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O que é desinformação

Olavo de Carvalho

O Globo, 17 de Março de 2001

Se o público brasileiro não adquirir rapidamente os conhecimentos básicos que o habilitem a reconhecer operações de desinformação pelo menos elementares, toda a nossa imprensa, toda a nossa classe política e até oficiais das Forças Armadas podem se transformar, a curtíssimo prazo, em inermes e tolos agentes desinformadores a serviço da revolução comunista na América Latina .

A maior parte das nossas classes letradas não sabe sequer o que é desinformação. Imagina que é apenas informação falsa para fins gerais de propaganda. Ignora por completo que se trata de ações perfeitamente calculadas em vista de um fim, e que em noventa por cento dos casos esse fim não é influenciar as multidões, mas atingir alvos muito determinados – governantes, grandes empresários, comandos militares – para induzi-los a decisões estratégicas prejudiciais a seus próprios interesses e aos de seu país. A desinformação-propaganda lida apenas com dados políticos ao alcance do povo. A desinformação de alto nível falseia informações especializadas e técnicas de relevância incomparavelmente maior.

O uso de informações falseadas é conhecido nas artes militares desde que o mundo é mundo. “A arte da guerra consiste substancialmente de engodo”, dizia Sun-Tzu no século V a. C. Exemplos de informação falsa usada fora do campo militar estrito aparecem, aqui e ali, na história mundial. Calúnias contra judeus e protestantes nos países católicos, contra os católicos e judeus nos países protestantes foram muitas vezes premeditadas para justificar perseguições. Os revolucionários de 1789 montaram uma verdadeira indústria de informações falsas para jogar a opinião pública contra o rei e, depois, para induzi-la a apoiar as medidas tirânicas do governo revolucionário. O exemplo mais célebre foi a “Grande Peur”, o “Grande Medo”: informações alarmistas espalhadas pelo governo, que, anunciando o iminente retorno das tropas reais – impossível, àquela altura – desencadeavam explosões de violência popular contra os suspeitos de monarquismo; explosões que em seguida o próprio governo mandava a polícia controlar, brilhando no fim com a auréola de pacificador. A história das revoluções é a história da mentira.

Mas tudo isso ainda não era desinformação. Invenção pessoal de Lenin, a desinformação (desinformátsya) consiste em estender sistematicamente o uso da técnica militar de informação falseada para o campo mais geral da estratégia política, cultural, educacional etc., ou seja, em fazer do engodo, que era a base da arte guerreira apenas, o fundamento de toda ação governamental e, portanto, um instrumento de engenharia social e política. Isso transformava a convivência humana inteira numa guerra – numa guerra integral e permanente. Quando Hitler usou pela primeira vez, em 1939, a expressão “guerra total” para designar um tipo moderno de guerra que não envolvia apenas os políticos e militares, mas toda a sociedade, a realidade da coisa já existia desde 1917 na Rússia, mesmo sem combates contra um inimigo externo: o socialismo é a guerra civil total e permanente.

No governo de Lenin, a desinformação era também a regra geral da política externa. A famosa abertura econômica, planejada como etapa dialética de uma iminente estatização total, foi anunciada como sinal de um promissor abrandamento do rigor revolucionário, não só para atrair os capitalistas, mas para dissuadir os governos ocidentais de apoiar qualquer esforço contra-revolucionário. Assim, muitos líderes exilados, desamparados pelos países que os abrigavam e iludidos pela falsa promessa de democratização na Rússia, voltaram à pátria conforme calculado e, obviamente, foram fuzilados no ato. Dos que não voltaram, muitos foram mortos no próprio local de exílio por agentes da Tcheka, a futura KGB.

O uso da informação traiçoeira nessa escala era uma novidade absoluta na política mundial. Para fazer idéia de quanto as potências ocidentais estavam despreparadas para isso, basta saber que os EUA não tiveram um serviço secreto regular para operar no exterior em tempo de paz senão às vésperas da II Guerra Mundial. Outro ponto de comparação: a “ofensiva cultural” soviética – sedução e compra de consciências nas altas esferas intelectuais e no show business – começou já nos anos 20. A CIA não reagiu com iniciativa semelhante senão na década de 50 – e foi logo barrada pela gritaria geral da mídia contra a “histeria anticomunista”.

Não obstante a abjeta inermidade das potências ocidentais ante a Revolução Russa, o governo leninista mantinha o povo em sobressalto, alardeando que milhares de agentes secretos estrangeiros estavam em solo russo armando a contra-revolução. Um dos raros agentes que comprovadamente estavam lá era o inglês Sidney Reilly, um informante mitômano que o Foreign Office considerava pouquíssimo confiável, e do qual a propaganda soviética fez o mentor supremo da iminente invasão estrangeira que, evidentemente, nunca aconteceu. Para avaliar o alcance dos efeitos da desinformação soviética, basta notar que até a década de 70 o livro de Michael Sayers e Albert E. Kahn, “A grande conspiração”, inspirado no alarmismo leninista de 1917, ainda circulava em tradução brasileira como obra séria, com a chancela de uma grande editora. Diante de casos como esse, de autodesinformação residual espontânea, não espanta que os soviéticos tivessem em baixíssima conta a inteligência dos brasileiros, principalmente comunistas.

Operações de desinformação em larga escala só são possíveis para um regime totalitário, com o controle estatal dos meios de difusão, ou para um partido clandestino com poder de vida e morte sobre seus militantes. Qualquer tentativa similar em ambiente democrático esbarra na fiscalização da imprensa e do Legislativo. Não há, pois, equivalente ocidental da desinformação soviética. Um governo pode, é claro, fazer propaganda enganosa, mas não pode fazer desinformação porque lhe faltam os meios para o domínio calculado dos efeitos, que é precisamente o que distingue a técnica leninista. Inversa e complementarmente, a liberdade de informação nos países democráticos sempre foi de uma utilidade formidável para a desinformação soviética, não só pelo contínuo vazamento de informações secretas do governo para a imprensa, mas também pela facilidade de divulgar informações falsas pela mídia ávida de denúncias e escândalos. O célebre general armênio Ivan I. Agayants, por muitas décadas chefe do departamento de desinformação da KGB, chegava a ficar espantado ante a facilidade de plantar mentiras na imprensa norte-americana. Espantado e grato. Ele dizia: “Se os americanos não tivessem a liberdade de imprensa, eu a inventaria para eles.”

NB: Este assunto continua no artigo da semana que vem. Por enquanto, vão apenas tratando de conjeturar, se quiserem, o seguinte: quantos técnicos em desinformação, que aprenderam em Cuba sob a orientação da KGB, são hoje “formadores de opinião” no Brasil?

Eleição no galinheiro

Olavo de Carvalho

Época, 17 de Março de 2001

Candidato preferencial a chefe de segurança:
a raposa

“Primeiro o meu estômago, depois a vossa moral.”
(Bertolt Brecht)

Outro dia, meu colega Zuenir Ventura lembrava, com razão, que até a década de 90 a esquerda desprezava o combate à corrupção como “frescura pequeno-burguesa”. Sim, a moral nunca interessou muito a uma corrente política afeita a nivelar pragmaticamente a santidade e o crime, avaliando-os pelo critério exclusivo de sua utilidade maior ou menor para a causa da revolução. Esse critério, aliás, está resumido num poema de Brecht, repassado de geração em geração a deslumbrados militantes, segundo o qual a verdade e a mentira, o bem e o mal, o direito e o torto, Deus e o diabo – tudo para o esquerdista dá na mesma, só importando que possa ser usado para apressar a marcha em direção ao socialismo.

Por isso, só há duas explicações possíveis para a súbita epidemia de sensibilismo moral que então se apossou da esquerda: ou é um caso de milagre santificante, ou é apenas mais um engodo brechtiano. Só há um meio de saber: é o velho e infalível “Pelos frutos os conhecereis”. Os frutos, até o momento, são: o crescimento assustador da corrupção, o fortalecimento do banditismo armado agora erigido em força política revolucionária e, last but not least, a ruptura da aliança governamental. Tudo isso acompanhado, como se por mera coincidência, da ascensão política da esquerda. O próprio Brecht, a essa altura, admitiria que a moral às vezes enche barriga.

Quando começou a campanha pela “Ética na Política”, adverti que a coisa não tinha por objetivo moralizar o país, mas dar à esquerda o meio de jogar seus adversários uns contra os outros, neutralizá-los e tomar o poder no meio da confusão geral. Passados 11 anos, a corrupção só aumentou, obviamente, mas a operação desmanche da direita política alcança resultados cada vez mais promissores, dos quais a briga entre Antonio Carlos Magalhães e FHC é a mais linda amostra. Bem, quem mandou esses dois patetas embarcarem, por oportunismo e desejo de brilho fácil, na onda suicida do denuncismo, em vez de desmascararem o próprio neomoralismo como o truque imoral e perverso que era no início e é até agora?

O que me levava àquela conclusão, já em 1990, era a patente insinceridade de uma campanha moralizante que fomentava a criminalidade violenta ao mesmo tempo que concentrava no ódio à “classe dominante” o sentimento de indignação popular, pervertendo assim toda a escala de valores e transformando o aparato investigativo do Estado numa máquina de destruir lideranças e fazer revolução. Na hora em que aliados do narcotráfico colombiano – a mais vasta e cruel organização criminal já registrada na história do continente – são publicamente aceitos como guardiões da moral, enquanto suspeitos de delitos incruentos são expostos à execração como monstros e centenas de reputações vão caindo umas após as outras como pinos de boliche, está claro que se trata de uma aplicação clássica e até banal do velho preceito leninista: “Fomentar a corrupção e denunciá-la”. Como neste país ninguém mais conhece a estratégia leninista, exceto os que a praticam, a operação é executada com a facilidade com que vigaristas tarimbados fariam de trouxa um bando de caipiras, com a solícita colaboração de vítimas incapazes de captar a ligação de causas e efeitos.

Mesmo a recente comprovação de que a guerrilha colombiana comanda o tráfico de drogas no próprio território brasileiro não mudará isso em nada. Os amigos da guerrilha, os padrinhos de seqüestradores, os ideólogos que ensinaram a teoria e a prática da revolução aos detentos dos 29 presídios amotinados continuarão envoltos da auréola de pureza que compete a seu estatuto de gurus da moralização nacional, enquanto o país, de olhos grudados em denuncinhas de Luizes Franciscos, oferece as costas, sonso e inerme, ao estuprador internacional que se aproxima para agarrá-lo. Parece impossível despertar o Brasil do torpor hipnótico que o imbeciliza. Com a aprovação unânime e entusiástica das galinhas, a raposa é reeleita diariamente chefe de segurança do galinheiro.

Regra de três

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 15 de Março de 2001

Quando os megacapitalistas, a burocracia planetária e a mídia internacional, após apoiar com verbas e publicidade a organização do Fórum Social Mundial, aceitam alegremente algumas das conclusões do encontro e passam a declarar que, de fato, como já dizia o doutíssimo Olívio Dutra, a globalização não foi igualmente boa para todos, a conclusão que se deve tirar disso é, para mim, a mais óbvia possível. O circo esquerdista de Porto Alegre foi apenas um útil contraponto dialético de detalhe, programado pelos próprios engenheiros do mundialismo para se encaixar na sua estratégia geral, a qual não exclui nem mesmo, no vasto painel de um mundo cada vez mais capitalista, a possibilidade de umas experiências socialistas, aqui e ali, em países que sejam idiotas o bastante para desejá-las e irrelevantes o suficiente para que seu suicídio não prejudique em grande coisa o universo em torno: tal parece ser o caso, precisamente, do Brasil.

Mas o Brasil não seria tão bom para o desempenho dessa parte vexaminosa do “script” maior se, precisamente, a nossa intelectualidade não fosse cretina o bastante para não perceber o funcionamento da máquina mundial de desinformação da qual ela própria é, no local, a peça decisiva. Assim, as declarações espantosamente sincrônicas do FMI, do Banco Mundial, da ONU e de George Soros em discreto apoio às conclusões do Fórum gaúcho não despertarão a menor suspeita e, em vez de ser interpretadas à luz dos preceitos mais elementares da ciência das informações estratégicas, serão unanimemente aceitas e repassadas em seu puro valor retórico nominal, como homenagens casuais do globalismo à argumentação de seus adversários. “Sancta simplicitas!”

Ninguém, aqui, parece capaz de fazer o seguinte raciocínio: premissa maior – o poder global expande-se igualmente por meio da livre iniciativa capitalista ou da burocracia mundial socializante. Premissa menor – em virtude das próprias dimensões totalizantes do empreendimento, esses meios têm de ser alternados para a coisa dar certo. Conclusão: frear o liberalismo e pisar no acelerador do estatismo não diminui em nada a velocidade de ascensão da Nova Ordem Mundial nem a da liquidação das autonomias nacionais.

Mas, no Brasil, só as palavras contam. Como o nome “liberalismo” está associado a “globalismo”, e o nome “estatismo” a “independência nacional”, embora as quatro coisas aí significadas não tenham nada a ver com isso, só o que importa é reforçar os mesmos discursos de sempre, porque, afinal, o show tem de continuar.

Assim, comentando um relatório da FAO (a única organização internacional que, por descuido da produção talvez, não fez coro às unanimidades antiliberais da quinzena passada), segundo o qual o mundo está hoje menos miserável do que 15 anos atrás, o editorialista de um grande jornal de São Paulo diz que isso não pode ser, porque, como informam outras tantas e ainda mais abalizadas autoridades globais, o número de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia subiu de 1,2 bilhão de meados da década de 80 para 1,5 bilhão hoje. São portanto 300 milhões de miseráveis a mais, “quod erat demonstrandum”.

Acontece que, no mesmo período, a população mundial passou de 4,5 bilhões para 6 bilhões. Aumentou, portanto, de um terço, enquanto o exército de miseráveis teve seu contingente acrescido de apenas um quarto. A prosperidade está obviamente ganhando a corrida. Não importa: na atmosfera geral de histrionismo antiliberal, qualquer indício de que a miséria diminuiu vale como prova de que a miséria cresceu. E como o que conta é mesmo o teatro, o articulista completa sua “performance” proclamando que, apesar do que diz a FAO, “definir a linha de indigência é um problema complexo de estatística social” porque “os métodos são variados e a acurácia dos dados é precária”. Diante de tanta sabença, já ninguém mais ousa perguntar: que pode entender da “acurácia” dos métodos estatísticos um sujeito que não consegue sequer aplicar uma regra de três?

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