Artigos

Duas denúncias

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde (São Paulo), 25 out. 2001

São tantas as denúncias que me chegam, relatando perseguições e vexames impostos a pessoas que por um motivo ou outro se tornaram incômodas ao “establishment” esquerdista, que se eu fosse reproduzi-las uma a uma nestes artigos não me sobraria espaço para mais nada. Umas vêm com pedido de sigilo — não são denúncias, são desabafos –, outras com a desencantada confissão de que os fatos, mil e uma vezes relatados aos jornais mediante cartas e e-mails, não despertaram neles o menor interesse. São um mostruário de sofrimentos politicamente inconvenientes, uma galeria de discriminados e excluídos de um tipo especial, sem ONG que os defenda nem verbas publicitárias que os embelezem. Não entram nos catálogos de males sociais padronizados nem se beneficiam de indenizações e desagravos estatais. Não tiram jamais o sono dos profissionais dos bons sentimentos.

Algumas dessas mensagens são estampadas na minha homepage, http://www.olavodecarvalho.org. Outras acabam esquecidas e se dissolvem na corrente geral dos queixumes eletrônicos. Umas quantas, aliás, não vêm nem por e-mail, mas por telefone, por medo do testemunho escrito, ou batem à minha porta para uma trêmula confissão entre quatro paredes.

Mas, nesta semana, chegaram duas que não posso deixar passar sem registro público.

Uma é a do médico cubano Miguel Soneira e de sua esposa Letícia, que, residentes em Pernambuco desde 1998, vêm tentando em vão recuperar sua filha Anabel, de 14 anos, que já tem visto da nossa Embaixada em Havana para residir no Brasil mas é retida em Cuba, contra a vontade dos pais, por um governo que há quem diga ser a encarnação viva da bondade cristã.

Se Anabel tivesse explodido um trem, assaltado um banco, esfaqueado meia dúzia de reacionários, haveria petições assinadas por celebridades, cartazes de protestos diante das embaixadas, missas solenes nas catedrais e noites de vigília nos estabelecimentos bem-pensantes, exigindo sua libertação.

Mas Anabel não tem os méritos criminais do sr. Antonio Negri ou do sr. José Rainha. Portanto, ela poderia subscrever o verso de Rilke: “Quem, se eu gritasse, me ouviria entre as coortes de anjos?”

No seu desespero, ela chegou a escrever ao próprio Fidel Castro, achando que ele compreenderia a situação. De fato ele a compreendeu. Compreendeu tão bem que jamais respondeu a carta. Afinal, resolver o problema seria admitir que o problema existe. O silêncio autodignificante do caudilho não se deixará perturbar por um choro de criança.

Anabel continua esperando, mas sua resistência emocional começa a ceder. Sua avô paterna, com quem mora em Havana, diz que a neta teve uma forte crise depressiva. Um laudo psiquiátrico do Hospital Santos Suárez, de Havana, alertando que a menina corre risco de suicídio, recomenda “facilitar a união com a figura materna para obter a recuperação emocional da menor”.

O outro caso é o da professora Maria da Piedade de Eça e Almeida. Amiga do ex-prefeito de Campinas, SP, Antonio Carlos da Costa Santos, o Toninho, Maria da Piedade recebeu dele um convite para trabalhar — gratuitamente — no Conselho de Segurança do município. Aceitou. Durante seis meses, preparou as pautas de todas as reuniões, coordenou as atas e, pagando tudo de seu próprio bolso, instalou o Conselho em uma sala com computadores. Tendo testemunhado certas irregularidades cabeludas na administração municipal petista, comunicou-as ao prefeito — primeiro, pessoalmente, depois, em artigos de imprensa. Toninho não fez nada para remediar os males, mas, no dia 10 de setembro último, à tarde, escreveu a Maria da Piedade um bilhete de agradecimento, mostrando que pelo menos estava consciente da veracidade das denúncias. À noite, foi assassinado numa avenida perto do Shopping Iguatemi. Três dias depois, Maria da Piedade era acusada, por uma comissão de investigações da Prefeitura, de haver falsificado documentação universitária para poder ser admitida no Conselho de Segurança. Licenciada da USP para tratamento médico por doença grave, Maria tem e exibe diplomas universitários autênticos, mas, mesmo que não os tivesse, o fato é que por lei nenhum grau universitário se requer dos membros do Conselho. Por que alguém, convidado a ocupar um cargo sem remuneração, haveria de falsificar para isso documentos que o cargo não exige? A comissão, não podendo explicar hipótese tão esquisita, partiu para a imputação mais grave, colocando Maria da Piedade na lista de suspeitos pelo assassinato, sugestão que a polícia não aceitou mas que nem por isso deixou de ser reproduzida com grande alarde num jornal paulistano de notórias simpatias esquerdistas.

PS – Logo após a publicação deste artigo, o deputado Severino Cavalcânti (PPB-PE) levou o caso Anabel ao Congresso e daí para a Conferência Interamericana de Ministros. Só então o restante da imprensa nacional começou a se interessar pelo assunto. Mas tudo terminou bem: o governo cubano, pressionado, finalmente consentiu em liberar Anabel.

Guerra de religião?

Olavo de Carvalho


Época, 20 de outubro de 2001

Para Bin Laden, o Corão sempre foi apenas um pretexto

Em 24 de setembro Bin Laden disse que as forças americanas entravam no Afeganistão “sob a bandeira da Cruz”. Dias depois, chamou George W. Bush de “chefe dos infiéis”. Só isso já basta para evidenciar que sua alegação de “guerra santa” nunca passou de um subterfúgio, de um disfarce ideológico.

Segundo o Corão, ninguém pode ser ao mesmo tempo cristão e infiel. Cristãos e judeus estão claramente incluídos na categoria corânica de “povos do Livro” (ahl al-kitab), reconhecidos como uma espécie de muçulmanos avant la lettre. Sua salvação está assegurada, em termos inequívocos, na Sura V:69: “Os que crêem (no Corão), os que seguem as escrituras judaicas, e os sabeanos e os cristãos – e quem quer que acredite em Deus e no Dia do Juízo e faça o bem –, esses nada temam, pois não serão afligidos”.

Um muçulmano consciente pode alegar que a mensagem recebida de Deus pelos “povos do Livro” é incompleta, que eles não a seguiram corretamente ou até que a deturparam, mas não que são “infiéis” ou “idólatras”.

Na verdade, o Islã, acusado de sectarismo estreito, é a mais ecumênica das religiões: na sua doutrina da sucessão dos profetas, de Adão a Maomé, estão incluídas e legitimadas todas as religiões monoteístas, concebidas como patamares históricos de uma revelação única que culmina na “Laylat-al-Qadr”, a “Noite do Poder”, quando o Arcanjo Gabriel começa a ditar a Maomé os versículos do Corão. “Infiéis”, a rigor, são aí somente os ateus, os idólatras (politeístas) e aqueles monoteístas que, de má-fé, radicalizem as diferenças entre suas doutrinas respectivas e a mensagem corânica para denegrir esta última, em vez de reverenciar o mistério da unidade por trás da diversidade.

Ao chamar Bush ora de cristão, ora de infiel, Bin Laden mostrou não falar como um religioso sério, mas como alguém que quer dizer algo contra seu adversário e, na fúria, escolhe qualquer coisa a esmo, acabando por apelar a rótulos que se contradizem.

Seria preciso mais para provar que a oposição desse homem ao Ocidente nunca foi inspirada em motivos corânicos válidos, mas sim em alguma outra coisa, em cuja propaganda o Corão foi chamado a servir de ornamento retórico para encobrir sob altas motivações religiosas uma ambição política soberbamente má?

Porém, na mesma medida, essas considerações impugnam a tirada antimuçulmana com que o historiador Paul Johnson deu substancial ajuda involuntária tanto aos inimigos do Islã quanto aos de Israel e do Ocidente. Pretendendo demonstrar a radical hostilidade do Islã às demais religiões, especialmente ao cristianismo, Johnson citou a Sura IX:5: “Matai os idólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai de emboscadas contra eles”. Mesmo em seu sentido mais geral possível, o termo “idólatras” não se aplica aos povos monoteístas. Nessa passagem em especial, ele se refere aos politeístas de Meca mencionados no versículo anterior, que “fizeram um pacto contigo (Maomé) e depois faltaram ao combinado”. A esses Maomé deveria perseguir, capturar e matar, como de fato ele fez e é fato historicamente bem conhecido. Porém, mesmo nesse caso a autorização para o uso da força não era ilimitada, pois Maomé, ao entrar vitorioso em Meca, fez cessar imediatamente qualquer perseguição aos inimigos, condenando à morte apenas os cinco principais e perdoando todos os outros – com certeza a mais branda reparação de guerra de todos os tempos. Portanto, um dos dois interpretou errado o versículo: ou Maomé, ou Paul Johnson. É verdade que uma leitura parecida com a de Johnson foi usada às vezes por chefes muçulmanos para incitar à violência contra os cristãos, mas é óbvio que então se afastaram bastante da interpretação dada em atos pelo Profeta e, como no Islã as ações e palavras do Profeta são a fonte máxima de autoridade na exegese do Corão , é claro que esses homens, como Bin Laden, não eram muçulmanos muito ortodoxos.

Jesus e a pomba de Stalin

Olavo de Carvalho

O Globo, 20 de outubro de 2001

Quando Cristo disse: “Na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que deveríeis amar”, Ele ensinou da maneira mais explícita que os sentimentos não são guias confiáveis da conduta humana: antes de podermos usá-los como indicadores do certo e do errado, temos de lhes ensinar o que é certo e errado. Os sentimentos só valem quando subordinados à razão e ao espírito.

Razão não é só pensamento lógico: reduzi-la a isso é uma idolatria dos meios acima dos fins, que termina num fetichismo macabro. Razão é o senso da unidade do real, que se traduz na busca da coesão entre experiência e memória, percepções e pensamentos, atos e palavras etc. A capacidade lógica é uma expressão parcial e limitada desse senso. Também são expressões dele o senso estético e o senso ético: o primeiro anseia pela unidade das formas sensíveis, o segundo pela unidade entre saber e agir. Tudo isso é razão.

Espírito é aquilo que inspira a razão a buscar a chave da unidade da visão do mundo no supremo Bem de todas as coisas e não num detalhe acidental qualquer, tomado arbitrariamente como princípio de explicação universal, como algumas escolas filosóficas fazem com a linguagem, outras com a História, outras com o inconsciente etc. O espírito é o topo do edifício da razão, que por ele se abre para o sentido do Bem infinito, libertando-se da tentação de enrijecer-se num fetichismo trágico ou utópico.

Nem a razão nem o espírito se impõem. Só nos abrimos a eles por livre vontade. A abertura para a razão vem essencialmente da caridade, do amor ao próximo, pelo qual o homem renuncia a impor seu desejo e aceita submeter-se ao diálogo, à prova, ao senso das proporções e, em suma, ao primado da realidade. A abertura para a razão é educação. Educação vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da maturidade. O homem maduro — o spoudaios de que fala Aristóteles — é aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua comunidade para o bem. Este ponto é crucial: ninguém pode guiar a comunidade no caminho do bem antes de tornar-se maduro no sentido de Aristóteles. Líderes revolucionários e intelectuais ativistas são apenas homens imaturos que projetam sobre a comunidade seus desejos subjetivos, seus temores e suas ilusões pueris, produzindo o mal com o nome de bem.

A abertura ao espírito é um ato de confiança prévia no bem supremo da existência, ato sem o qual a razão perde o impulso ascendente que a anima e, fugindo do infinito, se aprisiona em alguma pseudototalidade, mais alienante ainda que o egoísmo subjetivo inicial. O nome religioso desse ato de confiança é fé, mas a confiança que eleva a razão à busca do infinito transcende o sentido da mera adesão a um credo em particular e tem antes uma dimensão antropológica: tudo o que o ser humano fez de bom, fez movido pela fé e por meio da razão.

O espírito e a razão educam os sentimentos. Os sentimentos do homem amadurecido pelo espírito e pela razão são diferentes dos do homem imaturo, porque aquele ama o que deve amar e odeia o que deve odiar, enquanto o segundo ama ou odeia às tontas, segundo as inclinações arbitrárias da sua subjetividade moldada pelas pressões e atrativos do meio social.

Mas o que atrai a alma para a abertura ao espírito e à razão é a esperança, e o despertar da esperança é um mistério. Homens submetidos à mais dura opressão e aos mais tormentosos sofrimentos conservam sua esperança, enquanto outros a perdem à primeira frustração de um desejo tolo. A esperança não está sob o nosso controle. Seu advento depende do espírito mesmo, que sopra onde quer. Todos os enredos humanos, da vida e da ficção, giram em torno do mistério da esperança.

A esperança, a fé e a caridade educam os sentimentos para o amor ao que deve ser amado. O culto idolátrico dos sentimentos é um egocentrismo cognitivo, um complexo de Peter Pan que recusa a maturidade. Quanto mais o homem busca afirmar sua liberdade por meio da adesão cega a seus sentimentos e desejos, mais se torna escravo da tagarelice ambiente. O caminho da liberdade é para cima, não para baixo. Libertar-se não é afirmar-se: é transcender-se.

Das várias formas de escravidão a que o homem se sujeita pelo culto dos sentimentos, a pior é a escravidão às palavras. Por meio do falatório em torno o homem pode ser adestrado para ter certos sentimentos e emoções à simples audição de determinadas palavras, independentemente dos fatos e do contexto. Paz e guerra, por exemplo, suscitam reações automáticas. Por isso as massas imaturas aceitam com a maior credulidade os novos regimes de governo que prometem acabar com as guerras e instaurar a paz. Mas é só nominalmente que guerra significa morticínio e paz significa tranqüilidade e segurança. As guerras, no século XX, mataram 70 milhões de pessoas. É muita gente. Mas 180 milhões, mais que o dobro disso, foram mortos por seus próprios governos, em tempo de paz e em nome da paz. O homem maduro sabe que as relações entre guerra e paz são ambíguas, que só um exame criterioso da situação concreta permite discernir a dosagem do bem e do mal misturados em cada uma delas a cada momento. Ele sabe que a Pomba da Paz, oferecida à adoração infantil nas escolas, foi um desenho encomendado a Pablo Picasso por Josef Stalin com o intuito de fazer com que o símbolo da Pax soviética — a ordem social totalitária construída sobre trabalho escravo, prisões em massa e genocídio — se sobrepusesse, na imaginação dos povos, ao símbolo cristão do Espírito Santo. O homem maduro sabe que, tanto quanto a Pomba da Paz, também manifestos pela paz, discursos pela paz e até missas pela paz são, muitas vezes, blasfêmias e armas de guerra. No dicionário, os sentidos da guerra e da paz estão nitidamente distintos, mas o homem maduro não se refugia da complexidade das coisas no apelo pueril a absolutos verbais.

Igualdade, liberdade, direito, ordem, segurança e milhares de outras palavras foram também incutidas na mente das massas como programas de computador para acionar nelas automaticamente as emoções desejadas pelo programador, fazendo com que amem o que deveriam odiar e odeiem o que deveriam amar. Até a esperança, chave da fé e da caridade, se torna aí uma arma contra o espírito, quando se coisifica na expectativa de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa ou, no fim das contas, de ganhar mais dinheiro. Jesus deixou claro que não era nenhuma dessas esperanças a que Ele trazia. Era a esperança de fazer de cada um de nós um novo Cristo, encarnação e testemunha do espírito. Quem aceitar menos que isso só ganhará, em vez da paz de Cristo, uma bandeirinha da ONU com a pomba de Stalin.

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