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Por trás das palavras

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de fevereiro de 2010

Por que os direitistas brasileiros se denominam “liberais” em vez de “conservadores”? A escolha das palavras revela uma diferença específica que, bem examinada, basta para explicar a debilidade e o fracasso da direita nacional.

O termo “conservador” denota a adesão a princípios e valores atemporais que devem ser conservados a despeito de toda mudança histórica, quando mais não seja porque somente neles e por eles a História adquire uma forma inteligível. Por exemplo, a noção de uma ordem divina do cosmos ou a de uma natureza humana universal e permanente. Fora do quadro delimitado por essas noções, a “História da humanidade” dissolve-se numa poeira de processos temporais heterogêneos, descompassados, inconexos, não raro incomunicáveis e mutuamente incompreensíveis. Só resta então aceitar a completa irracionalidade da existência histórica ou, não podendo suportar essa idéia, fabricar uma unidade postiça, baseada na “luta de classes”, na “luta das raças”, na “evolução animal”, na dialética hegeliana, no determinismo geográfico ou em qualquer outro pseudoprincípio, que pode ser obtido seja pela ampliação hiperbólica de algum fenômeno empírico limitado, seja, nos casos mais graves, pela invencionice pura e simples. Uma vez estabelecido esse pseudoprincípio, pode-se deduzir dele um “sentido” unilinear da História e, deste, um programa político que se torna automaticamente obrigatório para todos os seres humanos, atirando-se à guilhotina ou aos campos de concentração os discordes e recalcitrantes. Tal é precisamente o trabalho da mentalidade revolucionária. Se as revoluções invariavelmente resultam na implantação de regimes totalitários, não é nunca por algum desvio de seus belos ideais de origem, mas pelo simples fato de que, transfigurada em ação política, a certeza de conhecer o sentido total da História não pode, por definição, admitir que alguém permaneça alheio ao dever de realizá-lo. A mera indiferença política basta então para fazer do cidadão um inimigo da espécie humana.

O conservadorismo, em contrapartida, funda-se na admissão de que a ordem divina não pode nem ser conhecida na sua totalidade nem muito menos realizada sobre a Terra. A eternidade jamais pode ser espremida dentro da ordem temporal, tal como o infinito não cabe dentro do finito. Por isso, em toda política genuinamente conservadora que se observa ao longo dos tempos, a ordem divina nunca é um princípio positivo a ser “realizado”, mas apenas um limite que não deve ser transposto, um critério negativo de controle e moderação das presunções humanas. O conservadorismo é, em essência, um freio às ambições prometéicas do movimento revolucionário e, mais genericamente, de todos os governantes. A modéstia e a prudência, a rejeição de toda mudança radical que não possa ser revertida em caso de necessidade, a recusa de elaborar grandes projetos de futuro que impliquem um controle do processo histórico, a concentração nos problemas mais imediatos e nas iniciativas de curto prazo, tais são os caracteres permanentes da política conservadora. Encarnações eminentes do pensamento conservador ao longo dos tempos são Lao-Tsé, Aristóteles, os profetas hebraicos, Cícero, Sto. Tomás, Richard Hooker, Shakespeare, Goethe, Disraeli, Jacob Burckhardt, Winston Churchill e Ronald Reagan. Malgrado as diferenças de épocas e mentalidades, todos exibem um sacrossanto horror à hübrisrevolucionária, um sentimento agudo de que em política nada é melhor que a moderação e a prudência.

Que não haja nem possa haver um conservadorismo perfeito, é algo que decorre da definição mesma do conservadorismo. Quando o amor à ordem divina se inflama ao ponto de fazer esquecer a impossibilidade humana de realizá-la no mundo histórico, ou quando a resistência a um projeto revolucionário específico se cristaliza na ambição de invertê-lo materialmente, elementos do discurso conservador são absorvidos e integrados num discurso revolucionário substitutivo que, travestido de conservadorismo, pode seduzir parcelas imensas da população, inclusive as mais tradicionalistas e reacionárias, usando-as como bucha de canhão em aventuras políticas suicidas.

Revolução é, em essência, todo projeto de mudança social e política profunda a ser realizado mediante a concentração de poder. O conservadorismo expressa a resistência natural, geral e espontânea da alma humana a deixar-se usar como instrumento a serviço de promessas irrealizáveis sob o guiamento de líderes pretensamente iluminados. Quando a contra-revolução, em vez de contentar-se em ser apenas uma medida de emergência contra uma situação de fato, se enche de sonhos de glória e cria seu próprio projeto de mudança social profunda, ela própria se torna um movimento revolucionário. Eis por que o conservadorismo é a mais forte linha de resistência contra todas as revoluções “de esquerda” e “de direita”. Os exemplos de Dolfuss e Churchill na década de 30 bastam para ilustrar o que estou dizendo.

O liberalismo, em contraste, é a resistência a uma modalidade específica de projeto revolucionário, o socialismo. Ambos nasceram no século XIX e se definem um ao outro como irmãos inimigos. Ao socialismo a proposta liberal opõe a defesa da economia de mercado e das liberdades políticas no quadro do moderno Estado laico. A todos os componentes do movimento revolucionário que escapem da definição formal de socialismo, que portanto não ataquem diretamente esses dois pilares da ideologia liberal, o liberalismo não pode oferecer nenhuma oposição eficaz. Nada, no discurso liberal, oferece fundamento sólido para a rejeição do abortismo, do feminismo radical, da liberação de drogas, do gayzismo, do multiculturalismo, da guerra assimétrica, da abolição das soberanias nacionais ou da destruição de todos os pilares culturais e religiosos milenares em que se assenta a possibilidade de existência do próprio liberalismo. Quando essas bandeiras se tornam as principais armas de propaganda do movimento socialista, só resta ao liberalismo opor-lhes uma resistência muito fraca, fundada em argumentos de legalidade formal, ou então aderir a elas, na esperança louca de parasitar a força retórica do discurso socialista para fins de imediatismo eleitoral. Nesta última hipótese, cada miúdo triunfo eleitoral dos liberais torna-se mais uma vitória ideológica de seus adversários.

Mea culpa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de fevereiro de 2010

Recebi outro dia mais um rosário de queixas contra a minha pessoa e os meus escritos, onde o remetente acreditara encontrar provas inequívocas da minha maldade, prepotência e demoníaca soberba, além de uma infinidade de erros lógicos, factuais, morais e gramaticais que, se comprovados, bastariam para fazer de mim um forte candidato a ministro da Cultura do governo Dilma Roussef.

Como em geral acontece nesse gênero de mensagens, porém, os erros que o sujeito me imputava eram apenas aparências de erro nascidas de uma leitura mal feita, se não de uma percepção estruturalmente deformada, o efeito mais geral e permanente daquilo que no Brasil se chama, por motivos insondáveis, “educação”. Só para dar um exemplo, o cidadão se dera o trabalho de revirar o Google para saber quantas vezes eu repetira tal ou qual termo técnico, expressão latina ou alusão literária e daí concluir, por um salto lógico imensurável, que eu não tinha o direito de acusar os esquerdistas de escreverem todos da mesma maneira, com cacoetes de linguagem que os identificam à distância. Em suma, ele confundia aquele conjunto de cacoetes personalizados, que assinala a presença de um estilo, com a perfeita falta de estilo que se observa na repetição coletiva de cacoetes uniformes. Felizmente, o signatário estava tão brabo comigo que prometia não ler nenhuma resposta que eu lhe enviasse, o que me eximia de tentar destrinchar uma por uma – como se isto fosse possível! — as suas prodigiosas confusões mentais. Gratíssimo por essa gentileza, contentei-me em enviar-lhe o breve conselho de que parasse de se masturbar diante da minha imagem, e dei o caso por encerrado.

No entanto, depois, refletindo mais longamente, descobri por baixo dos erros aparentes denunciados pela criatura alguns vícios reais da minha escrita, que dão margem a equívocos sem fim quando caem ante os olhos de leitores ineptos ou maliciosos, sem contar os ineptos e maliciosos.

O mais letal desses vícios é cortejar os leitores em geral, e os mais burros em especial, mediante uma falsa impressão de simplicidade e clareza, buscada com as mais lindas intenções didáticas mas que, no fim das contas, induz o primeiro recém-chegado a crer que tudo compreendeu à primeira vista – senão a imaginar que apreendeu o conjunto inteiro do meu pensamento pela leitura de algumas amostras casuais –, e a reagir de pronto mediante alguma opinião fácil, já imunizada no berço contra aquela exigente confrontação de hipóteses que é a única via para se chegar à verdade, tanto na interpretação dos fatos quanto das palavras.

A clareza, dizia Ortega y Gasset, é a cortesia do filósofo. Iludido por essa promessa barata de fazer de mim um tipinho simpático aos olhos do mundo, acabei por esquecer que “cortesia” vem da mesma raiz de “cortejar” e “cortesão”, e que o conselho do grande prosador espanhol ameaçava jogar-me, das alturas espirituais em que eu acreditava mover-me, ao fundo do mais abjeto e imperdoável puxa-saquismo literário: a prática de um estilo tão sedutoramente claro e límpido que faz o leitor imbecil sentir-se inteligente ao ponto de querer puxar discussão comigo antes de ter tido sequer o vago e fugaz impulso de discutir consigo mesmo. Esse efeito é inevitável desde o momento em que se adote aquele estilo, pois a coisa mais impossível para o imbecil é discutir consigo mesmo, em voz baixa, sem o apoio de um interlocutor de carne e osso: defrontado com alguma afirmação que lhe soe estranha ou desconfortável, esse tipo de leitor não resistirá à comichão de impor à força as funções de interlocutor real, e não simplesmente mental, ao infeliz autor daquilo que acaba de ler. É assim que acabo me transformando, para toda uma categoria de leitores – mais numerosa no Brasil do que em qualquer outra parte do mundo –, naquilo que em psicoterapia se chama ego auxiliar, uma boa alma encarregada de completar no mundo físico, para maior clareza, os pensamentos que o paciente, por si, não tem energia bastante para pensar por inteiro nem coragem bastante para admitir que os pensou. Contando comigo para o desempenho desse trabalhoso ofício no seu teatrinho mental, o cidadão me envia então os mais toscos e informes pensamentos semipensados, forçando-me a acabar de pensá-los e a compreendê-lo, portanto, melhor do que ele próprio se compreendeu.

Ao contrário, porém, do que acontece nas psicoterapias propriamente ditas, onde o sujeito sabe que foi lá para que o ajudem a pensar em voz alta, os remetentes dessas deformidades não têm a menor idéia de que estão me pedindo socorro terapêutico. Em vez disso, enviam-me aqueles rabiscos de pensamentos possíveis como se não fossem apenas materiais brutos para uma possível elaboração interior e sim idéias já maduras e firmes, claras e bem definidas, prontas a ser discutidas, provadas ou refutadas. Pior ainda, quanto mais intenso o seu desconforto interior, quanto mais agitada a sua confusão de imagens e sensações, quanto mais aguda a sua impossibilidade de pensar, tanto mais o desgraçado interpreta esses sentimentos como se fossem expressões formais de uma discordância intelectual, e tanto mais ousado e desafiador é o tom em que me escreve. O sentimento que essas mensagens me infundem é de uma comicidade triste, pirandelliana, onde o deslocamento radical entre as palavras ditas e a situação psicológica de onde emergem, ou, dito de outro modo, entre consciência e realidade, raia a loucura pura e simples sem chegar a ser loucura em sentido clínico, detendo-se naquele perigoso meio-termo que é a loucura socialmente legitimada como normalidade.

A culpa, reconheço, é minha. Se eu escrevesse de maneira complicada e obscura, se eu pelo menos me abstivesse de usar certos truques pedagógicos para despertar a intuição no leitor, nem o mais presunçoso dos imbecis julgaria me compreender: todos se recolheriam àquele silêncio humilde que, a longo prazo, pode ser propício a um esforço de meditação. Mas também não posso me acusar além da medida justa. Se infundo nos imbecis uma confusão de sentimentos, provocando situações que acabam por ser incômodas para mim mesmo, o fato é que não fui eu quem povoou dessas criaturas esta parte do mundo, nem lhes ordenei que crescessem e se multiplicassem. Isto é mérito exclusivo do establishment educacional, ou dele em cumplicidade com a mídia, os políticos e os “formadores de opinião” em geral.

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