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Monumento às vaidades

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 6 de abril de 2006

O país inteiro está hoje mergulhado numa atmosfera turva de incerteza e temor. As denúncias que se sucedem nada esclarecem: só fazem aumentar a suspeita de que cada crime revelado oculta em seu bojo outro ainda pior, como sombras dentro de sombras, emergindo sem parar de um buraco sem fundo, alastrando-se por toda parte, encobrindo progressivamente o horizonte e o mundo.

Mais que a debacle da moralidade, é a humilhação completa da inteligência, bracejando em desespero num mar de trevas, incapaz de enxergar um caminho, um sinal, uma esperança.

Não se chega a uma situação dessas sem uma longa e geral acumulação de mentiras, que pareceram convenientes no momento em que foram inventadas, mas cujo efeito global, ultrapassado um certo limite, arrisca ser nada menos que a supressão de todas as possibilidades de uma ação corretiva.

Não empreguei à toa as palavras “longa” e “geral”. A ocultação das forças essenciais em jogo começou há muito tempo. Remonta pelo menos a 1990, data da concepção do Foro de São Paulo. Ao longo de uma década e meia, enquanto o sr. Luís Inácio Lula da Silva resolvia os destinos do país em conversações secretas com Hugo Chavez e Fidel Castro e os três punham suas decisões em ação através de uma malha gigantesca de quase duas centenas de organizações legais e ilegais fielmente obedientes à linha de conjunto, a opinião pública brasileira, ignorante de tudo, tinha sua atenção absorvida inteiramente nas picuinhas parlamentares e administrativas do dia, como se não houvesse nada de mais importante acontecendo, como se estivéssemos na mais estável e aprazível das democracias européias, sem nada a discutir senão orçamentos e impostos. Jamais um povo foi privado, por tanto tempo, do conhecimento dos fatores fundamentais que moldavam o seu destino. Como esperar que, à sombra de tão profunda e duradoura alienação, não germinassem a trapaça e o crime em doses incontroláveis?

Mas quem, precisamente, foi o culpado por estender sobre os debates públicos esse manto de obscuridade, camuflagem ideal para as práticas mais obscenas do “partido ético”? Mais fácil seria fazer a lista dos inocentes. Não passam de umas dezenas. Todos os outros — líderes políticos, empresários, jornalistas, intelectuais, comandantes militares –, na mais branda das hipóteses, foram cúmplices da grande farsa de 2002, uma eleição em família, pré-moldada na escuridão do Foro de São Paulo e apresentada aos votantes, numa apoteose de ufanismo cínico, como “a mais transparente da nossa História”.

Será que agora, diante da imoralidade triunfante, esses indivíduos entendem que foram eles próprios que deram ao PT o salvo-conduto para delinqüir?

Será que um dia, neste país de tantos homens espertos, sempre com um sorrisinho de superioridade irônica no canto da boca, alguém vai aprender que esperteza é muitas vezes burrice, teimosia sonsa de uma aposta contra a verdade?

Parece que não. Admiradores de Maquiavel, nem sabem que o secretário florentino, mestre dos espertalhões, foi sempre um perdedor, um derrotado, bom de bico como literato, mas crédulo e bobo em todas as situações da política prática, um deplorável infeliz sem nada a ensinar a ninguém senão a miséria de um ressentimento incurável. 

Nada debilita mais a inteligência do que a obstinação orgulhosa na astúcia fracassada.

Entre a esperteza e a força, dizia Napoleão, a força sempre vence. E de onde vem a força? Vem da coragem de admitir a verdade, da franqueza na palavra e na ação, da clareza de propósitos, da imunidade a subornos financeiros ou, principalmente, psicológicos. Mas quanta gente, que nem pensaria em vender-se por dinheiro, não se vendeu por uns afagos da esquerda chique, pela delícia de sentir-se politicamente correto?

O preço do monumento que ergueram às suas pequenas vaidades é a humilhação sem fim de quem já não pode brandir a verdade contra o inimigo por medo de que a lâmina resvale na sua própria carne.

O guru da Nova Ordem Mundial

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 3 de abril de 2006

Alguns leitores estranham que, em plena ascensão do comunismo na América Latina, eu me desvie da atualidade explosiva para me empenhar, aqui e em outras publicações, num combate aparentemente extemporâneo contra Immanuel Kant e o iluminismo (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060313dc.htm, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060323jb.htm e sobretudo http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/opiniao/2006/03/29 /joropi20060329002.html, mais o artigo meu que saiu na Zero Hora de ontem, que no momento em que vocês lêem já deve estar reproduzido no meu website, www.olavodecarvalho.org,  mas cujo endereço completo não sei ainda).

Há quem chegue a imaginar que criei birra do anãozinho corcunda de Koenisberg por sua semelhança física com o de Turim (Antonio Gramci). Mas nada tenho contra anõezinhos, exceto quando por dentro são monstros enormes. No artigo anterior descrevi brevemente o segundo. Seu antecessor alemão parece bem menos perigoso. Com freqüência, surge na mídia com as feições risonhas de um amante da paz e da liberdade. Ninguém pode negar que isso ele era realmente, mas em filosofia as palavras não valem pelo seu sentido-padrão dicionarizado, e sim pelo conceito específico e plenamente desenvolvido que nomeiam. Quando examinamos o que Kant entendia por paz e liberdade, sabendo que assim as entendem também os atuais candidatos a governantes do mundo, não podemos deixar de perceber que a parecença do filósofo com o fundador do Partido Comunista Italiano não é só anatômica, mas também moral, sobretudo na capacidade que ambos tinham de embelezar com uma linguagem idealística as mais feias realidades históricas que estavam plantando no solo do futuro. 

De modo geral, a influência cada vez maior e mais organizada dos intelectuais nos centros de poder mundial e a adoção generalizada da “guerra cultural” como instrumento primordial de dominação tornam a política incompreensível a quem não consiga acompanhar de perto a marcha das idéias. É uma ilusão mortífera imaginar que ainda existe uma esfera “prática” separada do debate cultural, religioso e filosófico. Os políticos ou líderes empresariais soi-disant “pragmáticos”, que se gabavam de olhar com desprezo as discussões aparentemente bizantinas dos acadêmicos, são hoje uma raça em extinção. Para destrui-los, basta à intelectualidade ativista conceber estratégias que passem longe do horizonte de visão do seu imediatismo praticista. A vitória do gramscismo no Brasil explica-se, em boa parte, pela indolência intelectual dos líderes políticos e empresariais de fora da esquerda. Nos EUA, nada se debate no parlamento, se decide no judiciário ou se empreende no executivo sem ter passado, muito antes, pelo crivo dos think tanks, onde intelectuais de grosso calibre criam as categorias de pensamento que depois orientam toda a discussão subseqüente. Se você tenta acompanhar o desenrolar dos acontecimentos sem conhecer os pressupostos intelectuais mais remotos por trás dos conflitos de poder, acaba não entendendo nada. Um desses pressupostos é a filosofia de Kant. Exposta num estilo abstruso que repele até os estudantes de filosofia, ela é a última coisa pela qual um “homem prático” poderia se interessar. Por isto mesmo, ela vai se tornando realidade bem diante dos narizes deles, sem que tenham a menor idéia de para onde ela ameaça levá-los.

Umas poucas observações bastam para realçar a gravidade do assunto.

Em primeiro lugar, a noção kantiana de “paz eterna”, tão própria a seduzir os sentimentais pela sua vaga ressonância bíblica, não significa outra coisa senão “governo mundial”. Num estudo importantíssimo (La face cachée de l’ONU, Paris, Ed. Sarment Fayard, 2000), o Pe. Michael Schooyans, filósofo belga que já lecionou no Brasil, mostra que as novas legistações uniformizantes que a ONU vem impondo ao mundo, como por exemplo o abortismo obrigatório a que me referi num dos artigos anteriores, são de inspiração diretamente kantiana. O governo global que a ONU está construindo com rapidez desnorteante é a tradução jurídica exata do que Kant entendia como “comunidade humana”. Essa comunidade, segundo o filósofo, emergia espontaneamente do fato de que os homens são todos dotados da mesma faculdade da “razão”. Mas a razão, para Kant, não é a mesma coisa que era para os antigos e medievais. Estes a entendiam como o simples dom da fala e do raciocínio coerente, reflexo longínquo da Razão divina que criou e sustenta o mundo. Graças a esse dom, o ser humano podia apreender algo da ordem divina e cósmica do mundo, ordenando por ela, na medida de suas limitadas capacidades, a vida da sua própria alma. Para Kant, ao contrário, a razão é a autoridade legisladora suprema e insuperável, que não tem satisfações a prestar nem a uma ordem divina pré-existente, nem a quaisquer fatos do mundo real que não se enquadrem na sua auto-regulação soberana. Os estudantes de história da filosofia não ignoram que o iluminismo, de um modo geral, se caracterizara pela apologia da universalidade abstrata, com pleno desprezo da variedade dos fatos singulares. Na Revolução Francesa, milhares de cabeças singulares foram decepadas para enquadrar as restantes na linda universalidade da razão. Kant adorou isso. A rigidez do seu moralismo abstrato não tinha limites. Imaginem agora o que pode resultar da transformação disso em princípio regulador da ordem mundial. Eliminar do mapa as nações que não se enquadrarem na perfeição da nova ordem global será tão fácil quanto guilhotinar dissidentes. Se a cultura colombiana, por exemplo, é refratária ao aborto por querer permanecer fiel às suas origens cristãs, corta-se o crédito internacional da Colômbia como outrora se cortou a cabeça do poeta André Chenier ou do físico Lavoisier. Isso está de fato acontecendo, e é uma solução tanto mais tentadora porque o governo colombiano move uma bem sucedida guerra contra o narcotráfico, que a ordem global em gestação preferiria, ao contrário, liberar como comércio legítimo (uma vasta campanha nesse sentido é subsidiada pelo sr. George Soros, que ao mesmo tempo investe pesadamente na construção da nova ordem e na compra de terras… na Colômbia). Para quem quer enquadrar o planeta num modelo jurídico uniforme, esmagando os adversos e recalcitrantes com a boa consciência de um apóstolo da paz eterna, nada mais inspirador do que os abstratismos de Kant.

Mas, muito antes de insuflar essas idéias malígnas nas cabeças dos burocratas de Genebra, Kant já havia feito um mal irreparável à inteligência humana. Ao consagrar o império da “razão” uniforme sobre a multiplicidade dos fatos, ele criou o dogmatismo cientificista que permite abolir continentes inteiros da realidade, sob o pretexto de que são refratários ao estudo científico, dando em seguida, a essa mesma ciência que admite sua incapacidade de estudá-los, a autoridade de declarar que não existem. Essa idolatria do método produziu resultados tragicômicos. A epidemia de charlatanismo antropológico no século XX esteve entre eles. Baseando-se na premissa kantiana de que de um juízo de fato não se pode deduzir um juízo de valor, nem do valor um fato, cientistas sociais bisonhos professaram abster-se asceticamente de proferir julgamentos de valor sobre as realidades culturais que estudavam e acabaram tirando desse voto de castidade a conclusão de que, nesse campo, as diferenças de valor não existiam mesmo. A igualdade das culturas perante a suprema Razão kantiana é hoje um dogma imposto a todas as nações pelos pedagogos politicamente corretos da ONU. É imensurável a bibliografia destinada a persuadir o mundo de que, por exemplo, os rituais astecas de sacrifícios humanos eram um costume tão decente quanto a caridade franciscana.

Quando o Prof. Peter Singer afirma resolutamente os direitos humanos das galinhas, estendendo às diferenças entre espécies animais o mesmo preceito que obteve tanto sucesso no que diz respeito às diferenças entre culturas, ele está sendo rigorosamente kantiano.

Da mesma inspiração vem aquela regra sublime de que, como a ciência genética não consegue perceber nenhuma diferença entre um ser humano e um chipanzé aos três meses de gestação, os seres humanos não são realmente diferentes dos chipanzés. Fortalecida pela autoridade de Kant, cada ciência se crê autorizada a proclamar que tudo aquilo que está fora do alcance dos seus métodos é perfeitamente inexistente. Qualquer faxineiro sabe que um embrião humano, uma vez crescido, pode se tornar Platão ou Michelangelo, e que nenhum embrião de chipanzé pode esperar um futuro igualmente promissor. Mas, como a embriologia não estuda nada do que sucede aos embriões depois que eles deixam de ser embriões, essa diferença é kantianamente abolida em prol da soberania do método. E há muito tempo a supressão dessa diferença deixou de ser uma pura especulação acadêmica; ela já virou lei, e as cabeças que sua aplicação vai arrancando pelo caminho não são de chipanzés nem de galinhas.

Outro malefício incalculável que o kantismo trouxe à humanidade é a separação rígida e estereotipada entre “ciência” e “religião”. Segundo Kant, a primeira diz respeito àquilo que podemos “saber”, a segunda áquilo que podemos apenas “esperar”, quer dizer, desejar e imaginar. Em suma, vigora aí a diferença entre “conhecimento” e “crença”. Uma teoria científica você prova ou contesta. Numa doutrina religiosa, você apenas crê ou não crê, sem possibilidade de arbitragem racional. Essa distinção impregnou-se tão profundamente na alma ocidental que acabou por determinar o uso diário das palavras respectivas na mídia, nas escolas, nas discussões públicas e privadas. Esse é talvez o dogma terminológico de maior sucesso em todos os tempos. Até no automatismo do inconsciente a religião tornou-se “fé”, e ponto final. Mas isso é um conceito pueril e insustentável, uma idiotice completa. Nenhuma religião do mundo começa com “crença”. Começa sempre com uma sucessão de fatos que assinalam a súbita e humanamente inexplicável penetração coletiva numa esfera de realidade mais alta, de onde toda a existencia aparece transfigurada por um novo sentido. Digo “fatos” porque é disso que se trata. A travessia do Mar Vermelho pode ter se transformado em objeto de “crença” para as gerações subseqüentes, mas, para aqueles que viveram o acontecimento, não foi nada disso. Jesus Cristo podia dizer ao cego e ao paralítico curados: “Tua fé te salvou.” Mas é pura metonímia: a cura, se fosse pura matéria de fé e não um fato da ordem física, seria fraude e nada mais. Com a passagem do tempo, esfumando-se a memória viva dos testemunhos, o acesso a esses fatos pode requerer alguma “fé”, mas não tem sentido confundir a natureza de um fato com o modo de conhecê-lo séculos depois. Ou esses milagres aconteceram, ou não aconteceram. E deslocar o problema para um passado remoto é só fugir do problema. Setenta e seis por cento dos médicos americanos acreditam hoje em curas miraculosas, porque as vêem acontecer diariamente e sabem que elas são até mais freqüentes do que a cura pelos meios terapeuticos usuais. O próprio Jesus Cristo, quando perguntaram se Ele era mesmo o enviado de Deus ou se seria preciso esperar por algum outro, não respondeu com uma “doutrina” para ser crida ou descrida, mas com fatos para ser confirmados ou impugnados (confira em Mateus, 11:1-6). As religiões só se transformam em matéria de “crença” para um público que está muito afastado, no espaço ou no tempo, das suas fontes originárias. O conhecimento direto e o estudo cientificamente responsável dos acontecimentos miraculosos são as únicas vias de acesso intelectualmente válido à religião. O resto é uma discussão oca entre ignorantes tagarelas sentados na periferia da realidade. Hoje em dia, porém, qualquer fato tido por miraculoso está afastado, automaticamente, da discussão oficial, a não ser quando é uma fraude ou uma ilusão, isto é, quando, precisamente por não ser miraculoso de maneira alguma, pode ser explicado por algum psicologismo ou sociologismo fácil. Expulsos os dados inconvenientes, a “razão” kantiana impera absoluta no seu buraco de toupeira. O kantismo, consagração da covardia intelectual que foge de tudo aquilo que não conhece, bloqueia a possibilidade de vir a conhecê-lo. Nenhum autoritarismo dogmático, ao longo da história, foi tão mesquinho e tão danoso quanto esse. Em artigos subseqüentes darei exemplos de seus efeitos desastrosos na cultura, na história e na vida moral.

Por enquanto, peço apenas que não me venham com aquela conversa mole de que Kant tinha a melhor das intenções, de que foi tudo culpa do zelo exagerado de discípulos incompreensivos. As conseqüências perversas do kantismo, como as do hegelianismo e do marxismo, não vieram séculos ou milênios depois: foram quase imediatamente subseqüentes. Um pensador que se acha capaz de virar do avesso o universo inteiro dos conhecimentos humanos não tem desculpa para ignorar os efeitos mais obviamente previsíveis da difusão de suas idéias. É indecente passar da arrogância intelectual suprema aos gemidos de inocência fingida. Não se pode conceder esse direito a Kant, como não se pode concedê-lo a Hegel, a Karl Marx ou mesmo a Nietzsche, malgrado o atenuante da loucura. Quem quer que anuncie ter compreendido o sentido integral da História humana tem a obrigação estrita de prever com acerto o próximo episódio, ao menos no que diz respeito ao seu próprio campo limitado de atuação pessoal. Se nem isso o cidadão consegue fazer, é porque não alcançou a plenitude da autoconsciência filosófica de um Platão, de um Aristóteles, de um Tomás de Aquino ou de um Leibniz. E, nesse caso, é só por devoção idolátrica que continuamos a considerá-lo um grande filósofo e não apenas um pensador interessante.

Qual mente humana?

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 2 de abril de 2006

Pretendendo distinguir-se de seus antecedentes antigos e medievais pela virtude do senso crítico em oposição à fé dogmática, o pensamento moderno nasce montado num conjunto de suposições de uma ingenuidade tão gritante, que é como se séculos de tirocínio crítico tivessem de repente desaparecido da memória humana e sido substituídos pela presunção infantil de saber tudo por meio de truques simples, como que por mágica.

A doutrina da mente humana como centro regulador e fonte dos significados, que é o dogma central da modernidade, só pode parecer verossímil se o filósofo basear todas as suas conclusões no modelo esquemático de um observador consciente perante um objeto passivo do mundo físico – pedra, árvore, montanha –, abstraindo-se por completo da ação que porventura esse objeto, se fosse um cão ou um ser humano, poderia exercer sobre o observador pretensamente inatingível e supremo.

Chega a ser estranho que, ante algum dos filósofos que proclamavam a soberania da mente como centro ordenador do caos externo, ninguém da platéia se erguesse para perguntar:

— Qual mente humana, cara pálida? A sua ou a minha? Eu sou um caos que você ordena ou você é o caos e eu a fonte da ordem? Pois, se você responder que nós dois nos ordenamos um ao outro, estará admitindo acima de nós ambos um princípio ordenador comum que nos transcende e que não fazemos senão colocar em ação no momento em que mutuamente ordenamos, nas formas reconhecíveis com que nos apresentamos visualmente um ao outro, os supostos aglomerados caóticos de nossas respectivas presenças corporais

De Descartes a Kant, um século e meio decorrerá antes que essa dificuldade tão óbvia apareça com plena clareza e receba um tratamento crítico mais elaborado. O poder ordenador sobre o presumido caos da realidade será então transferido da mente humana individual para a universalidade da razão e das formas a priori da sensibilidade. Mas essa solução é ridícula: equivale a supor que, entre dois observadores, cada um transmite ao outro impressões sensíveis caóticas que ambos põem em ordem instantaneamente graças à universalidade de suas respectivas razões e formas a priori. Ou seja: pode ser que, por baixo das formas humanas com que nos vemos mutuamente, você seja de fato uma galinha e eu um hipopótamo, e só nos vemos com formas humanas idênticas porque, malgrado a diferença imensurável e incognoscível de nossas respectivas estruturas corporais “em si mesmas”, fomos miraculosamente dotados de idêntica racionalidade humana e idênticas formas a priori da sensibilidade. A hipótese é tão rebuscada e artificiosa que chega a ser cômico que tenha sido vista como uma solução em vez de um problema. Não teria sido muito mais racional supor que nos vemos com formas humanas porque nossos corpos têm formas humanas, comproporcionadas aliás às suas respectivas estruturas de percepção e faculdades racionais? Ah, não! Isso nunca! Isso seria supor uma razão abrangente que ordenasse ao mesmo tempo o mundo, os seres e as respectivas faculdades de percepção e raciocínio. Seria incorrer em pecado mortal de aristotelismo. Seria falta de “senso crítico”. Senso crítico, nesse sentido, é fugir da experiência real e limitar o exame a exemplos ficcionais impossíveis em si, mas logicamente apropriados à conclusão que se pretende obter.

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