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Votando no capitão

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 11 de outubro de 2007

Quem quer que tenha acompanhado as minhas aulas sobre a “teoria dos quatro discursos” – e, graças à internet, é um bocado de gente, a esta altura – sabe que uma das principais dificuldades na arte da palavra é a mudança de clave do discurso poético para o retórico. Ninguém faz isso direito, porque a primeira das duas modalidades está focalizada na exteriorização de percepções íntimas, a segunda no manejo deliberado das reações do ouvinte ou leitor. Expressão é uma coisa, persuasão é outra. Nos dois casos, trata-se de criar uma verossimilhança, mas a verossimilhança poética é pura coerência entre imagens, a retórica um acordo bem dosado entre o que você quer dizer e o que o público quer ouvir. Por isso o discurso poético se dirige a um auditório geral e indefinido, abrindo-se à multiplicidade imprevisível das interpretações que lhe dêem, ao passo que o retórico se dirige a uma platéia em particular, permanecendo ineficaz sobre as demais, exceto se ouvido como mera produção poética, desligada dos fins práticos a que visava originalmente.

Daí o fenômeno, tão repetidamente comprovado, de que o artista narrador, seja no romance, no teatro ou no cinema, não tenha controle quase nenhum sobre o sentido político-ideológico da história que narra, o qual sentido não depende da narrativa em si, mas dos fatos do mundo exterior – remotos e fora do alcance do artista — a que a platéia associe os episódios narrados, fazendo destes o símbolo daqueles.

Gênios do porte de um Stendhal ou de um Balzac não venceram essa dificuldade – por que deveríamos exigi-lo dos nossos miúdos cineastas tupiniquins? Todos eles são mais comunistas que a peste, mas isso não impediu que em “Central do Brasil” o menino perdido, fugindo do inferno urbano, encontrasse no Brasil rural os antigos valores que são a essência mesma do conservadorismo: a família, a religião, a segurança, o amor ao próximo. Nem que “Cidade de Deus” resultasse numa apologia do que pode haver de mais reacionário e pequeno-burguês: subir na vida por meio do trabalho honesto.

Agora, José Padilha é crucificado pela esquerda porque em “Tropa de Elite”, pela primeira vez, o cinema nacional mostra a violência carioca pelo ponto de vista da polícia, que é o dos cidadãos comuns, e não pelo dos bandidos, que é o da classe artística, dos “formadores de opinião” e do beautiful people esquerdista em geral. Padilha não fez isso porque queria, mas porque, tendo optado por uma narrativa realista, teve de ceder à coerência interna entre os vários elementos factuais em jogo, mostrando as coisas como elas aparecem aos olhos de qualquer pessoa que esteja boa da cabeça e não tenha se intoxicado nem de cocaína nem de Michel Foucault, como o fazem aqueles três grupos de criaturas maravilhosas. O resultado é que no seu filme os traficantes são assassinos sanguinários, os policiais corruptos são policiais corruptos, os policiais bons são homens honestos à beira de um ataque de nervos, os estudantes esquerdistas metidos a salvadores do país são clientes que alimentam o narcotráfico e mantêm o país na m…. Todo mundo sabe que a vida é assim, e é por isso que instintivamente todo mundo acha que descer a mão em bandidos, por ilegal que seja, é incomparavelmente menos grave do que o imenso concurso de crimes – guerrilha urbana, homicídios, seqüestros, assaltos, contrabando, corrupção política – que o narcotráfico traz consigo. Daí que, entre as razões do policial idôneo e as da bandidagem – que são as mesmas da esquerda iluminada –, o povo já tenha feito sua escolha: Capitão Nascimento para presidente.

Ainda a mentalidade revolucionária

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial) , 10 de outubro de 2007

Em acréscimo ao meu artigo de 16 de agosto, eis aqui mais alguns traços que definem a mentalidade revolucionária:

1. O revolucionário não entende a injustiça e o mal como fatores inerentes à condição humana, que podem ser atenuados mas não eliminados, e sim como anomalias temporárias criadas por uma parcela da humanidade, a qual parcela — os burgueses, os judeus, os cristãos, etc. — pode ser localizada e punida, extirpando-se destarte a raiz do mal.

2. A parcela culpada espalha o mal e o pecado por meio do exercício de um poder – econômico, político, militar e cultural. Logo, deve ser eliminada por meio de um poder superior, o poder revolucionário, criado deliberadamente para esse fim.

3. O poder maligno domina a sociedade como um todo, moldando-a à imagem e semelhança de seus interesses, fins e propósitos. A erradicação do mal deve tomar portanto a forma de uma reestruturação radical da ordem social inteira. Nada pode permanecer intocado. O poder revolucionário, como o Deus da Bíblia, “faz novas todas as coisas”. Não há limites para a abrangência e profundidade da ação revolucionária. Ela pode atingir mesmo as vítimas da situação anterior, acusando-as de ter-se habituado ao mal ao ponto de se tornar suas cúmplices e por isso necessitar de castigo purificador tanto ou quase tanto quanto os antigos donos do poder.

4. Embora causado por uma parcela determinada da espécie humana, o mal se espalha tão completamente por toda parte que se torna difícil conceber a vida sem ele. A nova sociedade de ordem, justiça e paz não pode portanto ser imaginada senão em linhas muito gerais, tão diferente ela será de tudo o que existiu até agora. O revolucionário não tem portanto a obrigação — nem mesmo a possibilidade — de expor de maneira clara e detalhada o plano da nova sociedade, muito menos de provar sua viabilidade ou demonstrar, em termos da relação custo-benefício, as vantagens da transformação. Estas são dadas como premissas fundantes, de modo que a exigência de provas é impugnada automaticamente como subterfúgio para evitar a mudança e condenada ipso facto como elemento a ser eliminado. A revolução é fundamento de si própria e não pode ser questionada de fora.

5. Embora conhecida apenas como uma imagem muito geral e vaga, a sociedade futura coloca-se por isso acima de todos os julgamentos humanos e se torna ela própria a premissa fundante de todos os valores, de todos os juízos, de todos os raciocínios. Uma conseqüência imediata disso é que o futuro, não tendo como ser concebido racionalmente, só pode ser conhecido por meio de sua imagem na ação revolucionária presente, a qual ação por isto mesmo se subtrai por sua vez a qualquer julgamento humano, exceto o dos lideres revolucionários que a encarnam e personificam. Mas mesmo estes podem representá-la de maneira imperfeita, por serem filhos da velha sociedade e carregarem em si, ao menos parcialmente, os germes do antigo mal. A autoridade intelectual e profética dos líderes revolucionários é portanto provisória e só dura enquanto eles têm o poder material de assegurá-la. A condição de guia dos povos em direção ao futuro beatífico é portanto incerta e revogável, conforme as irregularidades do percurso revolucionário. Os erros e crimes do líder caído, não podendo ser imputados à sociedade futura, nem ao processo revolucionário enquanto tal, nem ao movimento como um todo, só podem ser explicados portanto como um efeito residual do passado condenado: o revolucionário, por definição, só peca por não ser revolucionário o bastante.

São Ricardo Musse

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 08 de outubro de 2007

Resenhando na Folha de S. Paulo do dia 23 de setembro os meus livros A Dialética Simbólica e O Futuro do Pensamento Brasileiro (É-Realizações, 2007), o sr. Ricardo Musse distingue-se do seu antecessor Wilson Martins porque os leu, fez um esforço sincero de compreendê-los e até que obteve nisso algum sucesso. Nas presentes condições do ambiente cultural brasileiro, e principalmente considerando-se que o resenhista é professor da USP, semelhantes feitos justificam a abertura de um processo de canonização, que já encaminhei ao Vaticano. Louvemos São Ricardo Musse .

O resumo que ele fornece dos livros é exato e fidedigno, e só dois pontos restariam a objetar à sua resenha. O primeiro é a afirmação de que juro fidelidade a Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Gilberto Freyre e Miguel Reale. Honrar exemplos ilustres não é o mesmo que subscrever suas idéias. Propus esses grandes nomes como modelos para a educação brasileira, não necessariamente para mim mesmo. Uma coisa é selecionar os melhores no panorama nacional, outra é escolher num catálogo universal os mestres para um estudante em particular — no caso, eu. A lista dos meus gurus está no meu site, http://www.olavodecarvalho.org , e dos quatro citados só o primeiro se encontra entre eles.

O segundo ponto é a importância exagerada que a resenha atribui a esses dois livros no conjunto do meu trabalho, cuja órbita de interesses os transcende formidavelmente. É erro inocente que não provém de o crítico os ter lido mal, mas de não possuir conhecimento suficiente dos meus demais livros nem muito menos dos meus cursos transcritos – mais de vinte mil páginas, a esta altura. Medida na régua desses dois livros, minha vida de filósofo parece ter por objetivo supremo a crítica cultural, que, na verdade, é apenas o seu ponto de partida.

Num escrito já antigo, de 1997, Esboço de um Sistema de Filosofia , eu resumia o conjunto até então circulante (em livros, apostilas e gravações de aulas) como uma construção em onze etapas ou círculos, dos quais o primeiro e mais exterior era justamente a crítica cultural, ali qualificada como a provocação inicial a todo esforço filosófico.

Ensaios críticos, quase todos eles anteriores ao Esboço, compõem justamente o miolo dos dois livros ora publicados, os quais não podem, por isso mesmo, ser considerados uma exposição adequada do meu projeto intelectual, mas apenas dos motivos mais externos e ocasionais que o determinaram.

Nos dez anos que decorreram desde então, não só o meu pensamento assumiu direções imprevistas e sofreu upgradessubstanciais, mas o plano mesmo que o orientava foi bastante alterado e ampliado.

Como, por outro lado, a crítica cultural, praticada geralmente à moda frankfurtiana ou então desconstrucionista, representa hoje o horizonte máximo da intelectualidade brasileira – que em geral não chega nem a isso, limitando-se à propaganda pura e simples –, o fato de que a resenha encare o meu pensamento sob essa vertente exclusiva, adequando-o portanto às medidas usuais da esquerda acadêmica, pode dar a milhares de bocós a ilusão de que o compreenderam mediante a simples leitura daquelas trinta linhas, e então correremos o risco de que, após tê-lo rejeitado como um produto estranho e incatalogável, saiam pontificando a respeito com a naturalidade de velhos clientes da casa.

A propensão brasileira ao histrionismo intelectual é mais que propensão: é compulsão. O excelente Ricardo Musse não terá nenhuma culpa por isso, é claro, mas terá servido de arma do crime.

Oproblema que a esquerda acadêmica tem comigo é a sua inferioridade intelectual monstruosa, que ela busca compensar pela supremacia burocrática, pela voraz ocupação de espaços, pelo consumo pantagruélico de verbas públicas, pelo controle da mídia cultural, pela afetação histriônica de desprezo olímpico e por uma suscetibilidade autoritária que raia a demência pura e simples. Se a inveja material pode ser curada pela vaga esperança de um dia possuir bens equivalentes aos que a despertaram, a inveja intelectual não dispõe desse atenuante e é o equivalente terrestre de uma condenação eterna. O caráter abstrato e impalpável do objeto invejado torna-o tanto mais inacessível quanto mais a alma do interessado se debate, como é próprio do invejoso, entre o desejo e o ódio, entre a admiração rancorosa e o desprezo fingido.

As portas do espírito só se abrem à perfeita sinceridade de propósitos. Minha obra, como qualquer outra criação espiritual, está perfeitamente protegida contra a curiosidade dos maliciosos, aos quais não resta senão o pobre consolo de tentar roer pelas beiradas a reputação do autor, mediante rotulações absurdas ou intrigas. Sonhar que mentes raquíticas e doentes como as dos srs. Emir Sader e Quartim de Moraes chegarão algum dia a compreender o que é filosofia – conditio sine qua non para um diálogo com a minha filosofia – é esperar que brotem rosas de um porco-espinho. Não cabe a menor dúvida de que num futuro não muito distante esses nomes só serão lembrados – como é hoje o do outrora badaladíssimo José Américo Motta Pessanha – pelas menções lhes concedi nos meus escritos.

A única hipótese de que as coisas não se passem assim é a instalação de um rígido controle estatal da memória pública, como se fez na URSS, com a proibição total de citar autores condenados – mas mesmo esse expediente não fará, a médio e longo prazo, senão realçar grotescamente a impotência intelectual de seus beneficiários, enaltecendo a honra de suas vítimas. A maior glória de qualquer escritor russo, ao longo do regime comunista, foi a de ser excluído da Enciclopédia Soviética .

A presente intelectualidade esquerdista apostou tudo no tráfico de influência e no poder dos truques sujos, nada na busca sincera, no esforço de compreender a realidade. Passadas as disputas políticas do dia, esquecida a trama atual de interesses, ficará nítido que sua contribuição intelectual ao futuro é nula de pleno direito. Sem o suporte do poder político, sua influência se desfará no ar como um pum (digo isso sem desdouro dessas saudáveis efusões da gastrenterologia humana).

A melhor prova disso é o manifesto pró-Quartim, assinado por 1.300 mentecaptos acadêmicos. Tomado no conjunto das anotações que o reforçam, o documento é um mostruário de misérias intelectuais que, em comparação, fariam da Zâmbia uma nova Atenas. Desde a exibição despudorada do analfabetismo endêmico na classe dos professores universitários brasileiros até a pletora de chavões pueris extraídos diretamente da retórica stalinista – sem mencionar um ou outro doente mental que se finge de meu íntimo, portador de informações privilegiadas -, o documento é uma confissão de inépcia coletiva como nunca se viu, coisa de um ridículo tão patente e doloroso que, malgrado a profusão de medalhões que a assinam, os grandes jornais preferiram antes escondê-la, de modo que o único a lhe dar ali alguma divulgaçãozinha, por caridade (ou talvez por sadismo), fui eu.

O que temo é que a ótima resenha da Folha dê a essa gente uma enganosa impressão de facilidade, tornando-lhe aparentemente acessível o que na verdade está e estará para sempre fora do seu alcance, exceto na hipótese remota de uma metanóia , de uma crise espiritual curativa.

 

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