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Ver e ouvir

 

Olavo de Carvalho

O Globo, 18 de agosto de 2001

Não há talvez melhor maneira de conhecer a psicologia dos povos do que observar a diferença entre o que os escandaliza e o que os deixa indiferentes. Numa conversa elegante, sem a menor inibição um francês usará a palavra cul — ou um português o seu equivalente vernáculo — ao passo que no Brasil de hoje qualquer senhora respeitável, que jamais se permitiria pronunciar isso em voz alta, se sentará tranqüilamente ao lado de seus filhinhos para assistir pela TV a shows de sexo que, exibidos a crianças em qualquer país da Europa, dariam processo judicial.

Esse e muitos outros indícios sugerem que o povo brasileiro, hoje, é mais sensível ao que ouve do que ao que vê. Daí o resultado da recente pesquisa de opinião, encomendada por um grupo de empresários, na qual tiveram o desprazer de descobrir que a opinião média do nosso eleitorado associa a atividade empresarial a crueldade, rapina e exploração do homem pelo homem, ao mesmo tempo que, quando ouve a palavra “socialismo”, não lhe vêm à mente senão lindas idéias de solidariedade, fraternidade, bondade e… acho bom parar porque já estou ficando comovido.

O fundamento dessa crença é simples e evidente: nunca essa opinião pública foi tão desprovida de informações sobre a realidade dos países socialistas quanto nos últimos dez anos. O desfile de dedos decepados e orelhas cortadas exibido diariamente no programa dos exilados cubanos no canal 29, dando uma idéia bem exata do que seja o tratamento dos prisioneiros políticos no jardim do Éden instalado por Fidel Castro no Caribe, fica sem efeito porque passa às 6h30m da manhã. Do mesmo modo, livros como “The perestroyka deception”, de Anatoliy Golytsin, “Jugement à Moscou”, de Vladimir Boukovski, ou o extraordinário “Viaje al corazón de Cuba”, de Carlos Alberto Montaner (para não falar do já antigo “Contra toda esperança”, de Armando Valladares, relato de duas décadas de encarceramento em Havana por delito de opinião), são mantidos cuidadosamente fora do alcance de leitores que, para pensar como crianças, têm mesmo de ser mantidos na menoridade editorial.

O conhecimento que o povo brasileiro tem do socialismo é puramente auditivo. Vem de reminiscências escolares, de discursos ouvidos de professores fanatizados que há décadas entoam o coro dos louvores a um socialismo que ninguém viu. Se querem saber como se ensaia esse coro, como se reduz à unanimidade a multidão de vozes que ressoarão depois nas cabeças das crianças e continuarão ressoando no subconsciente das crianças crescidas, basta examinar alguns critérios oficiais de seleção e capacitação de professores.

Capacitar professores, hoje em dia, consiste em ensiná-los a repetir para as criancinhas, numa língua de semi-analfabetos, slogans revolucionários imbecilizantes. Não pensem que há, nessa frase que acabo de escrever, a mínima ênfase retórica. Ela é a tradução exata e até comedida da realidade. Leiam, por exemplo, estes ensinamentos do Programa de Capacitação de Professores da Secretaria de Educação de Minas Gerais:

(1) “Existem em Minas Gerais uma grande diversidade, frutos da sua construção social.”

(2) “O populismo de Vargas e seu carisma explode no carnaval…”

(3) “Entre a segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas da República…”

(4) “Essa diferenciação, presente nos vários aspectos da vida das pessoas e a maneiras que cada uma delas têm de construir valores derivam…”

Nessa linguagem que raia o tatibitate de retardados mentais, os capacitadores transmitem aos futuros guias da infância nacional a versão oficial da História, na qual Tiradentes não foi enforcado por ser o chefe de uma insurreição e sim por ser o único pobre entre os insurretos; o único atentado terrorista digno de nota entre 1964 e a redemocratização foi o do Riocentro; o décimo terceiro salário e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (na verdade criados pelo marechal Castello Branco) foram grandes conquistas dos trabalhadores no governo Vargas; a Junta Militar formada após o impedimento do presidente Costa e Silva passa a governar desde 1964 e, last not least, a Guerra Fria é transferida para os anos 30, antecipando-se de pelo menos uma década e meia ao que se deu naquele lugarzinho oculto e ignorado que se chama “mundo real”.

Em compensação de umas quantas dúzias de probleminhas dessa ordem no tocante à história e ao português, o programa é, do ponto de vista ideológico, uma obra impecável, não lhe faltando as tiradas de praxe contra a velha UDN, a ditadura, o racismo brasileiro e os empresários em geral, bem como os louvores ao governo Goulart e a convocação aberta às lutas sociais.

A escala de prioridades é visível: para estar capacitado a lecionar história, você pode ser analfabeto e não saber nada de história. Nada disso é impedimento. Só o que interessa é a correção ideológica da mensagem que você vai transmitir às criancinhas.

É graças a esse tipo de educação que os brasileiros, hoje, vão se tornando cada vez mais incapazes de discernir a realidade da fantasia, cada vez mais propensos a aceitar como verdade de evangelho qualquer mentira boba que venha sublinhada pela ênfase emocional politicamente adequada.

O cérebro humano, conforme já demonstrava Pavlov, tem uma capacidade limitada de absorver contradições e absurdos. Ultrapassado um certo limite, ele entra num estado de torpor, de cansaço, de indiferença, no qual já não lhe interessa mais fazer qualquer distinção entre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado. Ele aí não apenas aceita tudo, mas, invertendo a reação natural, nega o que seus olhos vêem e crê firmemente no que ouve dizer. E aí a respeitável senhora, que jamais pronunciaria certas palavras em público, está pronta para assistir a shows de sexo ao vivo ao lado de seus filhinhos menores, com um sorriso de serenidade idiota nos lábios.

 

Um livro que ninguém verá

Olavo de Carvalho

Época, 18 de agosto de 2001

O terrorismo intelectual do qual ele fala não vai deixar que você o leia

Um livro de sucesso na Europa, mas que só por milagre será publicado no Brasil, e que se for publicado não será comentado, é Le Terrorisme Intellectuel de 1945 à Nos Jours, de Jean Sévillia. Se o leitor compreendeu o título, já sabe por que digo isso. O terrorismo intelectual, que consiste num conjunto de mecanismos jornalísticos e publicitários inventado por Lênin para intimidar e reduzir ao silêncio os inimigos do comunismo, ainda é bem forte na França, mas não o bastante para impedir que o livro fosse publicado, semanas atrás, pelas edições Perrin. O monstro decadente defende com bravura o velho terreno conquistado, mas se debilita dia a dia com as revelações dos Arquivos de Moscou e as defecções de ex-colaboradores que se cansaram de mentir a seu serviço, como aconteceu com os autores de O Livro Negro do Comunismo. Já no Brasil o sistema está em franco progresso, tendo conquistado praticamente todos os postos importantes na imprensa cultural, na educação e nos meios editoriais, tornando-se dia a dia mais despótico, mais arrogante e mais intolerante.

Jean Sévillia, redator-chefe do Figaro, o principal diário parisiense, passou anos vasculhando a imprensa francesa em busca de jóias da propaganda comunista travestida de jornalismo, como, por exemplo, as descaradas apologias do injustamente prestigioso Le Monde ao regime genocida de Pol Pot, os ataques coordenados da intelectualidade bem-pensante ao dissidente Victor Kravchenko (o primeiro a revelar a existência dos campos de concentração soviéticos), a tempestade de ódio que desabou sobre Aleksandr Soljenitsin quando publicou O Arquipélago Gulag. De entremeio, alguns momentos de desabafo nos quais a alma esquerdista revela sua verdadeira índole, como nesta tirada de Jean-Paul Sartre, que Jean-François Revel considerava o terrorista intelectual por excelência: “Um regime revolucionário tem de se desembaraçar de um certo número de indivíduos que o ameaçam, e não vejo outro meio de fazer isso senão a morte. Da prisão, sempre se pode sair. Os revolucionários de 1793 provavelmente não mataram o bastante”.

Na Europa o terrorismo intelectual continua, como diz Jean d’Ormesson, da Academia Francesa, a “construir seus muros de silêncio, mais difíceis de derrubar que o Muro de Berlim”. Mas esses muros já mal conseguem tapar a visão do passado, ao passo que, no Brasil, é a atualidade mesma que é sonegada, cada vez mais, ao conhecimento do público. Ao terrorismo intelectual nacional as mais belas esperanças de domínio completo são hoje permitidas. Tanto que a área sob sua jurisdição já se ampliou dos círculos intelectuais para a imprensa noticiosa, onde, com eficácia infinitamente superior à dos velhos censores do regime militar, ele veta a seu bel-prazer o acesso dos leitores brasileiros aos fatos inconvenientes, como, por exemplo, o próximo julgamento do clã Pol Pot no Camboja por um tribunal das Nações Unidas (certamente o acontecimento judiciário mais importante desde a condenação dos nazistas em Nuremberg) ou a prisão recente de mais um bispo pela polícia política chinesa, que eleva para 14 o número de dignitários católicos (sem contar padres e leigos aos montões) mantidos prisioneiros, sob tortura, nos cárceres do regime tão apreciado por nosso eterno candidato presidencial, o católico, certamente devotíssimo, Luiz Inácio Lula da Silva.

Uma máquina que vai funcionando tão bem, e cuja operação exige que ninguém perceba que é uma máquina, mas que todos imaginem que gritos e silêncios se coordenam pela somatória impremeditada de puras coincidências, não há de querer que seus mecanismos internos sejam de repente divulgados, analisados, postos a nu. Ante a mais mínima ameaça de tradução do livro de Jean Sévillia, folhas de parreira choverão miraculosamente, e o terrorismo intelectual continuará encoberto, invisível, disfarçado de anônima e espontânea “opinião pública”.

Breve história do machismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 16 de agosto de 2001

As mulheres sempre foram exploradas pelos homens. Se há uma verdade que ninguém põe em dúvida, é essa. Dos solenes auditórios de Oxford ao programa do Faustão, do Collège de France à Banda de Ipanema, o mundo reafirma essa certeza, talvez a mais inquestionada que já passou pelo cérebro humano, se é que realmente passou por lá e não saiu direto dos úteros para as teses acadêmicas.

Não desejando me opor a tão augusta unanimidade, proponho-me aqui arrolar alguns fatos que podem reforçar, nos crentes de todos os sexos existentes e por inventar, seu sentimento de ódio ao macho heterossexual adulto, esse tipo execrável que nenhum sujeito a quem tenha acontecido a desventura de nascer no sexo masculino quer ser quando crescer.

Nosso relato começa na aurora dos tempos, em algum momento impreciso entre Neanderthal e Cro-Magnon. Nessas eras sombrias, começou a exploração da mulher. Eram tempos duros. Vivendo em tocas, as comunidades humanas eram constantemente assoladas pelos ataques das feras. Os machos, aproveitando-se de suas prerrogativas de classe dominante, logo trataram de assegurar para si os lugares mais confortáveis e seguros da ordem social: ficavam no interior das cavernas, os safados, fazendo comida para os bebês e penteando os cabelos, enquanto as pobres fêmeas, armadas tão-somente de porretes, saíam para enfrentar leões e ursos.

Quando a economia de coleta foi substituída pela agricultura e pela pecuária, novamente os homens deram uma de espertinhos, atribuindo às mulheres as tarefas mais pesadas, como a de carregar as pedras, domar os cavalos, abrir sulcos na terra com o arado, enquanto eles, os folgadinhos, ficavam em casa pintando potes e brincando de tecelagem. Coisa revoltante.

Quando os grandes impérios da antiguidade se dissolveram, cedendo lugar aos feudos perpetuamente em guerra uns com os outros, estes logo constituíram seus exércitos particulares, formados inteiramente de mulheres, enquanto os homens se abrigavam nos castelos e ali ficavam no bem-bom, curtindo os poemas que as guerreiras, nos intervalos dos combates, compunham em louvor de seus encantos varonis.

Quando alguém teve a extravagante idéia de cristianizar o mundo, tornando-se necessário para tanto enviar missionários a toda parte, onde arriscavam ser empalados pelos infiéis, esfaqueados pelos salteadores de estradas ou trucidados pelo auditório entediado com os seus sermões, foi novamente sobre as mulheres que recaiu o pesado encargo, enquanto os machos ficavam maquiavelicamente fazendo novenas ante os altares domésticos.

Idêntica exploração sofreram as infelizes por ocasião das cruzadas, onde, armadas de pesadíssimas armaduras, atravessaram os desertos para ser passadas a fio d’espada pelos mouros (ou antes, pelas mouras, já que o machismo dos sequazes de Maomé não era menor que o nosso). E as grandes navegações, então! Em demanda de ouro e diamantes para adornar os ociosos machos, bravas navegantes atravessavam os sete mares e davam combate a ferozes indígenas que, quando as comiam, – era porca miséria! – no sentido estritamente gastronômico da palavra.

Finalmente, quando o Estado moderno instituiu o recrutamento militar obrigatório, foi de mulheres que se formaram os exércitos estatais, com pena de guilhotina para as fujonas e recalcitrantes, tudo para que os homens pudessem ficar em casa lendo A Princesa de Clèves.

Há milênios, em suma, as mulheres morrem nos campos de batalha, carregam pedras, erguem edifícios, lutam com as feras, atravessam desertos, mares e florestas, sacrificando tudo por nós, os ociosos machos, aos quais não sobra nenhum desafio mais perigoso que o de sujar nossas mãozinhas nas fraldas dos nossos bebês.

Em troca do sacrifício de suas vidas, nossas heróicas defensoras não têm exigido de nós senão o direito de falar grosso em casa, de furar umas toalhas de mesa com pontas de cigarros e, eventualmente, de largar um par de meias no meio da sala para a gente catar.

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