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O realismo do impensável

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 24 de junho de 1999

Escrevendo num jornal carioca, o representante da Unesco no Brasil, sr. Jorge Werthein, procura incutir no público a crença de que toda oposição à lei das armas vem de comerciantes interesseiros, enquanto o apoio vem das massas populares ansiosas de paz e segurança. Eis aí toda a questão reduzida ao mais usado e abusado dos estereótipos: o legítimo interesse público contra a resistência de uma elite sedenta de lucros.

Um argumento estereotipado é um molde fixo e repetível, que tão raramente coincidirá com a variedade complexa dos fatos quão raramente sapatos número 38 servirão para toda a população brasileira. No curso de um debate sério, o apelo a esse tipo de recurso é mais que apelo: é apelação.

Mas o sr. Werthein tem motivos para apelar. Analisada desde o ponto de vista de ideais versus interesses, sua causa é mais que indefensável: é indecente. Vejam, em primeiro lugar, a profissão do referido: é um membro da burocracia globalista, que tem a ganhar duplamente com a proibição das armas. Ganha, de um lado, ao impor a todos governos nacionais uma lei uniforme, provando que quem manda no mundo não são as nações e sim o governo mundial em gestação. Ganha, de outro lado, rebaixando todas as populações ao estado de rebanho inerme, pronto a dizer amém ao governo mundial quando ele tirar a máscara de discrição que agora o encobre e declarar alto e bom som: “Eu vim para ficar.”

Antecipando-se a esse momento espetacular, a Unesco vem discutindo seriamente a possibilidade de eleger seus representantes diretamente, passando por cima dos governos nacionais cujas verbas a alimentam. Já inventou também uma espécie de código penal cultural que, a pretexto de multiculturalismo, lhe permitirá vigiar e punir todas as manifestações culturais que escapem do padrão global politicamente correto.

Ninguém tem a ganhar com essas propostas senão a burocracia global. Ao defendê-las, a classe do sr. Werthein advoga descaradamente em causa própria. A ambição de poder que move essa classe é tão descomunal que raia o impensável. Mas este impensável foi muito bem pensado: ninguém reage contra planos inverossímeis, porque ninguém acredita neles; assim eles acabam se realizando facilmente por falta de resistência. Foi assim que Hitler invadiu metade da Europa – fazendo o que ninguém acreditava que ia fazer.

O progresso na realização do inverossímil já vai adiantado. Uns anos atrás, qualquer representante da Unesco, da ONU ou do FMI que viesse dar palpites sobre legislação nacional seria corrido daqui a pontapés. Hoje em dia o sr. Werthein já pode nos ditar regras sem que ninguém perceba que ele está sendo inconveniente.

Prudência, em todo caso, nunca é demais. Por isto o sr. Werthein trata de disfarçar sua posição real, fingindo que meia dúzia de lojistas e os cidadãos donos de armas são a poderosa classe dominante que nos dirige, enquanto a burocracia global apoiada por um lobby internacional de empresas, fundações, ONGs, jornais e tevês, bancos e estúdios de cinema é apenas “nós, o povo”, pobrezinho como sempre. É o lobo, de novo, movendo contra o cordeiro toda a engrenagem retórica do moralismo fingido.

A aliança entre poderosos interesses multinacionais e a intelligentsia esquerdista das nações do Terceiro Mundo, na qual se apóiam a campanha de proibição das armas e outras semelhantes, é outra improbabilidade aparente que se realiza diante dos nossos olhos, protegida sob o manto dessa mesma improbabilidade.

Muitos ainda relutam em admiti-lo. Entre estes há muitos liberais sinceros, que vêem a globalização apenas como uma saudável circulação de capitais e mercadorias, informações e know-how, e se recusam obstinadamente a enxergar que esse belo movimento já está sendo aproveitado – ou desviado – para conduzir ao fortalecimento de uma burocracia global, com o propósito consciente e deliberado de desembocar num Estado mundial – o Leviatã dos leviatãs.

Essa relutância é explicável. O liberalismo fez suas armas na luta contra o Estado nacional: é natural que esteja despreparado para um combate de escala mil vezes maior. O que não é explicável nem desculpável é que, por ignorância e preguiça, ele acabe servindo de instrumento para erigir, sobre os escombros de seus inimigos menores, a fortaleza de um inimigo supremo e invencível.

Liberais do mundo: acordem! A batalha contra a prepotência das burocracias nacionais não é a última batalha. O horizonte é vasto, e há muitas sombras que ainda não se levantaram.

Velhas histórias

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 10 de junho de 1999

No dia 3 de abril de 1964, o coronel Hélio Ibiapina Lima recebeu um prisioneiro no QG do IV Exército, Recife. Reconheceu instantaneamente o velho sargento, comunista até à demência, mas bom soldado, que servira sob o seu comando. O prisioneiro estava amarrado e ele mandou desamarrá-lo. Estava esfomeado e ele mandou alimentá-lo.

Quando o coronel saiu, um grupo de agitadores direitistas arrancou o prisioneiro do QG e o levou pelas ruas, com um laço no pescoço. Alguém avisou o coronel e ele foi no encalço da turba. Mandou parar a festa e levou o prisioneiro de volta, sob o olhar furioso da multidão. O prisioneiro, aterrorizado, agarrava-se ao braço esquerdo do coronel, que com a outra mão se agarrava por sua vez ao cabo da pistola 45. Na primeira esquina o coronel ofereceu libertá-lo, para evitar novas tentativas de linchamento. O prisioneiro achou que estaria mais seguro no quartel. Ele estava com bolhas nos pés, por ter sido obrigado a caminhar descalço sobre o asfalto quente, e o coronel mandou medicá-lo. Alguns dias depois, o prisioneiro soube que havia um pedido de habeas-corpus em seu favor e foi pedir ao coronel que não o soltasse, pois os perseguidores rondavam o quartel à sua espera. Ficou e sobreviveu.

O nome do prisioneiro era Gregório Bezerra. As famílias de outros comunistas – Waldir Ximenes de Farias, Miguel Dália, Almir Campos de Almeida Braga –, quando souberam dos acontecimentos, foram pedir às autoridades que seus parentes presos fossem colocados sob a guarda do coronel Ibiapina, com quem estariam seguros.

No entanto, há 35 anos ouço contar que Gregório Bezerra foi espancado sob as ordens do coronel Ibiapina. Eu próprio, imbuído de credulidade residual mesmo depois de morta há duas décadas minha fé no comunismo, repeti essa história numa conferência no Instituto de História e Geografia Militar, por mero espírito de porco, pois fora avisado de que o malvado personagem, agora general e presidente do Clube Militar, estava na platéia. Ele não me levou a mal. Apenas me chamou a um canto para contar os fatos, com documentos e testemunhos para comprová-los.

Mais uma vez, depois de tantas, amaldiçoei minhas orelhas que, por companheirismo saudosista ou mera falta de malícia, tinham novamente sido enganadas pelos comunistas, com as bênçãos do arquimeloso d. Paulo Evaristo Arns.

Agora a lenda é publicada de novo, pela enésima vez, pelo jornal O Globo , e ainda haverá quem acredite, principalmente porque vem naquele tom casual de banalidade transitada em julgado, disfarçada como mero aposto num parágrafo que trata de outra coisa. É o mais velho truque dos intrigantes: enxertar a mentira comprometedora numa conversa qualquer, de passagem, como quem não quer nada, contando com a vulnerabilidade subliminar do ouvinte distraído. Tomando carona num outro assunto, a discreta calúnia não se expõe ao risco de uma discussão e acaba sendo aceita por automatismo. Repetida a operação umas centenas de vezes, o absurdo se impregna no fundo do subconsciente popular, pronto para resistir, com todas as forças da irracionalidade, a qualquer exame sensato. Quem já não acreditou, por esse meio, em histórias de orgias prodigiosas em claustros de carmelitas? Há toda uma engenharia da credulidade, mas ninguém jamais a praticou com a arte e a persistência dos comunistas. A lenda do torturador Hélio Ibiapina está assim incorporada aos arquivos da estupidez universal, o mais inabalável patrimônio histórico do mundo, e continuará sendo publicada pelos séculos dos séculos, amém.

Em aditamento a meu artigo “A história oficial de 1964”: – Um respeitável acadêmico do Rio, ex-militante da direita civil armada, me confirmou que organizações direitistas de São Paulo e do Paraná receberam, às vésperas do 31 de março, caixas e mais caixas de metralhadoras INA. Mais uma prova da minha teoria: a direita civil estava pronta para um massacre de esquerdistas, que a inesperada iniciativa das Forças Armadas paralisou no momento decisivo. Se algum comunista chegou vivo ao fim de 1964, deveu isto a seus desafetos fardados. Oh, vergonha, mãe do ressentimento!

Dois escândalos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de maio de 1999

Um presidente norte-americano, que havia escapado incólume a cabeludas acusações de corrupção, acabou perdendo o mandato porque mandou grampear o telefone dos adversários. No Brasil, grampeiam-se telefones de deputados, de ministros e agora do presidente da República – e só o que repercute na imprensa é o conteúdo das conversações gravadas, sem que ninguém se mostre nem um pouco escandalizado com o fato mesmo da espionagem política, cuja prática assim vai se tornando hábito e direito adquirido.

Mas, mesmo que as conversações de agora trouxessem uma prova inequívoca de corrupção – o que não é o caso absolutamente –, restaria perguntar: por que as verbas públicas deveriam ser tão sacrossantas e intocáveis, se a própria autoridade do Estado não vale nada e pode ser violada impunemente por qualquer araponga travestido de guardião da moral?

Todos sabemos que a oposição de esquerda tem seu próprio serviço secreto, que, graças à estratégia gramsciana da “longa marcha da esquerda para dentro do aparelho de Estado”, nenhum cidadão e nenhum homem público está hoje a salvo dos olhos e ouvidos onipresentes da hedionda KGB tupiniquim. Onipresentes e onipotentes: seus agentes e colaboradores, infiltrados em todos os escalões da administração, vasculham os papéis e a vida privada de quem bem entendem, copiam documentos, violam segredos bancários e gravam telefonemas à vontade, sem que ninguém dê o menor sinal de perceber que isso já é um Estado policial paralelo instalado no País, aguardando apenas a posse de um candidato de esquerda na Presidência da República para oficializar o reinado do Big Brother que tudo sabe, tudo ouve e tudo vê.

É óbvio que, ao dizer isso, serei fatalmente mal interpretado e dirão que estou apenas defendendo FHC. Não haveria mal algum em defender o presidente, mas, com toda a sinceridade, digo que a sorte de nenhum político individual me comove o bastante para vencer minha preguiça de escrever em sua defesa. O que estou defendendo é um princípio – o famoso Estado de Direito do qual os hipócritas da KGB falam sempre de boca cheia, quando lhes interessa. Mas a moralidade pública deste país foi tão aviltada, tão prostituída por seus defensores oportunistas, que hoje em dia qualquer defesa de um princípio é interpretada, maliciosamente, como defesa de um interesse político determinado. Estou pouco me lixando para as interpretações suínas. O que tenho a dizer é que, se a espionagem política não for punida severamente, vai se consolidar como um hábito culturalmente aceito, uma vitória esplêndida da “revolução cultural” gramsciana, e aí será tarde para defender a democracia, porque já estaremos vivendo sob uma ditadura.

E a reação da opinião pública, irada contra as vagas suspeitas de favorecimento ilícito e indiferente à exibição confessa de espionagem, mostra que a perversão do senso moral já não afeta só os políticos, mas a Nação inteira. O povo que respeita antes o dinheiro público do que a autoridade do Estado e o direito à privacidade é um povo rebaixado ao nível mais ínfimo da moralidade – a moralidade de bandidos para os quais o dinheiro é o único valor. Que essa completa inversão do senso moral tenha se operado em nome da ética, é algo que não posso ver sem sentir ânsia de vômito.

Os policiais do pensamento, que vivem à cata de nazistas embaixo das camas, não vêem nada de mau num pouquinho de nazismo quando ele se volta contra seus tradicionais desafetos, os militares brasileiros. O filme de Sílvio Back, Rádio Auriverde , que mostra a atuação da FEB na 2.ª Guerra Mundial desde o ponto de vista da propaganda alemã, desce ao mais sórdido esculacho das nossas forças militares, sempre assumindo a opinião do governo nazista como verdade inquestionável. O texto do documentário é extraído das emissões radiofônicas de guerra psicológica nazista destinadas a corroer o moral de nossas tropas na Itália, e é usado por Sílvio Back com o mal disfarçado propósito de minar o respeito que a Nação brasileira sente pelos heróis da FEB.

O filme é ruim que dói, mas, além de produzido com dinheiro do Banco do Brasil, já foi exibido várias vezes em tevês estatais, sem que nenhum intelectual de esquerda denunciasse o nazismo ostensivo do seu conteúdo. Afinal, do ponto de vista da estratégia comunista, há nazismo ruim e nazismo bom.

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