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Estudar antes de falar

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de agosto de 2013

          

O caminho mais curto para a destruição da democracia é fomentar o banditismo por meio da cultura e tentar controlá-lo, em seguida, pelo desarmamento civil.  A esquerda nacional tem trilhado coerentemente essa dupla via há pelo menos cinco décadas, e sempre soube perfeitamente qual seria o resultado: o caos social, seguido de endurecimento do regime se ela estiver no poder, de agitação insurrecional se estiver fora dele.
Essa estratégia é antiga, clássica, imutável, mas os pretextos com que se legitima conforme as conveniências do momento têm sido variados o bastante para desnortear a plateia, que se entrega a animadas e às vezes ferozes discussões sobre os pretextos mesmos e nunca atina com a unidade do projeto por trás deles. Às vezes, como acontece no Brasil, nem chega a perceber que entre as duas vias simultâneas existe alguma relação.
Pessoas mentalmente covardes vendem a mãe para não correr o risco de ser rotuladas de “teóricas da conspiração”. Rebaixam-se ao ponto de defender de unhas e dentes a “teoria das puras coincidências”, segundo a qual as ações acontecem sem autores.
Imaginem então o medo que essa gente tem de reconhecer algo que no resto do mundo já é obviedade patente: que o comunismo não morreu em 1990, que está hoje mais forte que nunca, sobretudo na América Latina. Treze anos atrás, quando Jean-François Revel publicou seu último livro, La Grande Parade, ninguém na Europa ou  Estados Unidos o contestou quanto a esse ponto, que no Brasil ainda é um segredo esotérico.
Há até quem negue que Dilma ou Lula sejam comunistas, mas faz isso porque não sabe exatamente o que é um comunista e, como em geral os liberais, imagina que é questão de ideais e ideologias. Na verdade, um sujeito é comunista não porque creia em tais ou quais coisas, mas porque ocupa um lugar numa organização que age como parte ou herdeira da tradição revolucionária comunista, com toda a pletora de variedades e contradições ideológicas aí contida.
A unidade do movimento comunista, sobretudo desde Antonio Gramsci, da New Leftf americana e do remanejamento dos partidos comunistas após a dissolução da URSS, é  mais de tipo estratégico do que ideológico.
Na verdade, esse movimento, cuja extinção a queda da União Soviética parecia anunciar como iminente e inevitável, conseguiu prosperar e crescer formidavelmente desde o começo dos anos 90 só porque abdicou de toda autodefinição doutrinal homogênea e aprimorou a técnica de articular numa unidade de ação estratégica as mais variadas correntes e dissidências cuja convivência era impossível até então. Convicções, portanto, sinceras ou fingidas, não têm aí a mais mínima importância.
Para um sujeito falar com alguma propriedade sobre o movimento comunista, deve antes ter estudado as seguintes coisas:
(1) Os clássicos do marxismo: Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao Dzedong.
(2)  Os filósofos marxistas mais importantes: Lukács, Korsch, Gramsci, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Lefebvre, Althusser.
(3)  Main Currents of Marxism, de Leszek Kolakowski.
(4)  Alguns bons livros de história e sociologia do movimento revolucionário em geral, como Fire in the Minds of Men, de James H. Billington, The Pursuit of the Millenium, de Norman Cohn, The New Science of Politics, de Eric Voegelin.
(5)  Bons livros sobre a história dos regimes comunistas, escritos desde um ponto de vista não-apologético.
(6)  Livros dos críticos mais célebres do marxismo, como Eugen von Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, Raymond Aron, Roger Scruton, Nicolai Berdiaev e tantos outros.
(7) Livros sobre estratégia e tática da tomada do poder pelos comunistas, sobre a atividade subterrânea do movimento comunista no Ocidente e principalmente sobre as “medidas ativas” (desinformação, agentes de influência), como os de Anatolyi Golitsyn, Christopher Andrew, John Earl Haynes, Ladislaw Bittman, Diana West.
(8)  Depoimentos, no maior número possível, de ex-agentes ou militantes comunistas que contam a sua experiência a serviço do movimento ou de governos comunistas, como Arthur Koestler, Ian Valtin, Ion Mihai Pacepa, Whittaker Chambers, David Horowitz.
(9)  Depoimentos de alto valor sobre a condição humana nas sociedades socialistas, como os de Guillermo Cabrera Infante, Vladimir Bukovski, Nadiejda Mandelstam, Alexander Soljenítsin, Richard Wurmbrand.
É um programa de leitura que pode ser cumprido em quatro ou cinco anos por um bom estudante. Não conheço, na direita ou na esquerda brasileiras, ninguém, absolutamente ninguém que o tenha cumprido.
Há tanta gente neste país querendo dar palpite no assunto, quase sempre com ares de sapiência, e ninguém, ou praticamente ninguém, disposto a fazer o esforço necessário para dar alguma substância às suas palavras.
Nenhum esquerdista honesto o fará sem abjurar da sua crença para sempre. Nenhum direitista, sem reconhecer que era um presunçoso, um bocó e, em muitos casos, um idiota útil – às vezes ainda mais útil e mais idiota do que a massa de manobra esquerdista.
A esquerda prospera na exploração da ignorância, própria e alheia. Onde quer que ela exerça a hegemonia, impera o mandamento de jamais ler as obras de adversários e críticos, mas espalhar versões deformadas e caricaturais das suas ideias e biografias, para que a juventude militante possa odiá-los na ilusão de conhecê-los. Universidades que professam dar cursos de marxismo capricham nesse ponto até o limite do controle mental puro e simples.
A direita, bem, a direita cultiva suas formas próprias de auto-ilusão, das quais já falei bastante neste mesmo jornal. Talvez volte ao assunto em outro artigo.

Plebiscito em Copacabana

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de agosto de 2013

          

Se Dona Dilma Rousseff queria um plebiscito, já o teve: o recente encontro entusiástico e triunfal do Papa Francisco com três milhões de fiéis na Praia de Copacabana, a maior manifestação de massas de toda a nossa história, mostrou que o povo brasileiro ama tudo o que a presidenta odeia e odeia tudo o que ela ama: feminismo, gayzismo, abortismo, comunismo, tudo o que é anticristão só sobrevive neste país graças à proteção do governo e de bilionários imbecis. Não tem raízes na nossa sociedade, não tem eco na alma popular, não tem nada a ver com a nossa vida. Quem tem é a Igreja, quem tem é o Papa.
A Presidência da República e a dita “grande mídia” sabem perfeitamente disso, mas querem dar a impressão de que a “Marcha das Vadias” é tão representativa da opinião nacional, tão legítima e tão digna de carinhosa atenção, quanto a grandiosa e multitudinária proclamação popular de adesão incondicional aos valores da fé cristã.
É assim que uma minoria ínfima, estrambótica e grotesca adquire, artificialmente, foros de respeitabilidade, no instante mesmo em que se avilta a si própria com micagens dignas de doentes mentais e violações ostensivas do Código Penal (art. 280, “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”) e da lei federal 7716/89, art. 20 (“praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito de religião”).
Essa legitimação forçada vai espalhando entre as vítimas o sentimento de inibição que as impede de reagir contra a ofensa e as vai habituando, pouco a pouco, mas cada vez mais velozmente, a curvar-se caladas ante os mais cínicos e despudorados, até reconhecê-los, por fim, como únicas encarnações concebíveis do bem e da autoridade moral. É esse processo de autocastração voluntária induzida que a socióloga alemã Elizabeth Noëlle-Neumann descreveu como “Espiral do Silêncio”.
Quando Dona Dilma, com a mesma prótese de sorriso inócuo encaixilhada na boca, posa para fotografias ao lado do Papa e das “Vadias”, ela nos ensina que na democracia a fé e o crime são igualmente valiosos e dignos de respeito. E ela faz isso com plena consciência de que algum gemido de protesto, por mais discreto e inaudível que seja, será imediatamente estigmatizado como “terrorismo de direita”, anunciando para breve – muito breve, nas esperanças do sr. Mauro Santayana – o encarceramento do impudente e imprudente reclamão.
Mas o aparente indiferentismo democrático, por mais asqueroso que seja em si mesmo, é uma pura camuflagem provisória. Por baixo dele, Dona Dilma e seu governo já mostraram de que lado estão. Para sabê-lo basta perguntar: quanto se esforçaram pela cristianização do povo e quanto pela vitória de tudo o que as “Vadias” representam?
A lógica aí subentendida é a mesma que enaltece a prática do aborto em massa, mas pune como obscena incitação ao ódio a divulgação de vídeos que simplesmente descrevem o que é um aborto. Assim, gradativamente, tudo o que é abjeto e monstruoso vai-se transformando primeiro em coisa permitida, em seguida protegida, por fim obrigatória.
Essas tendências começam a germinar nos bas fonds da classe universitária e do ativismo organizado, quase inconscientemente de início, mas a velocidade da sua transformação postiça em “clamor público” é cada vez maior. O próprio elemento caricatural e grotesco que carregam em si inerentemente protege-as contra qualquer reação inicial, de modo que elas vão crescendo até o ponto em que toda reação se torna inviável.
Tudo o que os conservadores e a população em geral consideram demasiado absurdo, demasiado louco para ser verdade, acaba acontecendo precisamente porque julgavam que era impossível.
A transmutação do criminoso em vítima e do denunciante em criminoso torna-se por fim regra geral, até que o país inteiro se transforme numa societas sceleris onde só criminosos psicopatas são admitidos nas altas esferas da fama e do poder.
As grandes mudanças da mentalidade das massas são, por definição, invisíveis e insensíveis para as próprias massas. Tanto mais invisíveis e insensíveis quanto mais velozes. Apenas o  recuo no tempo permite ao historiador, depois do fato consumado, retraçar a transmutação violenta e radical que levou milhões de pessoas a aceitar passivamente aquilo que de início lhes parecia não só horroroso como impensável.
Alguém, no Facebook, lembrou o contraste entre dois Brasis: aquele que anos atrás protestou em massa quando um único fanático anticatólico chutou diante das câmeras de TV uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, e aquele que agora contempla inerme e passivo o espetáculo das “Vadias” num canto da praia de Copacabana lotada de fiéis.
O povo brasileiro que expressa entre gritos e lágrimas o seu amor ao Papa e a Nosso Senhor Jesus Cristo já é também o mesmo que emudece, com um sentimento que se aproxima do temor reverencial, diante do ataque mais brutal já desferido contra a religião católica neste país.
Talvez Dona Dilma, não sem alguma perspicácia, considere que este segundo aspecto é, entre os resultados do plebiscito de Copacabana, a parte mais significativa.

Todos os caminhos levam a Olavo

Paulo Briguet

Revista Wink Mag #20, agosto de 2013

Tudo começou por volta de 1996, quando caiu em minhas mãos o artigo de um tal Olavo de Carvalho. Li o texto uma, duas, três vezes – e xinguei alto. Como é que alguém ousava dizer aquelas coisas sobre intelectuais tão importantes da esquerda brasileira? Como é que alguém podia questionar os maravilhosos ideais da revolução socialista? Como é que alguém tinha a petulância de chamar o comunismo de “regime assassino”? Como é que esse mesmo reacionário tinha coragem de falar em Aristóteles, Platão, Leibniz, Nietzsche, Marx, literatura universal e cristianismo como se fosse um grande conhecedor de cada um desses autores e assuntos?

E o mais revoltante: o cara escrevia bem. Na época, aos 25 anos, eu era um militante esquerdista convicto. Sem que os meus companheiros de sindicato e partido desconfiassem de nada, viciei-me nos textos do tal Olavo. Lia-os escondido. Encontrei “O Imbecil Coletivo” numa livraria da cidade e, sem coragem de comprar o livro, passei a lê-lo a prestações, algumas páginas por dia, na livraria mesmo. Eu ainda lia e xingava, mas também me encantava com o poder dos argumentos, a fluência do estilo e a inegável erudição do autor.

Jamais poderia imaginar que, 17 anos depois, seria convidado a passar uma semana na casa do filósofo Olavo de Carvalho, em Richmond, Estados Unidos, para falar com ele e outros quatro escritores sobre o esvaziamento espiritual da cultura brasileira. Ao entrar na biblioteca de Olavo, onde a quantidade de livros só é menos espantosa do que o fato de que realmente foram lidos e compreendidos pelo dono, senti que a minha vida, de certa forma, se encaminhara para aquele momento. A partir daqueles seis dias de intenso debate e reflexão, eu nunca mais me permitiria transigir em termos de honestidade intelectual. E honestidade intelectual, segundo o professor Olavo, define-se de maneira simples: “Nunca fingir que você sabe o que não sabe e não sabe o que sabe”.

Sei, por exemplo, o que é o Foro de São Paulo. Em 1990, lideranças da esquerda, comandadas pelo sr. Luiz Inácio Lula da Silva, se reuniram na capital paulista com o objetivo explícito de recuperar na América Latina o poder que os regimes comunistas haviam perdido no Leste Europeu no ano anterior, com a queda do Muro de Berlim. A estratégia da esquerda latino-americana não seguiria mais o modelo bolchevique de tomada do poder e terror policial; o caminho seria o da conquista gradual dos corações e mentes, através de uma cuidadosa dominação da cultura, inspirada por Antonio Gramsci, o Maquiavel moderno. A tal campanha pela “ética na política”, durante o governo Collor, era uma das etapas desse processo de revolução cultural, política e, finalmente, social.

Hoje a maioria dos países da América Latina é governada por líderes esquerdistas profundamente identificados e comprometidos com o Foro de São Paulo. Durante muitos anos, Olavo de Carvalho foi ridicularizado como “louco” e adepto de “teorias da conspiração”, enquanto a cultura brasileira, incluindo seus aspectos políticos, era vampirizada pela esquerda gramsciana e forneceria a base de apoio para o governo cleptopopulista dos últimos dez anos. O conservadorismo e o liberalismo brasileiro foram reduzidos a pó – no sentido de que não possuem a menor força e presença intelectual em nosso país.

Mas a resistência sempre surgirá. Foi assim no Leste Europeu e será assim na América Latina Em Richmond, tive a honra de me encontrar com alguns raros intelectuais que não se deixaram seduzir pela mentalidade revolucionária: Rodrigo Gurgel, o melhor crítico literário em atividade no país, responsável pela reabilitação de escritores esquecidos e o desmascaramento de medalhões superestimados; Ângelo Monteiro, autor do antológico ensaio “A lavação da burra” e nome de destaque na procura pela identidade brasileira por meio da linguagem poética, na tradição de Jorge de Lima, Alberto da Cunha Melo e Bruno Tolentino; o cientista político, jornalista e tradutor Bruno Garschagen, nome de proa na defesa das liberdades individuais e estudioso do conservadorismo político; e o professor e filósofo português Miguel Bruno Duarte, implacável crítico da dominação ideológica esquerdista nas universidades lusitanas.

Como faço questão de dizer sempre, estive em Richmond mais como observador e representante de um gênero literário evidentemente menor, a crônica. Faltaram lá outros nomes que ainda alimentam esperanças de dias melhores na cultura brasileira: o jornalista Reinaldo Azevedo; o padre Paulo Ricardo, os escritores Flavio Morgenstern, Felipe Moura Brasil e Gustavo Nogy; o professor José Carlos Zamboni; e até mesmo o cantor e compositor Lobão. De qualquer modo, foi uma experiência marcante, um divisor de águas na vida de qualquer cronista de província. Aprendi muito. Ouvi muito. Falei pouco – mesmo assim, bastante.

Richmond, na Virgínia, foi a capital dos Estados Confederados durante a Guerra da Secessão. As tropas de Lincoln reduziram a cidade a cinzas no final do conflito. Durante nossas conservações – que ficaram documentadas em vídeo –, Bruno Garschagen comparou o atual estado da cultura brasileira com os versos desesperados de T. S. Eliot em “The Waste Land” (A Terra Desolada). Outra imagem evocada por Garschagen foi a do Titanic gradualmente tomado pelas águas geladas. Pessoalmente, acredito que a Richmond arrasada na Guerra Civil oferece-nos uma precisa metáfora do Brasil da era petista. Diz a lenda que restou apenas uma casa em pé em Richmond na época: justamente a casa onde hoje se encontra o Museu de Edgar Allan Poe, o mais ilustre filho da cidade. Na frente da casa existe um carvalho, como se fosse uma testemunha das dores e tragédias que ali se passaram.

Também há um carvalho na frente da casa do professor Olavo. À sombra da velha árvore, os visitantes se reuniam todos os dias daquela semana inesquecível. “Eu gostaria que todo mundo falasse e escrevesse com o coração nas mãos”, disse o nosso anfitrião numa dessas conversas, ao lado de sua querida família que tão bem nos recebeu. Ali ele contou várias histórias sobre sua vida – narrativas que certamente dariam um belo livro. Ali ele falou com carinho sobre Arno Preis e João Leonardo, os dois melhores amigos de meu pai, mortos após aderirem à luta armada nos anos 70. Ali a minha vida recomeçou mais uma vez – a exemplo do dia em que me casei e do dia em que nasceu meu filho. De agora em diante, só escreverei com meu coração nas mãos. Aos 43 anos, já sei quem sou. Obrigado, Olavo.

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