Artigos

Tolerância zero

Olavo de Carvalho


Época, 28 de outubro de 2000

Quanto menos são os que falam contra o comunismo, menos têm o direito de falar

Em periódicos regionais, alguns jornalistas denunciam a opressiva hegemonia que os comunistas conquistaram em nossa imprensa e nos meios acadêmicos. Em publicações de alcance nacional, tenho sido o único a tocar no assunto proibido. A extensão e o rigor da proibição podem ser medidos pela virulência insana de certas reações que suscito. Nada de argumentos, é claro. São insultos, intrigas, inculpações projetivas, apelos sumários a minha demissão. Deixam claro que, contra a ascensão esquerdista, nem uma única voz, por fraca e isolada que seja, pode ser tolerada. A concordância deve ser unânime, o silêncio da oposição, total. Precioso silêncio: Gramsci ensina que, na hora H, ele acabará valendo como aprovação popular da tomada do poder pelos comunistas. É preciso, portanto, produzi-lo, antes que a revolução possa tirar a máscara democrática e mostrar sua face hedionda, quando as fronteiras estiverem fechadas e for tarde para fugir. No Rio Grande do Sul, imagem e projeto do futuro Brasil petista, os principais jornalistas de oposição já foram calados por pressão do governo estadual.

Tal é a diferença entre o mero autoritarismo e o totalitarismo. O primeiro contentava-se em calar a maioria, deixando abertas umas válvulas de escape. O segundo exige a plenitude do silêncio, expressa na fórmula sinistra: para a minoria de um, tolerância zero.

O mais extraordinário é que muitos artífices desse estado de coisas proclamam que não são comunistas. Se não são, por que não suportam que alguém fale contra o comunismo?

Se um sujeito diz que não é comunista, mas vê a sociedade com olhos marxistas, prega a luta de classes e admite chegar ao poder pelo uso das armas, o que se pode concluir senão que ele é – ou sonha ser quando crescer – um fac-símile de Fidel Castro? Não obstante, o senhor João Pedro Stedile, por exemplo, entre uma inspeção e outra em seus campos de treinamento de guerrilheiros, assegura, com ar de inocência, que não é sequer esquerdista no sentido mais genérico da palavra.

O mais velho ardil do diabo é dizer que não existe; o do comunismo, jurar que é outra coisa. Em plena revolução chinesa, intelectuais pontificavam que Mao Tsé-tung nada tinha de comunista. Franklin Roosevelt declarou que o próprio Stálin não era comunista. E a imprensa chique de Nova York impôs ao mundo a imagem de um Fidel democrata e anticomunista.

Não há limites para a volúpia comunista de mentir. Comparável a ela, só sua volúpia de matar. Fidel, por exemplo, é um assassino vocacional que começou a carreira matando um político que mal conhecia, contra o qual não tinha nada, só para cortejar um inimigo da vítima, de quem esperava obter favores. E não faltam padres para nos assegurar, com a conveniente unção e o indefectível trémolo sacerdotal na voz, que se trata de um santo homem, que o regime do qual um sexto da população cubana fugiu não é o comunismo, mas o catolicismo. Deve ser mesmo, a julgar pelo rigor dos anátemas que lança sobre os hereges.

PS.: Decidido a guardar este espaço para coisas mais importantes, coloquei em meu website, www.olavodecarvalho.org, uma resposta ao blefe pueril com que em Época de 23 de outubro o senhor Luca Borroni-Biancastelli fingiu refutar minhas críticas a Lord Keynes.

Cegos, caolhos e videntes

Olavo de Carvalho


O Globo, 28 de outubro de 2000

“O diabo diz a verdade nove vezes para
poder mentir melhor na décima”

Provérbio árabe

A cumplicidade entre esquerda oficial e violência revolucionária já se tornou tão patente que, como enfatiza o ex-ministro da Justiça, Paulo Brossard, só não a vê quem não quer. Mas, entre os que a vêem, há alguns que têm por ofício impedir que os outros vejam. Tais criaturas não são cegas nem videntes: são seres intermediários, que, tendo em terra de cegos um olho só, furam um de quem tenha os dois, para que não venha a tornar-se ameaça às suas prerrogativas reais de caolhos.

O nome de seu ofício é “desinformação”. Evidentemente não se pode exercê-lo sem ser também um expert em informação, pelas mesmas razões que tornariam dificultoso montar uma boa fraude fiscal sem conhecer as leis fiscais.

Para a consecução de sua tarefa, é indispensável pois adquirir primeiro um certo prestígio de fonte isenta e confiável, o que neste país é bem barato e pode se obter pela simples prática cotidiana da tucanidade, isto é, da duplicidade, ambigüidade, inocuidade ou quantas mais poses a imaginação popular associe, por motivos insondáveis, à idéia de justiça, bom-senso e savoir-faire (do mesmo modo como, em compensação e por razões igualmente misteriosas, toma como sinal de honestidade e bom caráter a obstinação vitalícia na mentira sectária).

A indefinição política exterior não prejudicará em nada o exercício das altas funções desinformáticas, pois nesse cargo de elite não se trata de fazer propaganda (isto fica para os militantes, os desprovidos de ambos os olhos), e sim de dar às lorotas partidárias, em momentos criteriosamente selecionados, a credibilidade das evidências acima de qualquer suspeita.

A prática desse ofício chega no entanto a ser desafiadora, pois há poucas coisas importantes que os brasileiros não ignorem, e é preciso uma inventividade incomum para desinformar os desinformados. Às vezes é preciso mesmo chegar à ousadia de negar que aconteceu algo que ninguém sabe que aconteceu. Assim, por exemplo, o público imagina que o PT é um partido como qualquer outro, diferente apenas pelo conteúdo das suas propostas de governo. Imagina isso porque não sabe que os demais partidos não têm um braço armado, nem contatos íntimos com organizações criminosas e revolucionárias de outros países, nem um serviço secreto particular com espiões e grampos por toda parte, nem uma rede de doutrinadores treinados para inocular ódio político nas crianças desde o pré-primário, nem um sistema de fiscalização para impedir que seus adversários conquistem empregos nas universidades, nem uma série de outros recursos aos quais o PT deve o seu sucesso e que o tornam, entre os partidos, uma raposa entre as galinhas, só não as comendo todas de uma vez porque não está seguro de poder digeri-las.

E como ninguém sabe que essas coisas existem, o profissional desinformático declara corajosamente que elas não existem, reforçando a crença estabelecida de que o PT quer apenas governar constitucionalmente e não derrubar o Estado constitucional, como, não obstante, é precisamente o que em seus documentos internos ele diz que vai fazer.

Caso o leitor deseje conservar o uso de seus dois olhos, minha recomendação é que, em vez de buscar informações em fontes que abrem ou fecham ao sabor de interesses políticos, passe a procurá-la nas que estão permanentemente abertas e brotem de lugares próximos à origem dos fatos.

O Rio Grande do Sul, por exemplo, é um dos poucos estados onde os não-petistas se interessaram em estudar e conhecer o fenômeno petista. Os gaúchos carregam o PT nas costas há uma década e, como dizia Nietzsche, “quem sofreu sob o teu jugo te conhece”. Alguns o conhecem tanto que foram removidos de seus postos na imprensa, sob ameaça governamental de cortar os anúncios oficiais, dos quais a mídia se torna tanto mais dependente quanto mais a economia local marcha para a total submissão ao Estado com resignação de carneiros rumo ao matadouro ou, em alguns casos, com obscena alegria masoquista.

Do Rio Grande chegam-nos quatro livros nos quais, da boca das vítimas e testemunhas diretas, o leitor obterá a descrição dos processos de governo petista: intimidação dos adversários, chantagem, desmontagem da polícia e sua redução ao estatuto de órgão auxiliar da violência revolucionária, substituição do poder legislativo por militantes e paus-mandados, uso abundante de crianças como instrumentos de propaganda ideológica, manipulação das verbas do Estado em favor do partido, politização totalitária de todas as relações humanas – enfim, uma imagem em miniatura do que será o Brasil de amanhã se a opinião pública continuar confiando naqueles que lhe asseguram que nada disso está acontecendo.

Esses livros são: “A nova classe no poder”, de J. H. Dacanal (Porto Alegre, Novo Século), “O impeachment do Governo Olívio Dutra”, do advogado Paulo Couto e Silva (Fundação Paulo do Couto e Silva); “Os 500 dias do PT no governo são outros 500”, do deputado estadual Onyx Lorenzoni (Sulina); e “Totalitarismo tardio: o caso do PT”, organizado por José Giusti Tavares (Mercado Aberto). O primeiro é lúcida narrativa da resistível ascensão do PT gaúcho; o segundo, o diagnóstico da ilegalidade essencial dos processos de governo petistas; o terceiro, o comentário do avanço revolucionário à medida que foi repercutindo na Assembléia Legislativa; o último, uma preciosa coleção de análises do totalitarismo petista, assinadas por um psiquiatra, um filósofo e dois cientistas políticos, que conseguiram furar o bloqueio e inserir esse tema explosivo num seminário para doutorandos em direito promovido por quatro prestigiosas instituições acadêmicas.

Efeitos da ‘grande marcha’

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, São Paulo, 26 de outubro de 2000

A Justiça Eleitoral existe, como o próprio nome o diz, para que as eleições sejam justas. Mas ela se compõe de funcionários públicos e, desde que apareceu neste país um fenômeno chamado “a grande marcha da esquerda para dentro do aparelho de Estado”, essa classe vem se tornando cada vez mais suspeita de estar interessada em tudo, menos em eleições justas. Pois a “grande marcha” consiste em ocupar o maior número de empregos públicos, com a finalidade de colocar o aparelho de Estado a serviço de um partido, o qual então passa a exercer o governo sem ser governo, desfrutando das prerrogativas do poder sem as suas concomitantes responsabilidades.

Essa operação foi calculada por seu inventor, Antonio Gramsci, para ser realizada de maneira lenta e sorrateira, de modo que os próprios governantes acabem sendo responsabilizados pelos efeitos globais nefastos das ações de funcionários infiltrados na burocracia para desmoralizá-lo e enfraquecê-lo.

Um exemplo da eficácia alucinante desse procedimento foi obtido já durante o governo militar. O regime, por ser autoritário e não totalitário, desejava a apatia política do povo e não fez nenhum esforço para doutriná-lo segundo os valores do movimento de 1964 (o totalitarismo, ao contrário, exige doutrinação maciça). Essa atitude deixou à mercê da oposição de esquerda a rede de instrumentos editoriais, jornalísticos e escolares de formação da opinião pública (o que, entre outras coisas, resultou na ampliação formidável do mercado de livros esquerdistas). Uma das poucas tentativas de doutrinação feitas pelos militares foi a introdução, nas escolas, das aulas de “Educação Moral e Cívica”. Mas tão displicente foi essa tentativa que o Partido Comunista se aproveitou da oportunidade para lotar de bem treinados agitadores as cátedras da nova disciplina, as quais assim se tornaram uma rede de propaganda comunista subsidiada pelo governo. É claro que muitos professores ideologicamente descomprometidos também se apresentaram para suprir as vagas, mas os militantes faziam o mesmo como tarefa partidária, de modo que, no conjunto, o plano comunista de apropriar-se dos recém-abertos canais de doutrinação não concorreu com uma premeditação igual de signo ideológico contrário, mas apenas com a resistência amorfa de uma massa politicamente indiferente e sem direção. A brutal politização marxista das escolas, que hoje culmina nas barbaridades ideológicas impingidas às crianças pelos manuais publicados pelo próprio Ministério da Educação, começou precisamente aí.

O mais notável foi que, ocupado em reprimir a guerrilha, o governo militar não apenas deu rédea solta à ala “pacífica” e gramsciana da esquerda, mas até lhe concedeu substanciais incentivos. O principal editor comunista da época jamais deixou de receber subsídios oficiais, até que, com a abertura política, começou a ter dificuldades financeiras e acabou vendendo sua empresa.

Jamais interrompida, rarissimamente denunciada, a “grande marcha” parece enfim ter chegado à Justiça Eleitoral, que, nos últimos tempos, tomou pelo menos três decisões bastante suspeitas. Primeiro, proibiu menções adversas à aliança do PT com o movimento “gay” (v. meu artigo no JT de 20 de setembro); depois, mandou distribuir cartazes que incentivavam o eleitor a votar “para mudar”, o que é mensagem de signo ideológico indiscutivelmente nítido; por fim, vetou propagandas do candidato do PPB à Prefeitura de São Paulo que apresentavam sua concorrente como adepta da causa abortista – uma afirmação cuja veracidade é empiricamente confirmável por qualquer um.

Cada uma dessas decisões, isoladamente, pesa pouco. Somadas – se ainda não vierem outras –, talvez não sejam capazes de decidir uma eleição. Mas, na escala minimalista de uma estratégia que aposta antes na somatória de milhares de ações imperceptíveis do que nos riscos da propaganda espetacular, elas vêm engrossar o caudal da “revolução cultural” gramsciana, a mutação sutil e persistente dos padrões de percepção do povo brasileiro, cujos resultados, em São Paulo e em outras cidades importantes, já estão em vias de se traduzir em resultados eleitorais superficialmente limpos e profundamente sujos.

É impossível não ver simultaneamente um efeito da “grande marcha” na greve da polícia pernambucana, claramente ilegal e insurrecional, e em mil e um outros fatos que parecem isolados, mas cuja origem comum está sempre num funcionalismo público bem adestrado para trabalhar contra quem paga seu salário.

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