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Refúgio dos canalhas

Olavo de Carvalho


Época, 26 de maio de 2001

O nacionalismo de esquerda é uma fraude

Os apóstolos do Estado nacional, que espumam de indignação patriótica à simples idéia de privatizar alguma empresa estatal, tornam-se de repente globalistas assanhados quando um poder supranacional vem defender os interesses deles contra os interesses da pátria.

Essa conduta é tão repetida e uniforme que só um perfeito idiota não perceberia nela um padrão, e por trás do padrão uma estratégia. Desde logo, “a pátria” que eles celebram se constitui exclusivamente de estatais, onde têm sua base de operações e de onde dominam não somente uma boa fatia do Estado, mas também os sindicatos de funcionários públicos e seus monumentais fundos de pensão.

Defendendo sua toca com a ferocidade de javalis acuados, desprezam tudo o mais que compõe a noção de “pátria” e não se inibem de colocar-se a serviço de ONGs e governos estrangeiros quando atacam as instituições nacionais, desmoralizam as Forças Armadas, desmembram o território brasileiro em “nações indígenas” independentes, impõem normas à educação de nossas crianças, fomentam conflitos raciais para destruir o senso de unidade nacional e, em suma, arrebentam com tudo o que constitui e define a essência mesma da nacionalidade. Da pátria, só uma coisa lhes interessa: o dinheiro e o poder que lhes vêm das estatais.

Em segundo lugar, o nacionalismo que ostentam é de um tipo peculiar, desde o ponto de vista ideológico. É um nacionalismo seletivo e negativo, que enfatiza menos o apego aos valores nacionais do que a ojeriza ao estrangeiro – e mesmo assim não ao estrangeiro em geral, como seria próprio da xenofobia ordinária, mas a um estrangeiro em particular: o americano.

Assim, por exemplo, não sentem a menor dor na consciência quando, sob o pretexto imbecil de que toda norma gramatical é imposição ideológica das classes dominantes, demolem a língua portuguesa e acabam suprimindo do idioma duas pessoas verbais (mutilação inédita na história lingüística do Ocidente); mas, ante o simples ingresso de palavras inglesas no vocabulário – um processo normal de assimilação que jamais prejudicou idioma nenhum, e que aliás é mais intenso no inglês do que no português –, saltam ao palanque, com os olhos vidrados de cólera, para denunciar o “imperialismo cultural”.

Ser nacionalista, para essa gente, não é amar o que é brasileiro: é apenas odiar o americano um pouco mais do que se odeia o nacional. Mas, para cúmulo de hipocrisia, seu alegado antiamericanismo não os impede de celebrar o intervencionismo ianque quando lhes convém, por exemplo quando ajudam alegremente a desmoralizar a cultura miscigenada que constitui o cerne mesmo do estilo brasileiro de viver e lutam para impor entre nós a política americana das quotas raciais, em consonância com as campanhas milionárias subsidiadas pelas fundações Ford e Rockefeller.

Do mesmo modo, seu antiamericanismo fecha os olhos à entrada de novos códigos morais – feministas e abortistas, por exemplo – improvisados em laboratórios americanos de engenharia social com a finalidade precisa de destruir os obstáculos culturais ao advento da nova civilização globalista.

Redução do nacionalismo à defesa das estatais, substituição do antiamericanismo ao patriotismo positivo, adesão oportunista ao que é americano quando favorece a esquerda: desafio qualquer um a provar que a conduta constante e sistemática da chamada “esquerda nacionalista” não tem sido exatamente essa que aqui descrevo, definida por esses três pontos.

Nunca, na História, houve patriotas a quem se aplicasse tão exatamente, tão literalmente e com tanta justiça a observação de Samuel Johnson, de que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas.

 

Intelectuais orgânicos

Olavo de Carvalho

O Globo, 26 de maio de 2001

Só agora li uma entrevista que o prof. Carlos Nelson Coutinho deu ao jornal “Valor”, na qual, forçando até onde é possível o sentido das palavras, ele me incluiu entre os que teriam “preconceito contra o marxismo”. Apesar da data já um pouco longínqua, vale a pena examinar o documento, que ilustra o peculiar modus pensandi de um “intelectual orgânico”.

“Preconceito”, caso alguém ignore, é opinião prévia a um exame racional. Na deterioração geral da língua, no entanto, a palavra tornou-se um estereótipo infamante que os mais preconceituosos usam para rotular qualquer conclusão adversa a seus preconceitos, à qual alguém tenha chegado após longo estudo e ponderação.

O prof. Coutinho aderiu ao marxismo militante na entrada da juventude, antes de ter examinado senão um fragmento infinitesimal da bibliografia marxista, e, passadas quatro décadas, ainda é marxista sem ter mais que um conhecimento periférico da argumentação antimarxista; ao passo que eu, tendo feito idêntica escolha prematura, coloquei minha opção entre parênteses uns anos depois e, abstendo-me por duas décadas de emitir opiniões políticas enquanto pesava criteriosamente os argumentos pró e contra o marxismo, emergi enfim do silêncio dizendo coisas que contrariam os sentimentos juvenis em que se fossilizaram a pessoa, a vida e os neurônios do prof. Coutinho.

Entre nós dois, obviamente, o preconceituoso é ele, que nunca escreveu uma linha senão para dar retroativamente ares de requinte intelectual às crenças a que já tinha aderido de corpo, alma e carteirinha antes de fazer qualquer uso revelante do intelecto.

Isso não quer dizer que hoje ele faça desse instrumento um uso mais intenso do que na aurora da sua militância. Pelo menos ele não o utiliza o bastante para perceber que não tem sentido afirmar que entrei na mídia “com grande respaldo” e logo em seguida referir-se a mim como “uma voz isolada”, que “não é representativa de nada”… Ou bem eu, isolado, falo com a minha própria voz, ou alguém que me respalda fala pela minha boca. O prof. Coutinho que trate de decidir se quer me chamar de pau-mandado ou de excêntrico solitário. Se entre les deux, son coeur balance, isto só prova que ele quer me rotular de alguma coisa, qualquer coisa, não importa o quê.

Quando digo que o marxismo imbeciliza, é a esse tipo de fenômeno que me refiro. Nenhum esquerdista, até hoje, conseguiu dizer contra mim algo de inteligente. Ante a “voz isolada” que os atemoriza, todos têm dado um show de inépcia, de covardia e de maledicência sussurrante. Tempos atrás desafiei para um debate sobre Gramsci, inclusive oferecendo troca de links entre nossas respectivas páginas na internet, o prof. Coutinho e seus oitenta fiéis escudeiros de um site devotado à beatificação do fundador do Partido Comunista Italiano. Fugiram, como de hábito, afetando ares de dignidade ofendida, e, em pleno dia de Natal, redigiram uma carta enfezada na qual denunciavam como imposição ditatorial a oferta do intercâmbio de links.

É sempre aquela coisa do “1984”: democracia é ditadura, ditadura é democracia. Discussão é imposição, imposição é discussão. Conceito é preconceito, preconceito é conceito.

O leitor desacostumado ao trato com comunistas pode estranhar a desenvoltura, a tranqüilidade de consciência com que posam de vencedores após uma debandada tão ostensiva. Mas, creia-me, o fenômeno não se explica pela simples cara-de-pau. Eles conservam na fuga um ar triunfante porque não são intelectuais como os outros. São — e gabam-se de ser — “intelectuais orgânicos”, células de um vasto corpo combatente. Nunca agem sozinhos. Têm sempre o apoio logístico de uma rede inumerável de militantes obscuros, anônimos, que podem prosseguir o combate nos bas fonds da intriga e da calúnia quando os porta-vozes mais respeitáveis do “coletivo” se saem mal nos confrontos públicos. Quando as vozes de cima se calam, as de baixo começam o zunzum nos porões.

Agora mesmo, enquanto meus detratores mais notórios se recolhem para lamber as feridas das últimas refregas, um jornalista de São Paulo, mais comunista que a peste, deplorável farrapo humano que busca no ódio político o alívio de sua indescritível miséria de alma, está espalhando na internet avisos segundo os quais eu, Olavo de Carvalho, não trabalho há trinta anos e… vivo da exploração de mulheres. Dito em voz alta, numa tribuna acessível aos olhos do público, isso exporia o fofoqueiro ao desprezo de todos. Sussurrado no mundo virtual, pode até funcionar. A intriga propaga-se por reflexo condicionado, não por adesão consciente. Não é preciso acreditar nela para passá-la adiante, repeti-la por automatismo e acabar tomando-a como premissa implícita de julgamentos e decisões.

A manipulação de automatismos mentais torna-se ainda mais fácil numa atmosfera infectada de ódios e temores coletivos contra alvos mais ou menos distantes, só conhecidos por ouvir-dizer. O ambiente de esquerda é o caldo de cultura ideal para esse tipo de bactérias.

É por sempre contar com esse fundo de reserva que o “intelectual orgânico” pode se sentir vitorioso mesmo quando perde. Ele perde, mas o Partido não perde nunca. Não adianta nada você derrubar um desses sujeitos no ringue. Enquanto você recebe sua medalha, eles já fizeram a sua caveira entre os vizinhos. E quando você, imbuído de seu prestígio de campeão, vai pedir fiado um quilo de feijão no armazém da esquina, o português, desviando os olhos, lhe explica que os negócios vão mal e que você não tem mais crédito.

O mais pérfido em tudo isso é que o comunista famoso pode sempre sair bonito, alegando que desaprova os métodos imorais usados por seus companheiros anônimos. Mas, a partir do momento em que aceita ser um “intelectual orgânico”, ele não pode mais deixar de beneficiar-se dos métodos que desaprova. Não é uma questão de escolha. O Partido trabalha para ele como ele trabalha para o Partido, na unidade orgânica e indissolúvel da bela imagem pública com a safadeza escondida.

A imoralidade da militância comunista é intrínseca e independe de aprovação pessoal. E o máximo da imoralidade consiste precisamente em que o sujeito pode permanecer limpo no instante mesmo em que tira vantagem da sujeira praticada por outros, da qual ele nem precisa saber. É a síntese perfeita da boa consciência com a falta de consciência.

Terríveis mamães

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 24 de maio de 2001

Todo mundo sabe – e os testemunhos psicanalíticos e psiquiátricos o confirmam abundantemente – que uma grande fonte de sofrimentos humanos é a possessividade materna. Muitas mulheres têm, de fato, uma dificuldade de reconhecer em seus filhos criaturas independentes. Vêem-nos como propriedades pessoais e adornos destinados ao seu próprio embelezamento subjetivo.

A revolução psicológica dos anos 60, que muito contribuiu para minar a autoridade familiar e que é geralmente celebrada na intelectualidade progressista como um momento importante na libertação do ser humano, insistiu muito nisso.

No entanto, dessa mesma revolução psicológica nasceu a forma atual e radicalizada de reivindicação feminista que, de maneira aparentemente paradoxal, restabelece a possessividade materna em níveis jamais ambicionados pela mais ciumenta mamãe italiana ou judia – e não falo das mamães italianas e judias reais, mas da sua versão piadística grotescamente ampliada.

A reivindicação do poder materno absoluto começa a raiar o monstruoso no momento em que as mulheres, quando querem ter filhos a despeito de algum obstáculo natural, recorrem a arriscadas manipulações genéticas de moralidade duvidosa, ao passo que outras, para livrar-se dos seus depois de os ter gerado, se permitem assassiná-los em massa pelo aborto legalizado.

Em ambos esses casos extremos – opostos só em aparência –, a exigência feminina de poder sobre o próprio corpo amplia-se numa reivindicação de onipotência sobre a vida e a morte de outrem.

Em ambos os casos, a vaidade pueril e o egoísmo grosseiro sobrepõem-se imperiosamente à consideração da simples possibilidade teórica de que seus filhos possam ser algo mais do que meios genéticos de satisfação pessoal de suas mães.

A exploração da vaidade feminina por meio da lisonja é o mais velho expediente dos manipuladores ambiciosos. O antepassado de todos eles, caso alguém não se lembre, já aparece no Gênesis prometendo poder a Eva.

Apenas, a evolução da técnica médica e dos meios de influência psíquica pelos meios de comunicação de massa deu a essa promessa um alcance estratégico jamais sonhado, fazendo dela uma ameaça iminente de abolição do senso moral mais elementar em toda a fração feminina da Humanidade.

A mulher imbuída do “direito” de produzir ou matar seus filhos a seu bel-prazer é, na melhor das hipóteses, uma sociopata, na qual o desejo de posse e a ambição de poder se sobrepuseram aos sentimentos de base que constituem a condição “sine qua non” da vida familiar, da decência e do amor pessoal.

A adoção universal da nova moral ultrafeminista será uma catástrofe civilizacional de proporções assustadoras.

Muito provavelmente, a natureza feminina reagirá por si mesma contra essa brutal mutação psíquica que lhe querem impor, e a nova moral do poder materno absoluto não passará de um projeto insano, abortado nas pranchetas dos engenheiros sociais que a conceberam.

Mas a natureza, para agir com plena eficácia, tem de ser ajudada pela cultura. Uma guerra cultural tem de ser travada em defesa dos sentimentos maternos sãos e contra a oferta de fazer de cada mãe uma deusa, investida do poder de vida e morte sobre seus filhos.

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