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Em tempo

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de outubro de 2005

No artigo da semana passada, critiquei o manifesto dos clubes militares por ater-se à denúncia dos delitos mais vistosos e de menor gravidade, omitindo o crime de alta traição que o presidente da República confessou no seu discurso de 2 de julho (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/050926dc.htm ).

Isso não quer dizer, é claro, que eu discorde do documento nos demais aspectos. Ao contrário: tudo o que está dito ali é certo e merece apoio. Parece-me apenas que, se o partido governante e a esquerda como um todo têm o direito ao exercício da guerra ideológica, igual direito devem ter os brasileiros em geral, militares ou civis, em vez de acomodar-se à camisa-de-força do legalismo ideologicamente “neutro” que lhes restou depois de três décadas de “revolução cultural” gramsciana.

O que nos levou à situação presente foi a conivência de todos com a ditadura mental imposta à mídia e ao sistema educacional pelo ativismo comunista discreto ou ostensivo. Todo anticomunismo foi banido desses canais desde há mais de trinta anos, enquanto a louvação descarada de assassinos e terroristas de esquerda foi ganhando espaço até tornar-se parte essencial e obrigatória da cultura elegante.

O PT não é criminoso só porque rouba. É criminoso porque é comunista, porque conspira com ditadores e narcotraficantes para espalhar o regime chavista-fidelista por toda a América Latina e para transformar o continente inteiro numa arma de guerra a serviço do que existe de pior no mundo.

Se até oficiais das Forças Armadas se sentem inibidos de denunciar isso, é porque a cultura esquerdista dominante obteve sucesso em moldar a consciência de seus inimigos, limitando seu discurso a pontos insuscetíveis de controvérsia ideológica. A corrupção pandêmica que o PT espalhou no país foi o resultado do excesso de poder advindo da hegemonia cultural. O próprio José Dirceu não teria podido transformar-se no invencível capomafioso do petismo se não fosse, acima de tudo, um agente do serviço secreto cubano e o oficial de ligação entre Lula e Fidel Castro. Podar as ervas daninhas sem arrancar suas raízes ideológicas e estratégicas é dar ao povo a ilusão de que existe comunismo honesto, é convidar o Brasil a cair de novo no mesmo engodo.

***

Quando se quer difamar alguém ante uma platéia intelectualmente fraca, páginas e páginas de acusações não funcionam tão bem quanto uma insinuação breve, de sentido vago e incerto, disparada no ar sem nenhuma explicação. Sempre haverá no auditório idiotas que, na ânsia de fingir que sabem do que o orador está falando, a preencherão imediatamente com algum significado arbitrário e sairão alardeando que se trata de informação segura e arqui-comprovada. Cada novo receptor da mensagem, não desejando confessar que está por fora de tão importante matéria, lhe acrescentará de bom grado seu próprio aval, de modo que o acúmulo de credulidades beócias transformará em moeda corrente aquilo que, na origem, era apenas um malicioso nada.

O comentarista econômico Luís Nassif acaba de usar contra mim esse artifício publicitário superlativamente porcino, rotulando de “fixação”, tout court , a minha insistência em divulgar certos fatos que a classe jornalística omite com insistência maior ainda. Ele não fez isso, é claro, por hostilidade à minha pessoa, mas só pelo desejo de mostrar serviço a quem pode lhe prestar serviço em troca. Ele não quis me esculhambar: quis apenas me usar de papel higiênico para poder exibir à sua clientela uma bundinha intelectual limpinha. Curiosamente, ele diz que “esperto” não é ele: são aqueles que me acompanham na luta inglória, trabalhando de graça para jornaizinhos eletrônicos ou escrevendo artigos de duzentos reais para a Folha de S. Paulo , só para vê-los diluídos num oceano de bem remunerada propaganda esquerdista. Mais estranhamente ainda, ele os chama também de “incultos”, mas se esquiva de citar o nome de um só deles, evitando assim um confronto de habilitações intelectuais que lhe seria fatalmente desastroso.

Loucura visível

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 25 de outubro de 2005

Se há algo que ninguém neste país ignora é que o voto contra o desarmamento não foi só contra o desarmamento: foi contra o governo. Mas também não foi só contra este governo em particular: foi contra toda uma concepção providencialista do Estado, que durante uma certa época chegou a empolgar a imaginação popular mas cuja periculosidade intrínseca terminou por se tornar evidente para todo o eleitorado.

O atrativo dessa concepção residia na promessa de solução de mil e um problemas que, segundo se alegava, transcendiam as forças dispersas da sociedade civil e requeriam a ação centralizada e centralizadora do Estado.

O perigo – já assinadado pelo economista Friedrich von Hayek nos anos 30 do século passado – era que a as soluções prometidas tinham de ser adiadas até que fosse alcançada a quota de centralização necessária para empreendê-las, e portanto o eixo da atenção se desviava dos problemas originários para concentrar-se na luta contra os obstáculos à centralização. A conquista dos meios, sendo problemática em si mesma, protelava indefinidamente a consecução dos fins e se transformava em finalidade suprema ou única da vida política.

O Estado é expressão da sociedade natural. Quando promete fazer o que ela não pode, tende incoercivelmente a elevar-se acima dela para agir sobre ela como um deux ex machina , acreditando-se força autônoma geradora da sua própria causa. O melhor que consegue então é destruir a sociedade, criando e impondo novos laços, novas obrigações, novos compromissos que já não correspondem à inclinação natural dos seres humanos e que na verdade não se destinam senão a alimentar, com o sangue da sociedade esmagada, a engenhoca estatal que a oprime.

Nunca isso se tornou tão evidente como durante a campanha contra o comércio de armas. Ao alegar que necessitava desarmar a sociedade para protegê-la de si mesma, o Estado incapaz de protegê-la de seus inimigos mostrou que sua prioridade máxima não era defender o povo mas sim defender-se do povo. A reivindicação de poder estatal ampliado não emergia de um plano sincero voltado ao controle da violência criminosa, mas do desejo de camuflar a própria impotência estatal de instaurar esse controle. Incapaz de reprimir os delinqüentes, o Estado propunha a repressão das vítimas.

Tanto foi assim que, após ter ludibriado o povo durante anos com a promessa vã de que o desarmamento civil diminuiria a força do banditismo — como se bandidos houvessem algum dia operado com armas legalmente registradas –, os próceres mesmos da campanha tiveram de confessar que o objetivo visado não era esse, que o desarmamento não protegeria os cidadãos dos bandidos, mas apenas de si próprios. Esperar que a sociedade votasse “Sim”, nessas circunstâncias, era o mesmo que pedir-lhe que assinasse um atestado de menoridade, nomeando o Estado seu tutor. A contradição interna do plano não escapou nem mesmo àqueles que não conseguiriam expressá-la verbalmente: de que valeria uma transferência de autoridade assinada por alguém que, nos próprios termos do documento, era declarado juridicamente incapaz?

Na sua ânsia de poder ilimitado, os apologistas do Estado salvador não se vexam de apelar à incongruência e ao absurdo. Mas, desta vez, sua loucura se tornou visível aos olhos de todos.

A origem das opiniões dominantes

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de outubro de 2005

O idiota presunçoso, isto é, o tipo mais representativo de qualquer profissão hoje em dia, incluindo as letras, o ensino e o jornalismo, forma opinião de maneira imediata e espontânea, com base numa quantidade ínfima ou nula de conhecimentos, e se apega a seu julgamento com a tenacidade de quem defende um tesouro maior que a vida. A rigor, não tem propriamente opiniões. Tem apenas impressões difusas que não podendo, é claro, encontrar expressão adequada, se acomodam mecanicamente a qualquer fórmula de sentido análogo, colhida do ambiente, e então lhe parecem opiniões pessoais, como se a conquista de uma autêntica opinião pessoal prescindisse de esforço.

O trajeto mental mesmo que o levou às suas preferências inabaláveis lhe escapa totalmente, por ter sido percorrido à margem da atenção consciente. Literalmente, ele não sabe por que nem como veio a pensar como pensa. Quando lhe perguntamos a via pela qual chegou a tais ou quais conclusões, ele nunca responde com uma introspecção rememorativa, como tentaria fazê-lo o intelectual sério. Improvisa duas ou três justificativas e as incorpora retroativamente à sua auto-imagem, acreditando que sempre pensou assim. Confundindo o presente com o passado, sua autobiografia mental é fictícia, por isto está sempre pronta para ser alterada e justificar qualquer coisa. Quando as justificações se tornam rotineiras e coincidem mais ou menos com coisas ouvidas ou lidas, produzem um sentimento de coerência e solidez.

Não espanta que, diante de uma opinião que lhe desagrade, ele creia instantaneamente que ela se formou como as suas: da preferência emocional para o julgamento dos fatos, nunca ao contrário. E quando lhe mostramos algo dos dados e comparações que fomos trabalhosamente juntando para pensar como pensamos, ele imagina que estamos apenas inventando pretextos a esmo, na hora, para vencê-lo e humilhá-lo, para lhe impor nossas escolhas subjetivas, nossas crenças cegas, nossos “dogmas” como ele tão facilmente os rotula sem notar que inverte o sentido da palavra. Incapaz de recordar seu próprio trajeto interior, como poderia ele revivenciar imaginativamente o nosso? Quanto mais fundamentadas as razões que apresentamos, mais ele as entende como exteriorizações de uma vontade irracional. E, evidentemente, se acontece de nossas opiniões serem minoritárias e inusitadas, e as suas respaldadas na crença comum de um grupo social, aí sua incompreensão radical dos nossos argumentos se vê fortalecida pelo sentimento de ser a voz da razão em luta contra o fanatismo cego e a loucura. Nesses momentos ele pode apelar à louvação convencional da “dúvida” e do “relativismo”, que, desligados da experiência interior correspondente, se tornam eficientes vacinas contra o convite ao auto-exame socrático. Pode também, caso se sinta acossado e inseguro, emitir a nosso respeito um diagnóstico psiquiátrico, usando algum termo técnico recém-ouvido, que embora totalmente deslocado da situação – e às vezes do sentido próprio da palavra — lhe dará uma reconfortante sensação de normalidade e, em geral, encerrará a discussão.

É assim que funciona, hoje, o cérebro de um típico “formador de opinião” brasileiro. A diligência na busca da verdade, o auto-exame constante, a luta com a complexidade dos fatos e com a obscuridade da própria alma lhe são totalmente desconhecidos. O verdadeiro fundamento de suas opiniões é sua falta de autoconsciência. Sua utilidade social e a razão do seu sucesso residem no fato de que ele mantém em circulação o estoque de fórmulas convencionais, colocando-as à disposição de outros indivíduos intelectualmente passivos, que necessitam delas para revestir mal e mal suas próprias impressões subjetivas e adquirir com isso uma ilusão de que sabem do que estão falando. A mera assimilação imitativa do linguajar “culto” torna-se assim o substitutivo cabal da educação para o conhecimento. Pessoas assim formadas não dizem o que percebem nem julgam o que dizem: acreditam no que conseguem dizer, pelo simples fato de que não saberiam dizer outra coisa.

O curso dos acontecimentos históricos reflete o tipo de personalidade dominante em cada época, e a expressão mais clara da personalidade dominante é o estilo da vida intelectual. O declínio abissal da moralidade pública no Brasil não é causa sui: foi antecedido e preparado nas escolas, nos jornais, nas editoras de livros. A atividade intelectual no Brasil se deteriorou e se prostituiu a tal ponto, que mesmo o discurso formal do jornalismo e da comunicação acadêmica – para não falar daquilo que um dia foi a literatura — já não serve de instrumento para a autoconsciência. A linguagem dos publicitários e dos cabos eleitorais tomou tudo. O alvoroço de simular bons sentimentos e demonizar o inimigo pela via mais fácil bloqueia toda possibilidade de reflexão séria sobre as próprias palavras. O sujeito lê o que escreveu ontem e não percebe que hoje está escrevendo o contrário. A impressão do momento é tudo, o senso de continuidade autobiográfica – para não falar da consistência lógica — se dissolve numa sucessão minimalista de lampejos inconexos. Com ele, vai embora toda aspiração de responsabilidade intelectual, mesmo vaga e remota. A coesão emocional do grupo – tão inconsistente nas suas idéias quanto qualquer dos indivíduos que o compõem – torna-se o sucedâneo vantajoso da coerência. Vantajoso porque não dá trabalho e infunde no sujeito uma impressão de solidez absoluta e inquestionável, enquanto toda coerência genuína é um equilíbrio precário gerado na luta para vencer as contradições. Agora não há mais contradições. Foram abolidas pela solidariedade grupal, onde a mudança em uníssono se torna uma espécie de continuidade, a única possível em tais circunstâncias.

Esse estado de coisas transparece em mil e um detalhes do dia a dia. Um dos mais interessantes dos últimos tempos é a facilidade, a desenvoltura com que jornalistas, intelectuais e políticos de esquerda, até ontem alinhados firmemente com o que quer que viesse do governo petista, aparecem de repente esbravejando contra o desarmamento civil e fazendo a apologia dos “direitos individuais” como se tivessem sempre pensado assim, como se não tivessem colaborado ativamente, com devota obediência, para a construção do Golem petista e a dissolução do individual no estatismo coletivista. Luís Fernando Veríssimo, Jô Soares, Mauro Santayana e o PSTU inteiro repetindo com a maior naturalidade argumentos que parecem saídos diretamente dos boletins da National Rifle Association são exemplos na infinita plasticidade de caráter da elite esquerdista nacional, um fenômeno que não consigo explicar para os americanos de jeito nenhum.

Pelo menos a turminha do PSTU teve a prudência de amortecer a mudança hipócrita com uma mentira compensatória: inventou que o desarmamento é um truque sujo dos americanos para facilitar a invasão do território nacional, e com um firme sentimento de coerência saiu vociferando a apologia do “Não” como quem perseverasse fielmente numa doutrina já mil vezes reiterada.

Chomsky na “Folha” e no mundo

O Brasil inteiro perdeu a vergonha na cara, mas os garotos da Folha de S. Paulo nunca tiveram mesmo nenhuma e por isso ficam tão bem no quadro presente. “Chomsky é declarado o maior intelectual do mundo”, proclamam os safadinhos na edição do último dia 18, em cima do despacho da France-Presse que dá os resultados de uma enquete promovida entre vinte mil leitores pela revista inglesa Prospect . Entre o título e a realidade, a distância é imensurável.

Para começar, a revista não perguntou “qual o maior intelectual do mundo” e sim “qual o intelectual público mais influente do mundo”. As diferenças são duas: “intelectual” tout court não é a mesma coisa que “intelectual público”, e “maior” não é a mesma coisa que “mais influente”.

O rótulo de  “intelectual” aplica-se a qualquer pessoa envolvida em trabalhos de ciência, arte, filosofia, ensino, jornalismo etc. Sua gama de significados abrange desde os gênios criadores que moldam a cosmovisão dos séculos até o exército anônimo e inumerável de retransmissores, copiadores, etc. O “maior intelectual” não poderia em hipótese alguma estar entre estes últimos, porque a grandeza no seu ofício consiste justamente em fazer sozinho algo que muitos deles juntos não teriam força para fazer.

“Intelectual público” é termo preciso que diferencia, no conjunto dos intelectuais, aqueles que rotineiramente opinam sobre as questões do momento e o fazem através de canais de comunicação de amplo alcance. O professor que analisa uma crise política para os alunos em sala de aula não é um intelectual público, assim como não o é o grande estudioso de problemas demasiado afastados do foco de atenção popular, mesmo que trate deles em artigos de jornal, mesmo que dê algum palpite esporádico a respeito em debates na TV e mesmo que alcance, no domínio da sua ocupação especial, aquela máxima celebridade que faria meio mundo apontá-lo no meio da rua. Nem as crianças desconheciam Albert Einstein, mas isto não o tornava um intelectual público, porque sua intervenção em debates públicos era rara e ocasional. Para ser um intelectual público, é claro, o sujeito tem de ser primeiro um intelectual, grande ou pequeno. Mas não pode sê-lo se a interferência nessas discussões não é uma de suas atividades essenciais e costumeiras. Pensadores enormente influentes, como Arnold Toynbee e Martin Heidegger, nunca foram intelectuais públicos, porque sua influência não foi exercida diretamente através dos meios de comunicação de massa, mas chegou até o público pela intermediação dos círculos acadêmicos.

O que constitui o intelectual público não é a publicidade apenas: é a publicidade constante e rotineira, incorporada aos seus meios usuais de trabalho.

A pergunta “Qual é o intelectual público mais influente do mundo?”, portanto, não visa a medir a relevância intelectual e nem mesmo a fama de um determinado homem de idéias, mas a intensidade e a extensão da sua influência como força política constante.

Ninguém ignora, por exemplo – e escolho propositadamente dois pensadores que a mim não me dizem nada — que o pensamento de Heidegger foi decisivo para a formação das idéias de Jean-Paul Sartre. É a diferença entre o mestre e o epígono, o desbravador e o seguidor ou adaptador. Também ninguém ignora que Sartre atraiu muito mais atenção popular do que esse seu guru. Heidegger era mentor de filósofos, Sartre de ativistas estudantis. O próprio Heidegger marcou bem essa diferença, quando, solicitado a receber a visita do discípulo francês, respondeu: “Não atendo jornalistas.” Num concurso de influência filosófica, ou intelectual no sentido próprio, Heidegger só perderia para seu mestre Husserl. Sartre nem entraria no páreo. Mas Sartre era um intelectual público, e Heidegger não. Muito menos Husserl.

Mutatis mutandis , o filósofo Leo Strauss, um gênio incomum, não foi conhecido em vida senão por um seleto círculo de estudiosos, através dos quais sua influência foi se alastrando postumamente entre intelectuais, jornalistas e políticos até que o “straussismo” se consolidasse como doutrina oficiosa de uma facção dos conservadores americanos. Essa facção tem hoje representantes no governo e na mídia que usam o que aprenderam com Strauss para analisar e debater as questões do dia. Paul Wolfowitz e William Kristol são intelectuais públicos. O homem que formou a mentalidade deles jamais o foi.

Dar à pergunta sobre qual o mais influente intelectual público o sentido de “quem é o maior intectual” resulta em colocar William Kristol e Paul Wolfowitz acima de Leo Strauss.

É isso o que a Folha faz com a pesquisa. Modifica tão radicalmente o seu sentido que chega a invertê-lo. Posso assegurar isso com toda a certeza pelo simples fato de que eu mesmo, leitor costumeiro da Prospect , fui um dos vinte mil votantes, preenchi o formulário com minhas próprias mãos e decerto teria votado de maneira muito diversa se a eleição fosse a do maior intelectual do mundo. Tal como a questão estava formulada, a vitória de Chomsky era inevitável, porque, quantitativamente, ele é o intelectual de maior presença na mídia, o mais citado em trabalhos estudantis nos EUA e o de mais permanente atuação em campanhas políticas desde há quarenta anos. Ele é, ademais, o único que se dedica a isso com tanto comprometimento — muito acima de suas ocupações nominais de lingüista nas quais há décadas não produz nada de interessante –, que chega a ter para isso um corpo permanente de colaboradores, redatores, editores, tradutores, divulgadores e public relations profissionais. Eles o acompanham por toda parte, gravando cada palavra dele e transformando tudo em livros que são publicados simultaneamente em dezenas de idiomas com aparato publicitário inigualável, reforçado pela rede multinacional de ONGs organizadas em torno da militância chomskista. Se vocês examinarem a bibliografia do homem, notarão que há mais de duas décadas quase tudo o que ele publica é fabricado assim. Chomsky é não apenas o intelectual público por excelência, é alguém que deu a essa atividade um sentido de organização profissional acima de tudo o que se conhecia antes na área. Nem mesmo Voltaire, o Chomsky do século XVIII, teve uma infra-estrutura tão sólida e tão vasta à sua disposição. No mínimo, ele teve de escrever pessoalmente cada palavra dos cento e tantos volumes de suas Obras Completas . Chomsky apenas ejeta pela boca a matéria-prima. A indústria faz o resto. Por esses detalhes mede-se a hipocrisia do sujeito quando, notificado da vitória, declarou que “não presta atenção nessas coisas”. Na verdade, ele nunca presta atenção em nada mais.

Numa competição para nomear “o maior intelectual”, Chomsky talvez fosse cogitado nos anos 70, quando sua “lingüística geracional” ainda parecia uma descoberta substancial. Há três décadas paralisado por uma esterilidade científica completa enquanto sua velha teoria naufraga num mar de contestações (v. “A Corrupted Linguistics”, por Robert D. Levine e Paul M. Postal, em The Anti-Chomsky Reader , ed. Peter Collier e David Horowitz, San Francisco, Encounter Books, 2004), Chomsky defendeu firmemente sua posição de “intelectual público” ao ponto de já não poder ser considerado senão isso e nada mais. Talvez por essa razão a Prospect teve o cuidado de não apenas distinguir entre “intelectual” e “intelectual público”, conceitos que a Folha embaralhou, mas também de não designar a posição de Chomsky na votação com a palavra “greatest” e sim com “top”, que não tem a conotação solene associada ao termo “maior”.

Porém a Folha de S. Paulo não se contenta com inverter o sentido da notícia. Mesmo diante do resultado da pesquisa, a Prospect teve a precaução de não tomar a preferência de seus vinte mil leitores como expressão da unanimidade mundial. Na capa do seu número 116, de novembro, que publica os resultados da pesquisa, o reconhecimento de Chomsky como intelectual público mais influente do mundo não é afirmado como verdade mas atenuado por um eloqüente ponto de interrogação, que a Folha suprimiu para transformar a possibilidade em fato consumado, ocultando dos leitores que fez isso por decisão própria e não da Prospect.

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