uma faculdade inata, do útil e do nocivo, o que não se identifica com o agradável ou desagradável pois uma coisa pode ser agradável porém nociva ou mesmo desagradável e útil. Tão logo saibam que algo é nocivo, os animais passam a evitar esse algo, como no caso do rato que, ao descobrir o que é ratoeira que lhe ameaça a vida, foge da possibilidade de comer o queijo.

Conforme os escolásticos definiam então o “instinto do reconhecimento do útil e do nocivo”, percebe-se no homem uma raiz animal bem pronunciada, Sto. Tomás de Aquino dizia que “a ovelha foge do lobo não porque ele seja desagradável, mas porque ele é perigoso; o passarinho junta palhas para fazer o ninho, não porque as palhas tenham uma forma ou cor agradável, mas porque precisa delas para fazer o ninho”.

Tanto a estimativa quando as outras faculdades (imaginação, memória, etc.) são instintivas. No animal, a estimativa é uma faculdade muito aguda e visa ao útil e teme o nocivo de forma que sua sobrevivência seja cômoda. No homem, esta mesma faculdade existe, porém está atrofiada, é mal desenvolvida. O homem precisa aprender muitas coisas a respeito do útil e do nocivo, coisas estas, que qualquer animal já sabe, no entanto, se não houvesse no homem a raiz do instinto, isto é, um simples impulso genérico sem objeto definido, de buscar o útil e fugir do nocivo, ele jamais poderia aprender o que quer que fosse.

Uma certa atrofia da estimativa deve ter sido necessária para que o homem pudesse desenvolver as outras faculdades, mas se esta atrofiasse, o homem não sobreviveria, porque o útil e o nocivo podem ser aprendidos por meios discursivos, de forma que, um conselho do pai, do tipo “não pule da janela”, é obedecido pela criança por força daquele mesmo instinto, caso este não existisse, a criança poderia querer experimentar. O medo do nocivo e o impulso para buscar o útil leva a que não se teste tal informação. Existe tal instinto no homem, porém com objeto indefinido, através do pensamento discursivo e da memória, o sujeito vai constituindo o objeto.

Basicamente, a estimativa nos diz o que devemos temer. O animal aprende rapidamente do que deve ter medo. A ovelha pode nunca ter visto um lobo, mas ao ver o primeiro, logo sai correndo, sem saber bem por quê. Com o homem, é diferente: este expõe-se repetidamente ao perigo, até atinar que essa persistência age apenas em seu prejuízo. Somente por reflexo condicionado, não seria possível ao homem buscar o útil e fugir do nocivo mesmo fisiologicamente, de maneira que a estimativa deve ter alguma raiz no reflexo incondicionado, que é mal desenvolvido no homem.

A falta de objeto predeterminado à estimativa é providencial, se já o tivéssemos de maneira predeterminada (como no caso da ovelha, que dirige-se ao capim e foge do lobo, instintivamente) não teríamos a possibilidade de utilizar o veneno como remédio. Simplesmente fugiríamos do veneno.

A estimativa então, fica no homem como uma base da memória, do pensamento, da vontade, etc., porém, não tem autonomia para agir sozinha, deve esperar a concorrência das outras faculdades para ter noção do útil e do nocivo. A estimativa, no homem, deve por isso mesmo ser treinada. E podemos dizer que esta faculdade é muito negligenciada na educação pois sendo uma faculdade animal, muito baixa, as pessoas não lhe dão a devida importância. Saber porém, o que se deve temer é fundamental.

O número de perigos que cerca o homem é muito grande, assim como o número de coisas que lhe podem ser úteis, pelo fato de o homem racionalizar a estimativa, ao mesmo tempo que ele não sabe instintivamente o que lhe é útil e o que lhe é nocivo, pode por isso mesmo continuar aprendendo indefinidamente, o que os outros animais não podem fazer.

6 – O Senso Comum

Osenso comum é a síntese dos vários sentidos (externos e internos). Ele mesmo é um sentido interno, Mas une as informações dos vários sentidos e as remete, relaciona ao sujeito mesmo.

A existência de um sentido comum é demonstrada pelos escolásticos da maneira mais óbvia possível, por exemplo: a visão pode captar uma cor e pode captar a relação entre som e forma, quando um cachorro late, vemos a forma do cachorro com os olhos e ouvimos seu latido com o ouvido. Mas com que função sabemos que foi esse cachorro que latiu? Ou seja, o que nos diz que o som vem do mesmo lugar da imagem? É preciso haver então um sentido comum.

Do mesmo modo que existem os sentidos próprios – cada um capta uma propriedade – existe um sentido comum, que capta a junção de todos os sentido próprios. Os objetos possuem qualidade próprias e comuns, por exemplo, a cor, cada objeto tem uma cor, assim como cada objeto ocupa um lugar no espaço. A extensão é dita insensível comum e a cor insensível própria, pois todos objetos têm extensão, mas nem todos têm cor. O sentido comum tem essa dupla função de captar os sensíveis próprios – neste sentido, ele é a raiz dos sentidos próprios – e de juntar os dados dos vários sentidos próprios e remetê-los a um outro. Nesse sentido ele não é mais a raiz, mas a somatória final. Ele é a origem e fim dos sentidos.

E é a esta faculdade que denominamos também sentimento. Ela é o sentimento, pois no momento em que relaciona os dados a um outro, o faz sob a forma da idéia do tipo “isto diz respeito a mim”. O senso comum avalia a proximidade ou a propriedade de um evento, sabemos que o que recebemos dos sentidos vem de fora, e o que imaginamos vem de dentro. Sabemos também que um está mais perto e outro mais longe, em relação ao nosso eu.

O termo senso comum deve-se ao fato de tratar-se de algo comum a todos os sentidos, não tendo qualquer relação com o sentido de opinião pública, geral, é pois, sentido ou senso comum por ser diferente dos sentidos próprios, que captam uma e única coisa.

O sentido comum é um sentido interno, mas opera a partir de dados dos sentidos externos e internos, podendo operar também com base no pensamento, porém não diretamente. Sendo o sentido comum, um sentido, só capta aquilo que tenha alguma forma. Uma idéia abstrata, ou ainda um conceito abstrato, não o atinge, porém, uma vez que se transforme tal idéia ou conceito numa imagem, este o capta. Por exemplo, se perguntamos à alguém se gosta de chocolate, tal pessoa pode não saber se gosta ou não por não ter o conceito, uma vez explicado tratar-se de um doce feito de cacau e, a partir desta explicação, o conceito é entendido, ainda assim a resposta não seria possível, pois lhe faltaria uma imagem, um esquema fático. Uma vez formada a imagem, saberia se gosta de chocolate ou não.

É o senso comum que avalia a importância dos dados para o indivíduo (para o seu eu), e não se trata apenas de algo puramente afetivo, pois o que denominamos sentimento é apenas uma parte do senso comum (a ovelha não foge do lobo por motivos “afetivos”).

Um louco o é louco exatamente por ter perdido o senso comum; a conexão do pensamento consigo mesmo, pensa muito não tendo porém nenhuma imagem, não sabendo se o que pensa se refere a si mesmo ou não.

Idéias como, família, amizades, conhecemos principalmente por imagens e não por conceitos, o que não impede que seja possível a aquisição posterior dos conceitos relativos a todos esses temas, mas se os conceitos não são conectados com imagens, não há possibilidade de se posicionar afetivamente. Por exemplo, todos têm família. Numa faculdade, como a de Sociologia, é possível estudar conceitos relativos a todos aqueles temas impessoalmente, são conceitos que não se humanizam para o indivíduo, pois seria preciso, para isso, que tivessem correspondências com imagens possuíssem um valor pessoal para o indivíduo. A maneira de tornar possível a imagem de algo para terceiros, é expor do que se pretende através de um sistema de conceitos de maneira que o conjunto forme um todo estético; uma imagem mesmo que abstrata de um esquema ideal, ou seja, um esquema eidético. Pode ocorrer que o indivíduo, ouvindo discursivamente todo este esquema, mesmo assim ainda não consiga vê-lo sob uma forma total. O amor, a verdade, a ciência, dependem de um indivíduo conseguir compor esse esquema conceitual num todo estético que signifique algo para ele pois, sem o senso comum também não há ciência.

Podemos dizer que muitas escolas de pensamento se tornam nocivas não por serem falsas, mas por serem alienadas pois não há relação entre a doutrina que apresentam e o senso comum. Uma doutrina para ser verdadeira precisa satisfazer todas as faculdades e não somente o raciocínio. Uma doutrina que apenas satisfaça ao raciocínio e não as demais faculdades, não pode ser uma doutrina racional.

A razão vai além do pensamento, portanto podemos dizer que ela é suprahumana, porém o é sem deixar de ser humana, pois se assim o fosse não seria compreendida, pode-se até entendê-la apenas com o pensamento, como um esquema de possibilidades, mas não se a entenderá como realidade, pois a realidade só pode sê-la para um indivíduo; só assim pode haver uma realidade de vida, para que não seja uma faculdade apenas simbólica e sim real, tem que satisfazer a todos os sentidos. Racionalidade é o que é racional efetivamente.

Uma doutrina que diga que os valores morais são impossíveis de serem fundados racionalmente, não é uma doutrina que se sustente sendo uma doutrina inconseqüente. Exemplo disso é o caso de Bertrand Russel, que escreveu inúmeros livros para provar que não existe fundamento racional dos valores morais e ao mesmo tempo, fazia campanha contra a Guerra do Vietnã. São estas posturas morais, embora dissesse que eram puramente afetivas pois se caso fosse se trataria de apenas uma questão do gosto pessoal de cada um e neste caso, não tem fundamento na razão; e não tendo fundamento na razão, não se torna algo obrigatório para os outros seres humanos, o que nos levaria diretamente para o domínio da força, pois aqui acabaram-se os argumentos. Curiosamente, são justamente estes filósofos que mais são contra uma ética racional, que mais são moralistas e que mais posturas morais assumem, o que é uma forma de lisonjear-se a si mesmo, uma expressão da idéia de que “eu sou uma pessoa superior, tão infinitamente bom que mesmo não tendo fundamentos racionais ou científicos para os valores morais, ainda amo os demais de minha espécie”. É uma espécie de angelismo.

Os valores morais proclamados por um determinado indivíduo podem não ter um fundamento racional total, mas algum fundamento racional, alguma relação com o mundo da ciência ou da filosofia necessariamente têm que ter, pois do contrário, não haveria qualquer valor de obrigatoriedade, o que não quer dizer que todos esses fundamentos sejam conhecidos por alguém em particular. Ou existe uma ética filosófica racional fundamentada ou ninguém teria obrigação de nada, remetendo a alternativa de que “meio termo não existe”.

O senso comum vai informar a importância que as coisas têm para um indivíduo, tendo esta uma avaliação totalmente subjetiva, o que é caracteristicamente perspectivismo, fará de cada ser, individualmente considerado, o centro do universo, avaliando todos os dados pela proximidade ou distância não em relação aos outros seres, e sim em relação àquele ser em particular, é como uma espécie de complementar da razão universal; é a razão particular.

Os filósofos ao longo do tempo sempre se dividiram entre os mais voltados à razão universal, ao mundo das leis universais e os mais voltados ao senso comum, ao sentimento individual. Sendo que evidentemente esses dois pólos não podem estar desconectados, porque se fazemos abstração total da nossa individualidade, estamos falando como se fossemos a razão universal, o que evidentemente não somos. Joaquim Nabuco dizia que quem se recusa a usar a palavra eu, se faz de oráculo, fala como se fosse própria razão universal, o que ninguém é e nem tampouco poderia ser, pois todos participam dela, têm algo dela. Já o ponto de vista individual subjetivo, tem que complementar o ponto de vista racional universal sob pena de escapar da racionalidade, ficando atado a uma racionalidade meramente possível, não real.

Quando o indivíduo começa a se colocar numa posição excessivamente universalística, perdendo o arraigamento na individualidade subjetiva, vira então uma espécie de hipóstase de Deus, ficando alienado, e assumindo um ar profético que é totalmente indevido. Exemplos de autores que chegam nisso, são Nietzsche, Réné Guénon, pois há algo de teatral no pensamento destes, tais como coisas que um homem pode falar mas nas quais não pode crer efetivamente.

Existem também, filósofos arraigados no senso comum, como é o caso de Jean Jacques Rousseau, cujo o pensamento nada mais é que uma reação do senso comum perante um mundo filosófico tornado demasiado complexo. O que é o “bom selvagem”? É o sonho do senso comum colocado no centro da realidade e se sentindo perfeitamente à vontade dentro de um sistema de objetos e seres colocados a distâncias convenientes: está perto o que é agradável, está longe o que é desagradável e assim por diante.

O senso comum expressa os direitos que o indivíduo sente ter, mas esses são uma exigência da própria racionalidade universal, a qual organizou o mundo de uma maneira perspectivista, de maneira que cada ser visse os outros do seu ponto de vista, fazendo referência ao ponto de vista universal que nenhum deles abarca totalmente, mas que o homem abarca intencionalmente, mentalmente, e não real e fisicamente.

Existe para nós a possibilidade da confusão entre as faculdades, de interferência mútua, a função que para nós percebe o agradável e o desagradável é o senso comum e este também vai se desdobrar nos dois impulsos que são a ira e a concupiscência, ou seja, a rejeição ou o desejo, pois detestar uma coisa ou amá-la está no senso comum, na afetividade e no sentimento. Os dados do sentimento podem misturar-se indevidamente aos dados da estimativa e só o pensamento racional pode distingui-los. A estimativa, como vimos, não tem uma noção clara do seu objeto, esta tem que ser adquirida pela cultura e ainda tem que ser aperfeiçoada. Por outro lado, o senso comum, por si mesmo, não faz previsões, nem silogismos, simplesmente avalia a proximidade maior que uma coisa tem do indivíduo; a identificação maior ou menor que tem com este. Portanto estando no indivíduo mesmo o desejo ou a rejeição de algo, aquilo que se sente próxima de si ou familiar, provoca desejo; o que lhe parece distante e estranho, provoca ira e rejeição. Por outro lado, a estimativa também pode interferir no senso comum, fazendo com que fujamos de uma coisa que não obstante desejamos. E o que resolveria essas questões entre as várias faculdades? O pensamento, que é mediador universal, tendo que levar em conta sobretudo os dois extremos: de um lado a razão universal e de outro o senso comum.

7 –  Vontade

A vontade pode ser definida como liberdade ou como confiança, é a capacidade que o homem tem de se mover e agir para além de sua próprias faculdades, dos dados fornecidos por estas, ou seja, o poder que o homem tem de escapar do seu próprio esquema já sedimentado e fazer algo novo. A vontade é uma espécie de percepção de uma possibilidade que os dados existentes não justificam, é a liberdade que o homem tem de captar e efetivar determinadas possibilidades que o conjunto dos seus conhecimentos atuais, não justifica absolutamente. É uma estimativa superior, uma espécie de estimativa universal. É um conhecimento daquilo que não existe ainda, uma espécie de pré-conhecimento, de possibilidades oferecidas ao indivíduo, diferindo da responsabilidade abstrata, racional. É a capacidade de se autodeterminar, sendo que todos os dados recebidos pelas demais faculdades determinam, isto é, limitam, enquadram o homem, mas apesar do enquadramento já feito pela somatória de todos os dados recebidos, existe uma margem não determinada, que o homem preenche, e neste sentido a vontade se mostra como confiança, podendo ser uma superação inclusive da estimativa, pois além do útil e do nocivo já dado, existem outras possibilidades.

A somatória de tudo quanto se recebe do pensamento, da memória, da intuição, etc, não determina totalmente o que o homem vai fazer e para entender o que seja a vontade, basta compreender que a somatória do já existente e do já sabido pode limitar a capacidade de escolha parcial mas não totalmente, mesmo porque podemos agir até contra o que sabemos, e no instante em que podemos fazê-lo abrimos a possibilidade de saber mais, pois no momento em que exercemos a liberdade, superamos os esquemas já montados e ampliamos nosso próprio horizonte. Neste sentido, a vontade é uma faculdade cognitiva, porque ela expande continuamente o horizonte do sabível.

Esta é a doutrina completa das faculdades, relativamente adaptada, dos escolásticos.

Humanismo e totalitarismo

Seminário de Filosofia, 23 de novembro de 1999

Ou há uma realidade absoluta e eterna acessível ainda que parcialmente ao indivíduo humano, ou não há. Na primeira hipótese, todo vislumbre dela que tenha sido experimentado, ainda que fugazmente, tem uma importância universal objetiva como realização das supremas possibilidades humanas, mesmo que essa experiência tenha acontecido a um indivíduo solitário e desconhecido, e mesmo que dela nada tenha se registrado para a “posteridade” e integrado no legado “cultural”. Tal é o caso dos “santos anônimos”, como os wally’ullahi (“amigos de Deus”) do islamismo, referidos, ao lado dos homens espirituais famosos e em escala de valor não inferior ao deles, por todas as tradições religiosas e sapienciais.

A História da sabedoria, aí, não passa do registro de uns quantos exemplos notáveis, escolhidos ao sabor da acidentalidade que os tornou famosos. A fama e o conseqüente registro histórico não significa nem que esses casos sejam os mais elevados no que diz respeito à qualidade e quantidade dos conhecimentos obtidos, nem que entre eles, tomados em conjunto na sua sucessão histórica, exista a unidade identificável de um processo, de vez que, como Deus protege da notoriedade muitos dos que Lhe são próximos, muitos elos decisivos dessa cadeia, se é que ela existe, têm de permanecer desconhecidos da “cultura” humana e da história. Na Bíblia, por exemplo, a figura misteriosa, evanescente e perfeitamente a-histórica de Melquisedec, da qual pouco se sabe além de que é o nome do fundador da ordem sacerdotal em que se insere o próprio Cristo, não é menos decisiva, espiritualmente, do que um personagem da relevância pública e histórica de Moisés.

A história, aí, não é senão o mostruário mais ou menos casual e fragmentário de uma unidade transcendente, a qual só se realiza numa meta-história que permanece acessível – paradoxalmente, para o gosto moderno – a indivíduos sem importância histórica nenhuma.

Praticamente todas as civilizações conhecidas assentaram-se nessa hipótese.

Na outra hipótese, não há unidade transcendente alguma, nem meta-história, nem vislumbres esparsos dessa suprema realidade. Só resta então duas alternativas: ou cada indivíduo isolado se perde e se anula na sua subjetividade empírica fatalmente cega, ou os homens se reúnem para construir, pela redução de seus discursos individuais à unidade de uma doutrina ou ao menos de um diálogo racionalmente formulável, o único tipo de universalidade doravante possível, a universalidade de uma linguagem válida para todos os membros da espécie.

Seria um exagero dizer, como René Guénon, que “a civilização ocidental moderna” apostou maciçamente nesta segunda hipótese, sendo o único exemplo conhecido disso. Pois, de um lado, dentro dessa mesma civilização subsistem poderosos núcleos de resistência fortemente apegados à aposta na meta-história, núcleos sem cuja presença a história moderna seria totalmente inconcebível (como o prova aliás a própria influência de René Guénon, que nem por discreta é menos decisiva, do que, se fosse preciso demonstrá-lo, seria exemplo bastante a prodigiosa expansão do esoterismo islâmico entre as elites dominantes européias).

No entanto é fato que em nenhuma outra civilização conhecida a pretensão de suprimir a meta-história e de construir uma universalidade ao nível da pura história foi tão destacada como no Ocidente moderno. Por isto, ainda que parcial, problemática e rodeada de resistências que crescem em vez de diminuir, a mencionada aposta pode legitimamente ser encarada como o principal traço diferenciador dessa civilização. Por sua eliminação dos fatores sobre-humanos e sua ênfase no papel exclusivo da humanidade na criação do novo padrão de universalidade, esse traço recebeu o nome de humanismo.

Entre as conseqüências que essa aposta atrai inevitavelmente, há uma que tem passado despercebida àqueles que a defendem. É que ela, para se manter, deve substituir ao mero dogmatismo autoritário das antigas tradições a nova forma de tirania muito mais abrangente e cerrada que, por não deixar nada da conduta humana mesmo íntima e secreta escapar ao seu controle, se denominou, com muita propriedade, totalitarismo. As relações de implicação recíproca de humanismo e totalitarismo são o tabu em que se assenta, como sobre a conspiração para ocultar um crime originário, a parte mais pública e hegemônica da cultura moderna.

Dois fatores contribuem para manter intocado esse tabu. De um lado, o prestígio mesmo, quase mágico, da palavra “humanismo”. Originariamente designando apenas a aposta na autonomia da humanidade em relação a todo sobre-humano, o termo humanismo, tardiamente, veio a ser usado para designar, na retórica e na propaganda política, a defesa dos seres humanos contra as tiranias desumanas, obscurecendo assim aos olhos da multidão o fato historicamente inegável de que nenhuma das grandes tiranias modernas se assentou na devoção ao supra-humano, mas, ao contrário, todas elas nasceram da adesão professa ao humanismo, da aposta no universal histórico.

De outro lado, toda a história moderna se desenrola ao fio das lutas entre duas facções dos construtores do universal histórico: os adeptos da doutrina universalmente válida e os adeptos do diálogo em aberto (por exemplo, os marxistas e os liberais; ou os nazistas e os socialdemocratas). Como cabe aos primeiros representar a opção totalitária ostensiva, a periódica vantagem a favor dos segundos e a hegemonia que desfrutam ao longo do tempo dão a impressão de que o ciclo moderno vai na direção da vitória sobre o totalitarismo e de que portanto este não pertence à natureza mesma desse ciclo e só pode ser explicado como “resíduo” de eras passadas. Assim, a invenção tipicamente moderna do totalitarismo vai sendo cada vez mais atribuída a épocas que o desconheceram por completo e que não poderiam sequer imaginá-lo, ao mesmo tempo que o totalitarismo mais expansivo pode perpassar de cabo a rabo todo o ciclo moderno sem jamais ser percebido como fenômeno caracteristicamente dele e só dele, que é o que de fato ele é. Embora só a modernidade tenha conhecido regimes totalitários, a imagem dela permanece limpa de todo contágio com a horrenda figura do totalitarismo na medida mesma em que as épocas que não o conheceram são sacrificadas como bodes expiatórios no altar da auto-lisonja moderna.

No entanto, a perpetuidade ao menos cíclica do totalitarismo – e da luta contra ele por parte dos adeptos do diálogo – na época moderna, bem como a ausência de ambos esses fenômenos em outras épocas, sugere, por si, mais que a conveniência, a imperiosa obrigatoriedade lógica e moral de não caracterizar a época moderna por um desses traços apenas – e muito menos pelo mais bonito deles tomado isoladamente – e sim pela coexistência de ambos. É errado, pois, associar o tempo do humanismo apenas com a defesa da liberdade e do diálogo, pois o totalitarismo está presente nele com a mesma constância da ideologia dialogal e o singulariza tanto quanto ela. O totalitarismo não é a sombra de épocas passadas que obscurece as luzes da civilização humanista: é a sombra da própria civilização humanista, com que ela obscurece injustamente a nossa visão das épocas passadas.

Porém, há mais quatro itens que devem ser levados em consideração nesse exame impiedoso da era moderna. Primeiro, se o totalitarismo está associado ao humanismo ao menos tanto quanto o está a ideologia dialogal, a revelação desse fato suprimiria no mesmo instante boa parte do prestígio dessa ideologia que, não podendo subsistir sem a sombra que por contraste a faz parecer luminosa, se dissiparia instantaneamente na hipótese de ausência dele. Eis aí por que a queda do Muro de Berlim não inaugurou no mundo a anunciada era de liberdade, mas um estado crônico de intervenção policial.

Em segundo lugar, se o totalitarismo não pode ser separado da época humanista e se esta só consegue afirmar sua superioridade sobre as épocas passadas projetando sobre elas a sua própria sombra de modo a fazê-las parecer totalitárias, cabe perguntar se também esta projeção e esta mentira histórica não estão na própria natureza da era humanista e se esta poderia subsistir um só instante se tal mentira fosse universalmente revelada como tal.

Em terceiro lugar, é preciso perguntar-nos, com toda a firmeza requerida para isso, se a ideologia dialogal, com todos os seus encantos, é efetivamente algo mais do que pura ideologia, no sentido depreciativo de Ideenkleid, “vestido de idéias” com que o humanismo encobre sua face totalitária, e se, considerada na densa realidade concreta de sua cumplicidade congênita com o totalitarismo, essa ideologia não se desfaria em miserável pó de palavras.

Em quarto e último lugar, restaria examinar se o próprio diálogo, nas condições concretas em que se exerce e não no seu mero conceito abstrato idealizado, não consegue se instalar e manter apenas por meios discretamente totalitários, pronto a convertê-los em totalitarismo ostensivo ao menor sinal de perigo para os fundamentos da sua existência, isto é, ao menor sinal de desmascaramento do pacto humanista entre totalitarismo e diálogo.

Se as doutrinas da liberdade política, da democracia e do diálogo não puderem subsistir a esse exame, é porque não têm substância nenhuma fora desse pacto.

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