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Miguel Reale vive

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 17 de abril de 2006

Tranqüila e digna foi a morte do filósofo que atravessou digno e tranqüilo todos os percalços de uma vida longa e repleta de desafios. Miguel Reale honrou como poucos a vocação de pensador e erudito, colocando também na sua atuação de advogado e homem público a mesma seriedade, o mesmo peso de cada uma das palavras que escreveu em livros essenciais como a “Filosofia do Direito”, “Pluralismo e Liberdade” ou “Experiência e Cultura”. Não encontro em sua imensa obra um só deslize, um chute, um palpite leviano emitido mesmo por distração. Tudo ali é meditado, pensado com enorme senso de responsabilidade, com criteriosa atenção ao “status quaestionis” e, sobretudo, com uma aguda consciência do caráter experimental da investigação filosófica.

Li quase tudo o que ele publicou e, tendo sido honrado com a sua amizade na última década da sua existência, lamentei sempre a raridade dos nossos encontros, nos quais ele foi passando de octogenário a nonagenário sem nada perder da lucidez, da força intelectual e da calma tolerância que eram as suas marcas mais salientes. Não digo que terei saudades dele, pois nunca senti saudades dos amigos mortos: posso estar maluco, mas tenho o nítido sentimento de que ainda estão comigo, tão vivos na minha paisagem interior quanto o estão na memória de Deus que a todos nos abrange e sustenta. O que quer que tenha entrado na existência, mesmo que por um só instante, não pode nunca mais retornar ao nada, que é alheio a toda existência. Só pode transpor-se a uma outra escala de tempo, imóvel e fixo na eternidade, mais autêntico e real do que nunca. “Tel qu’en lui-même enfin l’éternité le change.”

Não digo, pois, adeus ao Dr. Miguel. Lanço-lhe um aceno na eternidade e asseguro-lhe que o amor e a admiração que tantos lhe votaram em vida continuarão inalterados.

A chacota geral do mundo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de abril de 2006

Quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível. Tanto é impossível que nenhum ateu jamais tentou sequer formulá-la. Todos limitam-se a argumentos periféricos e ocasionais, voltados antes a detalhes de doutrina religiosa, perfeitamente discutíveis em si mesmos, do que ao centro inexpugnável da questão.

Essa impossibilidade não era desconhecida dos maiores pensadores ateus do passado, que a contornavam sem poder enfrentá-la. A quase totalidade dos que polemizam hoje em favor do ateísmo – e eles ultimamente se multiplicam como ratos de esgoto – não têm o menor pressentimento dela, embora esbarrem nas suas fronteiras a cada instante. A maioria apela em última instância ao argumentum ad ignorantiam, declarando com patética inocência que aquilo que desconhecem não pode existir. Esses são invencíveis na discussão, pois nenhum argumento tem o poder de infundir inteligência no ouvinte que uma sólida aliança da genética com a má educação tornou irremediavelmente estúpido. Sob esse ponto de vista, o ateísmo parece ter um futuro brilhante.

A tese ateística não sendo logicamente defensável até suas últimas conseqüências, os inimigos de Deus acabaram-se distribuindo em tribos diversamente localizadas, cada qual atacando o problema por um pedacinho da borda, não na esperança de chegar um dia ao centro, mas na de vencer a platéia pelo cansaço, persuadindo-a enganosamente de que a soma infindável de argumentos relativos tem o valor e a autoridade de uma prova absoluta.

As principais dentre essas tribos são as seguintes:

a) Os ateus propriamente ditos, que mesmo não sabendo disto são campeões da fé, na medida em que apostam naquilo que ninguém jamais poderá provar. Muitos deles, abdicando previamente de enfrentar a dificuldade intransponível inerente à sua tese, dispendem energias colossais em operações diversionistas como a do dr. Richard Dawkins, apegado à esperança de que a simples hipótese de poder o mundo ter surgido sem Deus, se formulada com sofisticação matemática bastante, já venha a resolver o problema inteiro, como se uma possibilidade teórica pudesse, por si, ser prova de realidade efetiva.

b) Os deístas, que, cientes da impossibilidade de livrar-se completamente de Deus, tratam de diluí-Lo numa noção tão geral, tão vaga e tão abstrata que, no fim das contas, é como se Ele não existisse. A melhor solução para eles é a teoria do deus ocioso – muito em voga no tempo do mecanicismo renascentista – o qual teria criado o mundo segundo regras tão fixas e imutáveis que toda interferência do criador se tornou desnecessária uma vez pronto o mecanismo do mundo. É a imagem do relojoeiro que, terminada a construção, dá corda no relógio e vai dormir. Não precisamos discutir essa puerilidade.

c) Os agnósticos, que professam voltar as costas ao problema de Deus e, modestamente, lidar apenas com questões acessíveis aos métodos da moderna ciência natural, mas, feito isso, proíbem a investigação de qualquer objeto que esteja fora do alcance desses métodos ou proclamam abertamente a inexistência dele, mostrando ser ateus disfarçados que optaram por dificultar o acesso àquilo cuja inexistência não puderam provar.

d) Os gnósticos, que admitem a existência do criador mas proclamam que ele é mau, que fez o mundo contra a vontade do verdadeiro deus, ente espiritual puríssimo que jamais sujaria suas excelsas mãos numa porcaria dessas; donde se segue a obrigação máxima do crente gnóstico, a qual consiste em destruir o mundo ou modificá-lo radicalmente, de preferência destruindo-o primeiro para depois substituí-lo por algo de totalmente diferente. Dessa proposta dupla do movimento gnóstico nasceu uma pluralidade caótica de seitas, das quais algumas se transformaram em movimentos de massa a partir do século XVIII, gerando as ideologias revolucionárias do anarquismo, do comunismo, do nazismo, do fascismo, do positivismo e da tecnocracia, bem como, para além delas, a proliferação de ocultismos da “Nova Era” e o plano da “Nova Ordem Mundial” ao qual esses ocultismos não servem senão de instrumento provisório.

O gnosticismo é a ideologia suprema do nosso tempo, destinada a reinar soberana sobre uma humanidade idiotizada tão logo as religiões tradicionais se tornem incompreensíveis para as multidões e possam ser sintetizadas num culto biônico sob a administração das Nações Unidas ou órgão equivalente auto-incumbido das funções de governo do mundo. A proposta é tão virulenta, absurda e infame que, embora já esteja em fase avançada de implementação (v. o livro de Lee Penn já várias vezes citado aqui, False Dawn), jamais é apresentada em público com franqueza, apenas difundida indiretamente através de eufemismos anestésicos.

Na verdade, o ateísmo, o deísmo e o agnosticismo já não têm qualquer energia própria. Propugnados por saudosistas do iluminismo voltaireano e do cientificismo positivista, tornaram-se instrumentos auxiliares que concorrem para criar a confusão necessária à implantação da nova religião universal, sendo por isso fomentados e subsidiados pelas mesmas fontes que a originam, entidades perfeitamente respeitáveis em aparência que são também as forças propulsoras de movimentos revolucionários e subversivos em várias partes do mundo.

Até há algum tempo, tudo isso era apenas uma suspeita, e a investigação dos fatos por trás dela se misturava inevitavelmente a doses maciças de especulação imaginária, preconceitos monstruosos, desinformação proposital e um bocado de pseudociência. Foi a época das “teorias da conspiração”.

Hoje, os mesmos avanços tecnológicos que deram a esse movimento o impulso formidável da organização em “redes” tornaram fácil identificar essas redes e todas as suas conexões internas e externas, apreendendo a unidade por trás de uma multiplicidade que de outro modo seria desnorteante. O simples estudo da circulação de dinheiro entre fundações, governos, ONGs, movimentos terroristas e quadrilhas de narcotraficantes basta para tornar a realidade da subversão gnóstica mundial demasiado visível para que se possa continuar a ocultá-la mediante o apelo a evasivas difamatórias destinadas a intimidar o investigador. Um exame acurado dos sites http://www.activistcash.com e http://www.discoverthenetwork.org dará ao leitor uma idéia precisa do que estou dizendo. Estudos como The Marketing of Evil, de David Kupelian (Nashville, Tennessee, WND books, 2005), Machiavel Pedagogue, de Pascal Bernardin (Cannes, Édition Notre-Dame das Graces, 1995), Good Bye, Good Men, de Michael S. Rose (Washington DC, Regnery, 2002), The Deliberate Dumbing Down of America, de Charlotte Thomson Iserbit (Ravenna, Ohio, The Conscience Press, 1999) e The ACLU vs. America, de Alan Sears e Craig Osten (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005), tirarão o restante da dúvida. Os nomes das mesmas organizações — a “Ford Foundation”, o “Open Society Institute de George Soros”, a “John D. & Catherine T. MacArthur Foundation”, a “Carnegie Corporation of New York” e o “Council on Foundations”, entre uma centena de outras — aparecem com tão obsessiva freqüência entre os financiadores de movimentos subversivos e os do governo mundial, que já não é possível deixar de enxergar a ligação entre essas duas forças aparentemente díspares, uma voltada para a disseminação do caos, outra para a cristalização da Nova Ordem, tão articuladas entre si quanto as duas operações alquímicas da dissolução e da coagulação.

Contra esse assalto geral às bases da civilização, os pontos de resistência são hoje as religiões tradicionais, o Estado constitucional americano e o Estado de Israel.

Das religiões, cada uma está mais corroída que a outra. O cristianismo, ainda forte nos EUA e no Leste Europeu e em plena expansão na Ásia e na África, está praticamente destruído na Europa ocidental e dominado pelo esquerdismo na América Latina. O Islã tradicional, evaporado, tornou-se apenas uma figura de retórica no discurso radical que a mídia do Ocidente, confundindo propositadamente as coisas, rotula de “fundamentalista”. O judaísmo está assolado daqueles tipos que Don Feder chama de “judeus Seinfeld”, para os quais as três solenidades judaicas fundamentais são o Bar-Mitzvah, o Rosh-Hashaná e o aniversário da Barbara Streisand.

A América está ameaçada desde dentro pela potente simbiose das fundações milionárias com o esquerdismo revolucionário, solidificada pela mídia chique e hoje mentora inconteste do Partido Democrata.

Israel, cercada de três dezenas de países hostis, e talvez recordista mundial de traidores e muristas per capita, sobrevive não se sabe como. Voltado à sua destruição urgente, o anti-semitismo adquire novos contornos, mais sutis e enganadores, que não podem talvez ser compreendidos senão à luz do estudo empreendido pelo rabino Marvin S. Antelman, To Eliminate the Opiate (Jerusalem, Zionist Book Club, 2 vols., 1988 e 2002), que um dia comentarei aqui em detalhe.

Minar esses três pontos de resistência é obviamente prioritário para a Nova Ordem Mundial. Daí fenômenos estranhos como a súbita revivescência do cientificismo, já totalmente demolido pelos maiores filósofos da primeira metade do século XX – Husserl, Jaspers, Lavelle, Berdiaev, entre outros – mas facílimo de impingir a novas gerações que não tiveram acesso universitário às obras desses pensadores ou que foram preventivamente imunizadas contra eles por injeções maciças de desconstrucionismo, chomskismo, multiculturalismo e outros estupefacientes. Na esteira desse fenômeno vem o crescente anticristianismo da mídia e do show business, cada vez mais brutal e descarado, atuando sobretudo através do expediente orwelliano da “reforma do vocabulário”, na qual antigos rótulos pejorativos reservados a extremismos insanos são repentinamente ampliados para atingir a massa inteira dos fiéis, bastando, por exemplo, um cidadão de hoje em dia ser contrário ao aborto para receber o epíteto de “fundamentalista” ou “fanático teocrata”. Acompanha esse cerco a escalada judicial, impondo cada vez mais restrições à liberdade de culto, estrangulando organizações religiosas mediante proibição de contribuições e criminalizando a simples expressão da fé em lugares públicos. Na mesma linha vem a súbita proliferação de pretensas obras de arte que se notabilizam exclusivamente pela astúcia da blasfêmia proposital destinada dessensibilizar a população mediante o truque sórdido do escândalo repetido. Não é necessário dizer que esses empreendimentos vêm geralmente subsidiados pelas mesmas fontes acima citadas.

A onda antiamericanista e antiisraelense, a mais vasta campanha de ódio que já se viu no mundo, subindo no tom até a perda completa do senso das proporções, abriu as portas da grande mídia a um tipo de jornalismo porco que décadas atrás só se via na imprensa partidária comunista. O desinformante profissional e o agente de influência são hoje aceitos como modelos de jornalismo, dominando não só as redações como também os órgãos sindicais da classe, donde exercem sobre o conjunto da profissão um controle monopolístico que torna a censura desnecessária.

Nesse panorama, não é de espantar que ateus de velho estilo, reencarnações de Haeckel e Renan, reapareçam brandindo os mesmos velhos argumentos já mil vezes desmoralizados, mas agora reencorajados em suas pretensões “científicas” pela produção editorial de lixo gnóstico e ocultista em doses avassaladoras, sufocando a oposição pela força da gritaria ricamente subsidiada, facilmente ecoada pelo trabalho voluntário de uma multidão de chimpanzés no Terceiro Mundo.

Que o pretenso materialismo científico apareça tão intimamente aliado à onda ocultista e satanista não deveria surpreender a ninguém. Hoje sabe-se que a fonte mesma do cientificismo – a rebelião iluminista – não brotou senão da mesma fonte gnóstica de onde nasceram o teosofismo e a Nova Era.

Fenômenos como “O Código da Vinci” e “O Evangelho de Judas”, tão manifestamente subsidiários da pseudo-religião mundial em preparação, não têm nenhum significado intelectual em si mesmos e não podem ser discutidos exceto como dados sociológicos de uma época que dá testemunho contra a inteligência humana. Os velhos ateísmos cientificistas que emergem das tumbas não são senão um detalhe patético a mais na chacota geral.

Cinto de castidade

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 16 de abril de 2006

Não restando no idioma pátrio nomes de vícios, pecados, infrações, delitos, aberrações e iniqüidades várias que já não tenham sido usados com inteira propriedade para descrever a conduta dos presentes governantes do país, faz tempo que chegamos àquele ponto de exaustão lingüística em que qualquer outro povo, no nosso lugar, já teria parado de falar e partido para a ação decisiva.

Se não fazemos isso, é por um motivo muito simples: povos não agem, povos apenas sofrem, desejam, sonham e esperam. Quem age são elites organizadas, e no caso brasileiro nenhuma delas pode se mexer, porque todas têm rabo preso . Todas, sem exceção, colaboraram para a criação do presente estado de coisas e têm razões de sobra para temer que qualquer sacolejo mais vigoroso na fortaleza estatal de papier mâché trará à luz, junto com as culpas do governo petista, as suas próprias.

Mas há também um motivo mais sutil por trás dessa paralisia.

Quando o senador Arthur Virgílio, um dos mais veementes acusadores do governo, recua ante a possibilidade de um impeachment que ele próprio reconhece ser justo e fundamentado, a razão que ele alega para esse súbito ataque de covardia é inteiramente plausível – mas é isto mesmo o que a torna ainda mais repulsiva. “Falta de apoio popular”, diz ele. É verdade. Com acusações muito menos graves pesando sobre suas costas, o ex-presidente Collor atraiu contra si, da noite para o dia, uma mobilização nacional tão ruidosa e multitudinária quanto a das Diretas Já. Ninguém, na época, admitiu o óbvio: que nada nessa explosão de ódio foi espontâneo, que tudo consistiu apenas em convocar a rede de organizações militantes que já estava preparada desde muito antes para atender a qualquer chamado de seus líderes e saltar sobre a goela do primeiro que eles a mandassem esganar, linchar ou comer vivo.

Nada de similar existe para ser convocado a gritar nas ruas contra a gangue lulista.

Há 40 anos, a “direita”, ou o que quer que leve esse nome, cedeu ao esquerdismo o monopólio da organização popular, contentando-se com a política de gabinete suficiente para suas finalidades imediatistas e abdicando de todo discurso ideológico próprio.

Vazia de meios e de idéias, essa oposição, ao sentir-se estrangulada pela prepotência petista, não pôde apelar senão ao expediente das imputações criminais assepticamente apolíticas , preservando-se assim de merecer o temido rótulo de direitista (que nem por isso deixou de lhe ser aplicado), mas condenando-se a só poder combater num campo limitado o adversário que, enquanto isso, a atacava por todos os lados.

Ainda assim, a quadrilha instalada no poder foi tão auto-indulgente, tão bestamente confiante, que ultrapassou todos os limites da prudência criminosa e começou a delinqüir em plena luz do dia, tornando-se visível e vulnerável. Foi ferida num só ponto, mas a ferida foi funda o bastante para fazer o monstro balançar. Balançar, porém, não é cair. Vendo a dificuldade de derrubá-lo, seus atacantes começam a vacilar, entregando-se a temores dissolventes e considerações eleitorais desanimadoras, quando deveriam, ao contrário, corrigir seu erro de quatro décadas e ampliar a frente de ataque.

O círculo dos crimes petistas é mais vasto do que sugere a vã filosofia tucana. Vai muito além de encontros sorrateiros num bordel de Brasília. Investiguem o Foro de São Paulo, sigam a pista das conexões entre PT e Farc, e verão que a criminalidade petista não é avulsa nem é traição às raízes comunistas do partido. É conspiração revolucionária, é subversão total da ordem, é destruição fria e premeditada das leis, do direito e da fé pública em escala continental.

Só que, para ter a energia de lutar contra isso, é preciso quebrar o cinto de castidade que a própria hegemonia cultural petista afivelou em seus adversários, que eles tão docilmente aceitaram como prova de bom-mocismo e que acabou por se amoldar ao seu corpo como uma segunda natureza. Para combater um mal tão gigantesco, é preciso algo mais que legalismo, inquéritos e discursos. É preciso virilidade política. Antes de vencer o PT, é preciso superar a carência geral de testosterona.

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