Destaque

A ambição filosófica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de outubro de 2014

          

Não existe filosofia modesta. Toda filosofia é uma intervenção de longo prazo e larga escala no mundo dos acontecimentos humanos. Enquanto os decretos dos governantes passam e se desfazem em pó no esquecimento, as filosofias permanecem ativas e influentes decorridos séculos ou milênios do falecimento de seus criadores, afetando ou modelando o curso das discussões científicas, morais, políticas e religiosas. Revelam uma força auto-revigorante quase miraculosa.

Milhares de biografias de Napoleão e Júlio César não trariam de volta os seus impérios, mas às vezes basta um debate erudito ou um ensaio de reinterpretação para que uma filosofia que parecia esquecida ressurja das cinzas e, adornada ou não do prefixo “neo”, venha interferir na vida contemporânea como se tivesse sido publicada ontem.

Não imaginem que esse fenômeno se deva só ao zelo de admiradores e discípulos tardios que, à revelia e sem a mínima participação de seus mestres e inspiradores mortos, não deixam que a chama se apague. Ao contrário, foram esses mesmos mestres e inspiradores que, concebendo metas de longo prazo e colocando a serviço delas as mais complexas e poderosas estratégias cognitivas, deixaram aberta ou fomentaram conscientemente a possibilidade de sucessivos renascimentos.

Em algumas filosofias a meta ambicionada é tão evidente que não precisa nem ser declarada. Ninguém pode duvidar de que Sto. Agostinho, Sto. Tomás ou Pascal sonhavam apenas em expandir o domínio hegemônico da Igreja Católica e converter, se possível, a humanidade inteira. Isso transparece em cada linha que escreveram. Os três divergem somente nas estratégias intelectuais com que planejam realizar esse objetivo, as quais escapam ao assunto deste artigo.

Em outros casos – Marx, por exemplo, ou Nietzsche –, o objetivo é tão enfaticamente reiterado que basta citar esses nomes para que venha imediatamente à memória a imagem da utopia socialista ou a do Super-Homem que emerge soberanamente livre no deserto do nada após a destruição de todos os valores.

Porém mais interessante é o caso daqueles filósofos que sussurram seus objetivos tão discretamente, quase em segredo, que estes podem passar despercebidos ou ser negligenciados durante décadas ou séculos por estudiosos que nada mais vêem nas obras deles senão a poderosa arquitetura dos meios, chegando a tomá-la como o fim.

A mais mínima hesitação do filósofo em colocar a declaração de fins bem visível no pórtico ou no topo da sua filosofia pode levar a esse resultado. Porque os fins, em si mesmos, são por assim dizer anteriores à filosofia e, determinando-lhe a forma de conjunto, não são por ela afetados exceto no que diz respeito aos seus meios de realização.

Os fins de uma filosofia não são exclusivos dela: podem ser compartilhados por uma multidão de não-filósofos que talvez nem tenham o vigor intelectual necessário para entendê-la.

O exemplo mais didático, nesse sentido, é o já citado de Agostinho, Tomás e Pascal. Eles queriam expandir o cristianismo? Sim. É esse o objetivo que norteia todo o seu esforço filosófico? Sim. Mas quantos homens não queriam o mesmo sem ser filósofos?

O que caracteriza e distingue a filosofia no meio de tantos outros empreendimentos humanos é a peculiar sofisticação, riqueza e precisão dos meios intelectuais que ela põe a serviço do seu projeto. Enquanto outros pregam os fins e tentam realizá-los na prática ou morrem por eles no campo de batalha, o filósofo se empenha em remover os mais árduos obstáculos cognitivos que se interpõem entre a humanidade presente e a consecução desses fins, erguendo novos arcabouços intelectuais que a viabilizem.

Esses obstáculos podem consistir de crenças do senso comum, erros de percepção ou de raciocínio, doutrinas religiosas, científicas ou mesmo filosóficas equivocadas, símbolos inadequados ou mal interpretados que bloqueiam a imaginação, fraquezas da psique humana etc. etc.

Josiah Royce distinguia, com razão, entre o “espírito” de uma filosofia e a sua “realização técnica” – o ideal inspirador e a forma acabada da sua cristalização em obra filosófica. Tão ampla é a esfera dos problemas envolvidos na “realização técnica”, tão árdua a tarefa de resolvê-los, tão complexo o equipamento intelectual que tem de ser usado (e às vezes criado) na sua construção, e não raro tão dificultosa a sua absorção pelo leitor, que, se não advertido quanto aos fins e ideais subjacentes, este pode prolongar o exame da maquinaria indefinidamente até o ponto de tomá-la como se ela fosse a finalidade de si mesma. Sem contar, é claro, o prazer vaidoso que o pedantismo erudito pode extrair do destrinchamento interminável de miudezas técnicas, em que as questões fundamentais são adiadas para o dia de são nunca em nome de uma aparência de “rigor”.

Para piorar as coisas, muitos elementos da “realização técnica” têm mesmo um valor autônomo, que permite integrá-los em outros projetos filosóficos alheios ou hostis aos fins originários a que serviram. Não é preciso ser tomista nem marxista para tirar proveito de parcelas inteiras do tomismo ou do marxismo.

É claro, no fim das contas, que o desvio de foco se comete menos facilmente com os filósofos que declararam abertamente os seus fins, ou com aqueles onde estes são auto-evidentes, do que com os tipos ambíguos e escorregadios que, por medo do escândalo ou por aversão a polêmicas, preferiram ser mais discretos ou obscuros.

Cometem-se menos desatinos por fuga do essencial na interpretação de Marx, de Sto. Tomás de Aquino ou de Pascal que na de Maquiavel, Kant ou Descartes.

Meditação e consciência

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de setembro de 2014

Um dos aspectos mais tristes da vida brasileira, para este comentarista, é a escassez ou completa ausência de atividade espiritual naquilo que se escreve e se publica, seja em livros, na mídia ou mesmo em blogs. Por atividade espiritual entendo a meditação solitária em que a consciência toma posse de si mesma como autocriação e liberdade que luta para realizar-se no mundo espaçotemporal e aí encontra, ao mesmo tempo, seus obstáculos e seus instrumentos.

É só apreendendo assim a medida e a proporção entre aquilo que podemos ser e aquilo em que vamos nos tornando, que chegamos a nos conhecer como natureza inseparavelmente criada e criadora, no sentido de Scot Erígena, indescritível portanto como figura e imagem e só apreensível como força e conflito até o momento em que a morte, como nos ensina o soneto de Mallarmé, nos fixa para sempre no formato imutável de um destino realizado e esgotado.

Só quem se dedica incessantemente a essa atividade pode pronunciar a palavra “eu” com algum conhecimento de causa, ou até com algum direito legítimo. Os demais, quando a dizem, nada mais designam do que a figura totalmente fictícia que desejariam, para fins de vantagem prática ou alívio de complexos, projetar na tela da mente alheia ou na da sua própria.

Se o não-meditante só se apreende a si próprio na sucessão de camuflagens que ele denomina erroneamente “eu”, por trás das quais nada existe senão um vago sentimento de culpa e de angústia empenhado perpetuamente em negar-se, é óbvio que aquele que vive nessa condição não pode nem comunicar-se verdadeiramente com os seus semelhantes, apenas usá-los como personagens num teatro interior que eles desconhecem, nem pode, por outro lado, conhecer Deus, seja para negá-Lo ou afirmá-Lo, senão como uma gigantesca figura de ficção sempre disponível para reforçar, aliviar ou encobrir a culpa e a angústia.

Pela consciência clara da nossa criatividade parcial e limitada entendemos que a existência de bilhões de outras pequenas forças criadoras em torno de nós manifesta uma criatividade infinita e assim chegamos a ter um vislumbre de Deus como Ato Puro, sem forma nem figura porque criador incessante de todas as formas e figuras. Foi esse Deus que disse de Si mesmo: “Eu sou o Eu-Sou”. Só Ele tem propriamente um “Eu”, porque o Eu é fonte criadora sem figura nem forma, cujo análogo o ser humano só se torna, e mesmo assim parcialmente, mediante o ato de liberdade que aceita e assume ser a imagem e semelhança de Deus.

Não se confunda, por outro lado, a meditação com a confissão religiosa nem com o exame de consciência. Ela é a condição prévia que dá substância espiritual a essas duas atividades e sem a qual se reduzem a uma catalogação mecânica de atos e de pensamentos vergonhosos, sem a menor noção da sua raiz interior bem como da sua função dialética na luta pela auto-realização da consciência.

Talvez o maior dos pecados, o verdadeiro crime contra o Espírito Santo, resida em permitir que as faculdades pensantes se desgarrem do centro meditativo e criativo, adquiram autonomia e se afirmem até como supremos caracteres distintivos do ser humano.

Quanto mais essas faculdades se aprimoram, mais forte é a tendência de alienar a elas um poder e um prestígio que, de direito, pertencem tão somente ao “eu” propriamente dito.

Pior ainda quando, consagradas em códigos formais mais ou menos uniformes e impessoais, se impõem desde fora ao indivíduo, corrompendo-o até à medula e premiando sua alienação com o aplauso acolhedor de alguma comunidade intelectual ou acadêmica.

Quanto mais se apoia nesses códigos, acreditando com isso provar a força do seu intelecto, mais o cidadão sacrifica sua progenitura por um prato de lentilhas, tornando-se uma personificação viva da “ciência sem consciência”.

Nada exemplifica isso com mais clareza do que a redução da filosofia à análise lógica da linguagem, que ainda hoje, sob formas mais diversificadas ou camufladas, fascina estudantes imaturos ávidos de aprovação acadêmica. Esses estudantes mostram, muitas vezes, ter uma ou várias habilidades intelectuais desenvolvidas até níveis excepcionais. Só lhes falta o eu autoconsciente que as ata uma às outras e as sintetiza na forma de uma “personalidade”, sem a qual toda presunção de responsabilidade intelectual não passa da obediência a um código externo, isto é, de um arremedo teatral.

Ao lado e em contraste com a mera homogeinização ideológica, que de certo modo é menos grave, essa patologia afeta atualmente uma boa parte dos estudantes de filosofia e ciências humanas no Brasil, especialmente os da dita “direita”, augurando para as décadas vindouras, quando a intoxicação marxista passar, a sua troca por uma forma de alienação ainda mais esterilizante e difícil de curar.

Sinais de uma interioridade autêntica são praticamente ausentes nos debates públicos e na produção acadêmica deste País, que, sob esse aspecto, assim como sob tantos outros, já viveu dias melhores.

Ursos e burocratas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de setembro de 2014

Meu plano, esta semana, era interromper a série de considerações deprimentes sobre a hedionda política nacional e mundial e oferecer aos leitores alguma coisa mais divertida. Tinha tudo para isso. Aos 67 anos, pela primeira vez na vida fiz uma viagem de recreio e estou em plena floresta do Maine, com meu filho Pedro e meu amigo Sílvio Grimaldo, caçando ursos pretos.

É uma região de beleza indescritível; os guias são pessoas gentilíssimas, de maneira que a gente se sente em família. O alojamento até parece um jogo de casinhas de brinquedo e a comida é de primeira ordem. Todo dia os guias nos levam por uma estrada de terra de onde partem as trilhas individuais que seguem pelo meio do mato até a cadeirinha onde nos encarapitamos para esperar o urso, atraído – espera-se – pela isca plantada num barril aberto.

Meu urso não deu ainda o ar da sua graça, especialmente porque ontem choveu um bocado e urso preto não gosta de chuva, mas vou continuar tentando. Levo uma Browning calibre 300 Winchester Magnum, suficiente para derrubar três ursos em fila, e minha pontaria não é de todo má.

Tinha uma boa oportunidade, portanto, para entreter os leitores com umas histórias de caçadas, mas, porca miséria, até aqui a maldita política globalista já chegou, firmemente decidida a estragar tudo e provar que “outro mundo é possível”. É claro que é possível. Impossível será viver nele sem começar a pensar em suicídio aos trinta anos de idade.

Será um mundo totalmente administrado, sem o mínimo espaço para a espontaneidade humana, onde o último arremedo de emoção consistirá em consumir drogas fornecidas pelo governo e praticar sexo industrializado. Traços desse mundo já se vêem por toda parte, exceto na Rússia, na China e nos países islâmicos, que preferem versões mais antiquadas do inferno.

A situação por aqui é a seguinte. O Maine tem uns trinta mil ursos pretos. Para impedir que comam todos os bebês de alces, é preciso matar uns cinco mil por ano. As leis e regulamentos já complicaram a coisa de tal modo que não se consegue matar nem a metade disso. Em resultado, a caçada de alces, antes um esporte popular, tornou-se privilégio de um punhado de ricaços, e mesmo estes têm de entrar numa loteria e esperar sua chance.

A carne de alce é uma delícia, e no meu modesto entender é muito mais decente comer um bicho  perigoso que você mesmo matou com risco próprio do que devorar cinicamente uma vaca indefesa assassinada a marretadas na ponta de uma baia sem saída.

Mas agora a tal da Humane Society, uma organização gigantesca subsidiada por George Soros e outras criaturas adoráveis, inventou um referendo para proibir a caça com isca, com cachorros e com armadilha, restando só a chamada “still hunting”, que consiste em andar pelo mato até encontrar um urso, o que é quase impossível.

Tom Hamilton, nosso guia, disse que em dez anos só viu assim um único urso, de longe. O urso preto não é metido a valentão como o grizly. É bicho arisco, que se esconde como um ladrão furtivo. Se o voto “Sim” vencer, a superpopulação de ursos vai acabar de vez com os alces, invadir o espaço humano e ameaçar os animais domésticos. Será o perfeito paraíso ecológico.

Durante milênios as comunidades humanas mantiveram-se a salvo de animais ferozes graças a um vasto círculo de proteção constituído de caçadores, guardas florestais, fazendeiros etc. É assim até hoje. O típico cidadão urbano dos nossos dias ignora a existência desse círculo e imagina que é simplesmente natural os bichos ficarem em paz no seu “habitat”, como que obedientes a um imenso Registro Cósmico de Imóveis, só se tornando perigosos quando seu território é “invadido” por malvados seres humanos.

Isso é de uma estupidez monstruosa. O “habitat natural” de um urso ou de um lobo não é um lugar fixo: é onde ele encontra uma comida do seu agrado. Pode ser um galinheiro, uma fazenda de gado ou uma pequena cidade. Se ele não passa daí é porque alguém lhe deu um tiro.

O idiota urbano, a milhares de milhas, intoxicado de maconha, tagarelice ideológica e programas de TV, acredita-se protegido pela gentileza das feras e pelo milagre do “equilíbrio ecológico”. É preciso ser muito, muito burro para acreditar que, deixada a si mesma, ou mantida como um santuário inviolável pelos cultores do animalismo, a Mãe Natureza resolverá tudo na mais perfeita harmonia.

Essa gentil progenitora já liquidou mais espécies animais do que toda a humanidade caçadora reunida. De todos os fatores naturais, o homem é o menos mortífero. É aliás o único que se preocupa em preservar as outras espécies. Nenhum tigre faz passeata de protesto quando um de seus parentes come quatrocentos indianos pobres e desarmados. Nenhum grizly publica editoriais indignados quando um da sua espécie mata dezenas de filhotes, fêmeas e ursos mais fracos.

Não por coincidência, todo o movimento pela proteção às espécies animais foi uma invenção de caçadores, como Theodore Roosevelt nos EUA e Jim Corbett na Índia. Caçadores sabem o que é bom para os animais, para os seres humanos e para a convivência razoável entre as espécies. Políticos e intelectuais iluminados só pensam em si mesmos e inventam os mais belos pretextos para mandar em tudo.

Façam as contas. No Maine, onde a caça aos ursos ainda é um hábito comum, acontecem quarenta – sim, quarenta – vezes menos situações de risco entre ursos e pessoas do que em Connecticut, onde a caça é totalmente proibida e existem apenas 450 ursos em vez dos trinta mil do Maine. Quem protege melhor a população humana e animal? Os caçadores ou o governo?

P. S – Meu amigo Sílvio matou seu urso na quarta-feira. O meu e o do Pedro não deram as caras ainda. Na foto da página não apareço com a minha Browning, mas com a CZ 550 que emprestei ao Sílvio.

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