Apostilas

Ser e Conhecer – 4

UniverCidade, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2000

Aula gravada. Transcrição de Alexandre Bastos

A idéia que inspira esta série de aulas é da total redução da gnoseologia à ontologia. Trata-se de eliminar o preliminar crítico, a crença de que primeiro é necessário criar uma teoria do conhecimento para depois, com base nela, chegar, se possível, a uma ontologia.

Mas essa é apenas uma das idéias, a outra é eliminar a dualidade do racional e do intuitivo, reduzindo tudo ao intuitivo. Se tivesse tido a oportunidade de expor isso ordenadamente nestas aulas, em vez de abordar as partes do assunto um tanto a esmo e ao sabor da ocasião, como o fiz, eu partiria do rastreamento histórico das origens da questão do conhecimento no mundo moderno, da origem do primado do sujeito. Primeiro, mostraria como o subjetivismo de origem cartesiana está presente em todas as escolas, inclusive as mais antagônicas a qualquer idealismo, pois até escolas materialistas, como o marxismo, aceitam implicitamente a prioridade do sujeito: a diferença, no marximo, é que é um sujeito coletivo. Mostaria que todos esses três séculos decorridos desde Descartes estão contaminados com o primado do sujeito.

Tendo verificado em seguida a total inviabilidade do projeto cartesiano, também colocaríamos entre parênteses toda a questão da fenomenologia, que não é senão um meio de tentar realizar o projeto cartesiano com mais fundamento — o próprio Husserl, em seu livro Meditações Cartesianas, diz inspirar-se em Descartes, e declara que só quer aprofundar o cartesianismo até um nível a que o próprio Descartes não chegou. É claro que nesse empreendimento chega Husserl a várias conclusões que podemos aproveitar, mas eu gostaria até de saltar essa preliminar fenomenológica, se possível também neutralizando-a, pois ela ainda está dentro da idéia do “preliminar kantiano”, e a minha idéia é eliminar completamente os preliminares, mostrando que são projetos inviáveis. E, para isso, é necessário voltar ao já exposto na aula “O problema da verdade e a verdade do problema”: tantas vezes quantas seja formulada essa questão, tantas vezes sua investigação será bloqueada por contradições internas da formulação mesma. Então, é preciso retomar o próprio Descartes, e aí entra, propriamente, minha crítica do Descartes: a idéia mesma de colocar entre parenteses o objeto do conhecimento, e ficar só com o sujeito, também é impossível: há um curto-circuito desde o início, e chega a ser espantoso que ninguém tenha mexido nesse problema antes. Ora, sujeito e objeto são um modelo, uma distribuição de papéis, e ambos não são senão funções desempenhadas por determinados elementos, nenhum dos quais corresponde inteiramente à função respectiva: não é concebível nem o puro objeto nem o puro sujeito. Assim, segue-se que o que existem são situações onde um elemento desempenha tal papel, e o outro o outro papel — mas essa situação é que é o decisivo, pois tanto podemos chamá-la de conhecer como de existir, já que não há nenhum motivo para dizer que o aspecto cognitivo predomina sobre o aspecto existêncial, se existir é, simplesmente, transmitir e receber informações.

Historicamente, as primeiras análises do fenômeno do conhecimento atacaram diretamente o ato de conhecimento sem perguntar se esse ato não seria espécie de algum gênero. Na verdade, o conhecimento é espécie do gênero relação — é uma relação entre dois entes. Se isso tivesse sido levado em conta, teria resolvido muitas questões relativas ao problema do conhecimento: todas e quaisquer relações que existem entre quaisquer seres são transmissões de informações, não há uma sequer que seja outra coisa. Portanto, essa modalidade de relação chamada “conhecimento” é apenas uma modalidade, entre milhares de outras, de transmissão de informações (é claro que com suas características diferenciais específicas). Agora, se o próprio existir é transmitir e receber informações, então não existe um estudo do conhecimento que possa colocar o existir entre parênteses, caso contrário teríamos o caso de uma espécie que coloca entre parenteses o próprio gênero ao qual pertence. Assim, só é possível estudar o conhecimento como modalidade da relação, ou seja, como algo que acontece àquilo que existe; ou, dito de outro modo, estudá-lo como maneira de existir. Mas essa não é uma maneira qualquer entre outras, e sim a maneira essencial — não é concebível nenhuma, nenhuma forma de existência que não seja, em essência, recepção e transmissão de informações. O tempo todo algo é transmitido e algo é recebido: se bloquearmos toda a entrada ou saída de informações não teremos mais um ente existente, mas apenas o conceito abstrato de uma espécie. Podemos conceber, por exemplo, uma figura geométrica: Qual a modalidade de existência de uma figura geométrica? Ora, ela só existe idealmente como conceito de espécie: Que é um quadrado senão o conceito de quadrado? Ele não é outra coisa senão seu próprio conceito, ele possui mera existência ideal e lógica, existe como possibilidade de relação matemática e só. Ou seja, não existe de maneira alguma: ele faz parte do possível, não do real. Isso não quer dizer que uma figura geométrica não transmita informação; mas ela transmite sempre a mesma, a informação essencial. Que é que o quadrado nos transmite senão o conceito de quadrado? É essa a definição do inexistir real: o que existe apenas como possibilidade lógica transmite uma única informação, que diz que o ente é aquilo que ele é. Quando lidamos com pura definições, no reino puramente lógico, os entes não têm senão existência puramente lógica, e não nos passam outra informação senão o conteúdo de seu próprio conceito. Mas existir realmente é transmitir algo mais que seu próprio conceito: é transmitir propriedades, acidentes etc. E por isso mesmo essa dimensão acidental passa a ser essencial para a existência. Aí temos a idéia, esboçada no meu livreto sobre Aristóteles, do acidente metafisicamente necessário. Algumas aspectos das coisas são acidentais, mas, sem eles, esses entes não poderiam existir. Esses acidentes, portanto, só são acidentais do ponto de vista lógico: para a existência, são essenciais. A estatura do homem é acidental, perfeitamente, mas não é acidental, para a existência, que ele tenha estatura, pois não pode haver um homem sem uma precisa estatura.

Portanto, com esse enfoque, todos os problemas metafísicos e gnoseológicos acabam por tomar outra face, mediante essa simples observação de que as questões fundamentais levantadas sobre esses assuntos não são abordadas e de que, sem elas, todas as teorias do conhecimento são projetos simplesmente inviáveis. Todos são assim, todos prometeram o que não podem fazer: o projeto cartesiano da fundamentação do conhecimento objetivo a partir do sujeito não vai dar em nada; o projeto kantiano da crítica da razão tampouco: o que se cria é um curto-circuito que não permite fazer progredir o conhecimento. Como conseqüência, como não há progresso, não há possibilidade de acumulação de conhecimentos, essa impossibilidade passou a ser vista, por filósofos da tradição kantiana, como um dos traços essenciais da filosofia. Eu mesmo já vi introduções à filosofia que diziam o seguinte: existem conhecimentos que progridem, como a ciência, e outros que não progridem, como a filosofia. É o caso de dizer que filosofia não é conhecimento de maneira alguma, como dizia Jean Piaget: filosofia, para ele, não é conhecimento, é uma coordenação de valores. Mas, como se pode coordenar algum conhecimento se a própria regra coordenante não é conhecimento? É o mesmo que ter uma regra do jogo sem nenhum conhecimento do jogo. Ora, se a filosofia não é conhecimento ela não é absolutamente nada. Wittgenstein dizia: filosofia não é conhecimento, mas uma atividade. Certo, mas atividade de quê? De conhecer, naturalmente. Isso tudo são subterfúgios: ou a filosofia é uma ciência, ou não é nada. E se é uma ciência, tem de ser possível colocar as questões, investigá-las e chegar a alguma solução. Mas desde Descartes e Kant todas as questões filosóficas não têm mais solução — todo o ciclo moderno é abortado pela sucessiva formulação de projetos impossíveis. Que é o projeto de Nietzche? É a transvaloração de todos os valores. Eu digo: pode parar, isso não é possível, pois, se você derrubar todos os valores, no fim sobra você, e você passa a ser o valor. Mas você não tem mais fundamento do que os valores que derrubou, você também é apenas fingimento e auto-engano, você é um pobretão sofredor que se faz de Anticristo para se consolar da sua miséria. Então, tudo começa com uma proposta muito arrojada e termina mal: é assim com o projeto cartesiano, com o kantiano, com o marxista, com o de Nietzche. O projeto de Wittgenstein, por exemplo, termina mal duas vezes: o primeiro projeto, o da linguagem absolutamente desprovida de ambiguidades, desprovida de qualquer elemento intuitivo, não dá em nada e então Wittgenstein passa para o segundo projeto, o da crítica da linguagem comum. Ora, só há uma forma de fazer a crítica da linguagem: a partir de algo que não é linguagem, como os dados dos sentidos, por exemplo. Ora, não é possível uma linguagem absolutamente coerente, em todos os passos, pois, se assim o fosse, dispensaria os fatos: ou seja, seria totalmente coerente na medida em que não falasse de coisa nenhuma. E de fato é aí onde chega Wittgenstein: por um lado temos uma linguagem totalmente coerente e formalizada, mas sem conteúdo algum; por outro lado há um conteúdo anárquico, atomístico, sem qualquer elo interior, que ele chama de “fatos”. É claro que isso é um projeto abortado.

No fundo toda essa aparente modéstia metodológica da filosofia moderna — todas começam com autocríticas da capa

humana — termina numa pretensão desmedida: pois seus projetos ultrapassam a capacidade humana.  Mais ainda: todos esses projetos não se justificam. Por que fazer a crítica da razão pura? Por que fundamentar o conhecimento no sujeito? Por que transvalorar todos os valores? Por que transformar o mundo em vez de tentar conhecê-lo. Não há razão suficiente para nada disso.

Quando digo que determinados projetos filosóficos são inviáveis, é porque levantam perguntas sem sentido. Por exemplo, fundamentar o conhecimento objetivo a partir do sujeito considerado isoladamente é uma impossibilidade: se alegam ter abstraído todas as coisas, e ter apenas sobrado o sujeito, como produzir o objeto a partir do sujeito? Descartes vai buscar um mediador em Deus, mas, se é necessário apelar a Deus, é porque é necessário um milagre: a filosofia de Descartes é tão inviável que, para realizá-la, é preciso um milagre.

Esses projetos filosóficos são todos abortivos por sua excessiva pretensão. O filósofo cai nessa pretensão ao tentar achar o fundamento absoluto de um objeto cuja presença ele suprime na mesma hora. Qual a possibilidade de conhecer um objeto que não está lá? Nesse sentido, toda a filosofia moderna é louca, a começar por Descartes. Ela cai na famosa definição de Borges: metafísica é um cego, num quarto escuro, procurando um gato preto… que não está lá.

Vejam que mesmo o projeto de Popper é inviável: ao dizer que as teorias ciêntificas válidas são aquelas que ainda não foram impugnadas, ele concede a toda teoria científica uma espécie de licença para o erro infinito. Se não temos um método positivo de afirmação da verdade, então não há nenhuma possibilidade de, de antemão, impugnar outras possibilidades de contestação que possam surgir. Assim, qualquer teoria está aberta a uma crítica infinita, e entramos no reino da total insegurança, onde conhecer e não-conhecer passam a ser a mesma coisa. Assim, pelo método popperiano, caímos no total irracionalismo, no convencionalismo científico, onde o único recurso que nos sobre é o apelo à autoridade científica  — “tem de ser assim porque o consenso diz que é”. Também é evidente que, não havendo confirmação positiva da verdade, é puro eufemismo dizer que na passagem de uma teoria impugnada a outra ainda não impugnada há um “progresso”. Não existe “progresso” ao longo de uma linha infinita, onde a idéia mesma de movimento é anulada por hipótese. Ou há um padrão de perfeição, ainda que meramente ideal, ou então é impossível distinguir processo, retrocesso e estagnação.

Mas, existe algo em comum entre todos esses projetos, que os condene à inviabilidade desde o começo? Existe, sim: é a proposta de que o projeto filosófico tenha de engolir o mundo, e não ser apenas uma parte dele: no fundo o que todos querem é encontrar a fundamentação filosófica do mundo, mas se a primeira coisa que fazem é suprimir o mundo, como será possível fundamentá-lo? É possível, certamente, fundamentar o mundo, mas para isso, em primeiro lugar, é preciso aceitar o mundo. É preciso reconhecer que a filosofia é apenas uma das muitas coisas que o homem faz no mundo, que a filosofia é uma resposta a uma situação que já está dada, e que ela só responde às perguntas que foram colocadas naquele momento e naquele lugar. Ou seja, ela pode remeter a uma ordem de conhecimentos e princípios universais, mas nunca vai expressar aqueles princípios na totalidade  — a função da filosofia não pode ser essa. Isso não quer dizer, no entanto, que a filosofia tenha de se contentar com o parcial e fragmentário. Quer dizer apenas que ela tem de ter a consciência de participar do todo em vez da pretensão de “abarcã-lo”. A consciência de participação é uma forma de conhecimento tão exata quanto a utópica visão desde fora, com a vantagem de ser viável. Se a função da filosofia é uma função reflexiva e crítica, de certo modo, o trabalho dela é remeter a certos princípios que já são conhecidos por participação: podem ser difíceis de exprimir, podem variar na expressão de tempos em tempos, mas a filosofia não tem de se preocupar com dar-lhes uma formulação uniforme e universalmente aceita precisamente porque o trabalho dela não é abarcá-los dentro de si, mas lembrá-los, tornar possível a sua reconquista na consciência de homens reais que em seguida terão todo o direito de os formular como desejem. A filosofia é uma correção de trajeto: ela não vai traçar o trajeto, pois este já está dado: esse trajeto é o mundo. Quando a mente humana começa a fantasias muito, e sair da realidade, a escapar da consciência viva dos princípios, a filosofia corrigem a rota, e isto é tudo. A filosofia não visa a dizer qual o sistema do mundo, pois o sistema do mundo já existe e está no próprio mundo. Se não partirmos disso, nunca iremos encontrá-lo: o mundo é sistema, e o código do sistema está no próprio mundo. Nós, como participantes dessa realidade, temos esse código em nós, e o conhecemos na medida do papel que nesse todo desempenhamos: não mais que isso. Assim,  todos os códigos que compõem uma tartaruga estão na tartaruga, senão ela não poderia ser tartaruga. Todos os códigos que compõem cada ente estão refletidos em todos os demais entes, mas refletidos de maneira inversa:  por exemplo, na tartaruga estão refletidos todos os códigos que a diferenciam de um gato — se faltar um só, a tartaruga estará imperfeita, será indistinta de um gato. Se tomarmos dois entes, todas as diferenças que os separam estão registradas nos dois — não podem estar registradas num só –, mas de maneiras diferentes e multiplamente complementares. Então, o sistema do mundo está refletido no mundo e em nós também: de maneira direita na nossa constituição enquanto homens, de maneira indireta na nossa diferença em relação a todos os demais homens e a todos os demais seres e coisas, inclusive o todo universal. Essa lei imanente, que tem de existir absolutamente, é o que chamamos sabedoria. É a sabedoria que está no próprio ser, na realidade mesma, e que pode estar presente também no homem segundo uma modalidade especificamente humana. E o que é filosofia? É o amor à sabedoria. É a reconquista de um conhecimento desse sistema universal, que está dado o tempo todo, e que conhecemos reduzidamente mas suficientemente. Então, é um conhecer que é um ser. O ser humano tem em si todas as determinações que o fazem humano, que o fazem ser fulano ou ciclano individualmente e que o fazem existir, ser real num universo real. Não é possível que ele abarque em toda sua mente subjetiva todos elementos dessa constituição, pois, se abarcasse, não abarcaria não só conceitualmente mas existencialmente: seria necessário produzir um novo homem que contivesse o primeiro, o que não é possível.  Portanto aquilo que você tem em você como ser, quando rebate no plano do seu conhecer subjetivo, rebate de maneira reduzida. Mas, em compensação, você conhece a constituição de muitos outros seres. Esse conhecimento, não é necessário registrá-lo porque o próprio real é o registro deles, e essa realidade, de certo modo, não é opaca, é translúcida: você pode sempre voltar à leitura dos mesmos registros. Não é necessário saber tudo, pois o universo sabe tudo e ele está permanentemente à nossa disposição. Ele é a nossa memória, a nossa biblioteca, o nosso saber. Ele, e não o nosso cérebro. E qual o papel da filosofia? É restaurar no ser humano a confiança e a capacidade da leitura dos registros no ser: no momento em que o ser deixa de ser opaco para alguém, está cumprida ali a função da filosofia. Agora, é necessário fazer a transcrição do ser? Ora, se é transcrição é parcial, ela não é o próprio ser. E é feita apenas para responder apenas às perguntas determinadas que alguém fez. Assim, a função da filosofia não é fazer a doutrina universal, mas remeter-nos à própria realidade, que já é a sua própria doutrina, a doutrina do ser que transluz no corpo do próprio ser. A função da filosofia é corretiva e, por isso, a maior parte da atividade filosófica é reflexiva e crítica. Nesse sentido é que não acredito em “progresso infinito do conhecimento”, mas sim em conhecimento infinito. O ser que se dá a conhecer é infinito e se dá a conhecer infinitamente. O real é infinito, é inteligível, e é inteligível infinitamente: no momento em que compreendemos isso, estamos curados: terminou a missão da filosofia, e, então começa a sabedoria: Que é sabedoria? É o conhecimento, e, se o é, não pode ser uma doutrina, mas a própria modalidade da nossa existência. Onde está a sabedoria? Está no homem sábio, não no que ele disse, pois o que ele disse pode não ser compreensível para todos. Há sabedoria nos provérbios de Salomão? Sim, mas apenas se a compreendermos, caso contrário não há nenhuma: o que há, isso sim, é o testemunho da sabedoria. E onde está a sabedoria de Salomão? Está em Salomão, e, se a compreendermos, ela já não será mais sabedoria de Salomão, e sim nossa. Daí podemos entender que a finalidade da filosofia é fazer sábios: é despertar a possibilidade da sabedoria, que não é senão a inteligibilidade direta do real. Existem obstáculos para atingi-la: obstáculos de ordem moral, fisiológica, cultural. Esses últimos obstáculos, criados pela própria atividade de busca do conhecimento, são os que a filosofia pode remover.  Por isso, se a sociedade não chegar ao ponto de criar confusão na esfera cultural, não há necessidade de filosofia.

Não se pode transmitir a sabedoria porque a sabedoria é o real, não o que pensamos ou dizemos a respeito dele. Caímos hoje numa série de ambiguidades por estarmos acostumados a entender sabedoria como conteúdo de consciência, não como algo que está no ser, no real. Onde está a ciência da mineralogia? Está nos livros de mineralogia? Não: ela está nos minerais. Se assim não fosse, ela não poderia estar também nos livros de mineralogia. Os livros são apenas registros que criam um intermediário humano entre nós e o mineral, de modo que não é necessário recapitular todas as observações anteriores para chegarmos até o mineral. Se ao estudarmos um tratado de mineralogia conhecermos apenas o que nele está escrito, sem referência aos minerais enquanto coisas reais, então não sabemos nada.

O real propriamente dito é registro infinito de conhecimento, essencialmente translucidez, acidentemente obscuridade, pelo jogo dos reflexos devido a uma ocasional posição impropícia que assumimos para enfocá-lo – aí é necessário mudar de posição. Ora, mas se tomarmos todas as possíveis dificuldades de foco, e, com elas, tentarmos formar um sistema, formaremos o mundo das sombras, o sistema da ignorância. É a isso que a filosofia acadêmica francesa tem se dedicado nos últimos trinta anos. Ora, é necessário eliminar essa idéia de que conhecimento só existe na mente humana, e entendermos que conhecimento é uma relação ativa existente entre o ente e o restante do real, o qual é conhecimento, ainda que sob a forma potencial. Tome a própria idéia de observação: para entender a vida dos tigres, nós os observamos. Ora, se nenhum conhecimento sobre tigres transparecesse na conduta dos tigres, de que adiantaria observá-los? Se o conhecimento existisse apenas na mente humana, ao observarmos o tigre não conheceríamos o tigre, mas apenas a nós mesmos, a nossos pensamentos — e cairíamos no curto-circuito kantiano: estamos observando apenas fenômenos que não são senão projetados por nossa forma cognitiva, portanto não estamos vendo um tigre, mas estamos vendo a nós mesmos e chamando de tigres os nossos esquemas lógicos e formas de percepção. Muito bem, mas aí o tigre come o filósofo kantiano, e que é que havemos de dizer? Que foram as formas a priori que comeram? Ora, o tigre que nos ataca é o mesmo que antes conhecíamos; ou seja, o objeto que conhecemos é o mesmo com que nos relacionamos fisicamente e praticamente.

Conhecimento e ato de conhecer são certamente distintos. O real é registro infinto de conhecimentos. Existe, entretanto, o ato de conhecimento, que apenas ocorre nos atos individuais concretos. E mesmo assim, quando estes ocorrem, ocorre duplamente, não apenas no sujeito: os escolásticos dizem que ao conhecermos algo, esse objeto não é alterado pelo fato de nós o conhecermos. Mas isso não é totalmente exato: aquilo que conhecemos está transmitindo informação a seu respeito naquele mesmo momento, e ser conhecido por um outro é alterar-se, sim. Não é alterar-se internamente, mas alterar sua relação com o mundo em torno.

Imagine o primeiro homem que descobriu o diamante. Naquele mesmo instante não apenas o homem transformou-se, mas também transformou a relação do diamante com o homem, ou seja, daí por diante tudo foi diferente não só para os homens mas também para os diamantes. Tornar-se conhecido é ser alterado, não internamente, é claro, mas relacionalmente. Foi porque os diamantes se tornaram conhecido que os homens começaram a escavar para procurar diamantes. No mínimo, cada coisa conhecida abre uma nova possibilidade de ação sobre ela: a partir daquele momento, ela pode sofrer um tipo de ação que antes não podia. Dizer que o objeto não foi alterado em nada é o mesmo que dizer que, para o objeto, ser conhecido ou não ser é o mesmo: ora, mas não me é possível comer um frango se nunca o conheci. Ser conhecido abre, para o objeto, a possibilidade de uma nova paixão, de sofre um novo tipo de ação –- isso muda o destino dele, o lugar dele na ordem cósmica. É uma mudança objetiva.

Se entendermos que o real é registro de conhecimento, poderemos compreender o porquê do símbolismo do “grande livro da natureza”: o que é ele senão o símbolo da inteligibilidade do real? E o homem tem, dentre os seres do mundo físico, o privilégio de poder conhecer teoricamente todas as relações entre todos os seres que estejam a seu alcance. Isto é, o homem é o local onde esta inteligibilidade da natureza se realiza sob a forma de linguagem, mas não podemos esquecer que esta é apenas uma relação entre milhares de outras possíveis.

Por isso a filosofia tem sempre de ser sistêmica, tem de ter um centro e não pode ser arbitrária, mas não pode ser “sistemática”. Sistêmico é aquilo que tem um centro e se desenvolve de forma mais ou menos orgânica a partir desse centro, sistemático é aquilo que procura conscientemente abranger e conter nos seus próprios limites o todo. É perda de tempo tentar uma filosofia sistemática: é o mesmo que tentar recriar o universo. Mas ela tem de ser sistêmica no sentido em que se refere ao sistema do universo, não perde de vista a sistematicidade do próprio real. Ela não é um amontoado de observações anárquicas, mas tampouco se constitui da construção sistemática de um todo abrangente. Quando desenhamos uma árvore, tentamos desenhá-la de todos os ângulos possíveis? Não, o que tentamos fazer é um retrato parcial referido ao todo e ao sistema, um retrato parcial que esboce, signifique ou aponte para essa totalidade — quanto mais simples for o desenho e quanto mais claramente apontar para o centro do sistema, melhor. Então, a finalidade da filosofia é devolver o indivíduo a esta posição de observador central, na qual o conteúdo sapiencial da própria realidade se mostra para ele. E quando ela se mostra? Quando ele quer: o universo responde quando perguntamos. Se for possível recuperar essa posição, está realizada a função da filosofia. Aí começa a sabedoria propriamente dita.

Ser e Conhecer – 3

Tema para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

§ 1. Definição da Filosofia. — Filosofia é busca da unidade do saber na unidade da autconsciência e vice-versa.

§ 2. Composição do saber. — O saber compõe-se de:

  1. informações dos sentidos internos e externos:
  2. estruturas inatas diretamente condicionadas pela forma do corpo humano;
  3. registros organizados na memória;
  4. estruturas simbólicas transmissíveis.

§ 3. Divisões do saber. O conhecimento. – I. O saber divide-se em:

  1. Memória pessoal.
  2. Experiência pessoal, isto é, memória assumida e personalizada.
  3. Estruturas simbólicas assimiladas.
  4. Estruturas simbólicas produzidas.

II. Estas duas últimas constituem o campo do conhecimento propriamente dito. Elas absorvem as anteriores e as subentendem.

§ 4. A experiência da unidade. O corpo. Autodomínio e domínio. — I. A unidade funcional do corpo humano é o primeiro modelo do tipo de unidade cujo análogo mais tarde se buscará na esfera do saber. Ela assume a forma concreta de um sistema vivente de órgãos subordinados à vontade individual. Ferimentos, doenças, dores, mutilações, enfraquecimento assinalam rupturas parciais dessa unidade. Ter um corpo capaz de realizar, dentro dos seus limites próprios, a nossa vontade individual, é a primeira condição do autodomínio. O autodomínio é a primeira condição da ação no mundo. No curso da ação no mundo, o corpo encontra limites externos, que, através de aprendizado e adaptações, busca transcender. O conjunto dos limites transcendidos forma o seu domínio. O domínio pode estreitar-se por efeito de fatores externos sem que por isto se estreite o autodomínio, mas toda limitação do autodomínio produz o estreitamento do domínio.

II. A unidade do saber é um autodomínio estendido às estruturas simbólicas assimiladas e personalizadas.

§ 5. Ego. – Ego é a experiência pessoal condensada na forma de uma identidade corporal constante no tempo. É experiência pessoal sistêmica.

§ 6. Autoconsciência. — É o autodomínio no nível do ego. Você tem consciência de algo quando tem em seu poder não somente (a) uma informação, mas também (b) a informação de que tem essa informação e (c) a informação de que essa informação é sua, isto é, de que ela agora faz parte integrante do sistema do seu ego. A fórmula para a é: Sei. Para b é: Sei que sei. A fórmula para c, isto é, a fórmula da autoconsciência, é Sei que sei que sei.

§ 7. Ego e autoconsciência. Consciência autoral. Ego e poder do Ego. — I. A existência do ego supõe a coincidência espaçotemporal da identidade corporal com o sujeito da experiência pessoal, ou, dito de outro modo, a identificação do sujeito objetivo com o sujeito subjetivo da experiência pessoal. Esta identificação, a que doravante chemarei consciência autoral, não é automática, pois só pode se realizar na autoconsciência, a qual, sendo um autodomínio, um poder, só existe mediante o exercício (embora possa se conservar por algum tempo enquanto mera potência). Observa-se, em certos estados patológicos e hipnóticos, a ruptura da consciência autoral (fragmentação do ego). Esta ruptura permanece como possibilidade mesmo quando não se realiza. Assim, pois, a consciência autoral é contingente e não necessária. Nada, absolutamente nada no mundo natural pode obrigar um indivíduo a ter consciência autoral, e, em contrapartida, nada no mundo natural pode abolir a conexão objetiva que faz de um indivíduo o autor dos seus atos (internos e externos), o sujeito de sua experiência pessoal. É o mesmo que dizer: você é você e não pode deixar de ser você, mas que ninguém pode obrigá-lo a admitir isso, exceto você mesmo. (A possibilidade da coerção sobrenatural será discutida bem mais adiante e pode ser deixada de lado neste ponto.)

II. O conhecimento pressupõe a experiência pessoal, a experiência pessoal pressupõe a consciência autoral, a consciência autoral é livremente assumida por um sujeito que, não obstante, se não a assumir, não deixará de ser objetivamente autor de seus atos. Não se pode portanto dizer que o Ego se constitui a si mesmo, porque ele já recebe seu fundamento da unidade corporal objetiva e do fato bruto da autoria objetiva. Apenas, esse fundamento objetivo não pode terminar de constituí-lo sem a anuência dele. Esta anuência é só subjetiva, pois objetivamente ele continua autor de seus atos mesmo sem ela. Mas, pela anuência, o Ego, já existente, se assume a si mesmo como autoconsciência, e é isto que o constitui como poder. O Ego sem poder do Ego é o Ego vazio e inoperante que se observa naqueles estados que a psiquiatria denomina, hiperbolicamente, “perda da identidade”.

§ 8. Consciência autoral e unidade da experiência pessoal. – A experiência pessoal só pode ter unidade quando tem como centro a consciência autoral, que distingue o fazer e o padecer, isto é, o sujeito como autor de seus atos e como receptor de atos seus e alheios. Por outro lado, é evidente que a unidade da experiência pessoal está subentendida em toda aquisição, conservação e transformação de conhecimentos.

§ 9. O sujeito como objeto. Atos imanentes e transitivos. – Nenhum sujeito, enquanto sujeito autoconsciente, pode ser autor de atos (externos ou internos), sem ser, ipso facto, receptor deles. Todo ato tem um feedback, condição de seu registro memorativo e, portanto, de sua continuidade autoral no tempo. Estar consciente de si enquanto autor de atos é estar consciente de si enquanto receptor deles. A noção aristotélica de atos imanentes e transitivos adquire aqui uma nova nuance: o ato é imanente quando o autor é autor e receptor sob o mesmo aspecto; é transitivo quando o autor é autor sob um aspecto e receptor sob um outro aspecto. Por exemplo, se massageio meus próprios músculos, recebo a ação sob o mesmo aspecto em que a emiti, isto é, aplico e recebo a massagem. Mas, se chuto um gato, não recebo meu próprio chute, e sim apenas a informação de que chutei o gato. Todos os atos transitivos são portanto imanentes (sob outro aspecto), mas nem todos os atos imanentes são transitivos (sob qualquer aspecto).

§ 10. Inseparabilidade de autoconsciência, imanência e transitividade. – Estar autoconsciente ao praticar um ato inclui a distinção exata e instantânea entre o que ele tem de imanente e de transitivo, no sentido acima. Se não sei se agi só sobre mim mesmo, sobre um outro ou sobre ambos, e sob quais aspectos, então não sei se agi de maneira alguma.

§ 11. Transcendência da autoconsciência. — A autoconsciência inclui portanto constitutivamente sujeito, objeto e sua reunião-distinção no ato. Uma autoconsciência solipsística não é autoconsciência de maneira alguma, exceto metonimicamente (tem algumas das propriedades ou partes da consciência sem chegar a ser autoconsciência). No sujeito, a autoconsciência é, já na sua constituição mesma, um transcender-se. A autoconsciência solipsística (cartesiana) só pode ser construída ex post facto como hipótese lógica (por abstração e supressão voluntária de dados da memória), jamais ser objeto de experiência. É mais ou menos como um homem normal imaginar-se autista – coisa que um autista não pode fazer.

§ 12. Transitividade, imanência e retenção. Ego e “mundo”. — Se a autoconsciência é, ipso facto, consciência da dosagem de transitividade e imanência do ato praticado, ela o é igualmente, mutatis mutandis, no ato padecido: estar autoconsciente enquanto receptor de um ato é distinguir, nessa recepção, aquilo que é puramente transitivo (isto é, aquilo que me vem de um não-eu) e aquilo que, nela, é imanência minha, por exemplo sob a forma de retenção, no tempo, de uma informação já completada. Por exemplo, acabo de receber um pontapé. O pontapé já terminou, no tempo, mas continuo sentindo a dor que ele provocou: esta dor, que prolonga em meu corpo o ato alheio já terminado, é parte dele na medida em que vem dele como efeito, mas ela, agora, só existe em mim e não nele. Sem esta retenção, nenhum ser pode ser autoconscientemente receptor de nada. Mas também não o pode se a retenção é mera retenção de sensações ou imagens, se ela não contém em si a exata distinção do que me veio como transitividade pura e do que entra nela como imanência minha. Não há portanto autoconsciência sem a consciência do não eu-como agente. Não apenas não existe autoconsciência solipsística, mas não existe a autoconsciência num mundo de puros objetos, num mundo sem outros sujeitos. A existência de sujeitos agentes fora do eu, assim como o pleno reconhecimento dela pelo eu, são elementos constitutivos da autoconsciência mesma. Por isto o eu, quando nega os outros agentes ou os reduz a meros objetos, não cessa de existir, mas cessa de ser um poder, retorna ao estado de pura potencialidade vazia. O Ego só existe como poder num mundo de agentes, num mundo de sujeitos. O “mundo”, portanto, não vem ao Ego desde fora, como um simples “dado”, mas já se impõe desde dentro, como condição da possibilidade mesma do Ego como poder. E não cabe em gnoseologia discutir o Ego-sem-poder, pois este não é sujeito de conhecimento e aliás só existe como possibilidade teórica e construção lógica hipotética, cuja simples formulação já prova, no ato, sua própria irrealidade, exatamente como no caso do “imaginar-se autista”. Por desgraça, o Ego que foi objeto central de atenção durante todo o período que vai de Descartes á fenomenologia de Husserl foi o ego sem poder, ao qual se atribuiu, como hipótese mágica, o dom de conhecer, daí resultando uma infinidade de problemas insolúveis e, na verdade, perfeitamente insensatos.

Lógica e consciência

Olavo de Carvalho

Nota para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

10 de maio de 2000

A coesão de raciocínio lógico ou é a suprema expressão da continuidade de consciência de uma personalidade bem integrada ou é um formalismo aprendido, oco e sem vida. Dessa diferença depende a eficácia ou ineficácia do discurso lógico em “apreender a realidade”. Mas, para complicar as coisas, essa não é uma diferença que ressalte das simples qualidades formais do discurso, as quais podem ser as mesmas num caso e no outro. Para apreendê-la, é necessário uma recapitulação não só dos atos intuitivos pelos quais a mente apreendeu os objetos dos conceitos correspondentes, mas também daqueles pelos quais a unidade dos nexos lógicos entre esses conceitos se tornou visível como unidade entre os objetos e suas propriedades reveladas à intuição; e é necessário que esta dupla recapitulação mesma não se esgote na pura análise, mas reconquiste a unidade do ato intuitivo único correspondente à apreensão da tripla unidade do discurso, do objeto e da estrutura discursiva imanente ao objeto.

Como a maior parte das pessoas não é capaz de fazer nada disso, o discurso lógico lhes parece mero formalismo precisamente porque o seu discurso lógico é mero formalismo; e, de certo modo, a construção desse formalismo já lhes é tão dificultosa que lhes parece inconcebível que alguém consiga efetuar análoga construção não com meros signos, mas com percepções e coisas. Tal operação lhes parece tão impossível como alterar um objeto real mediante simples modificações no seu desenho rabiscado num papel. No entanto, é nessa aparente “mágica” que reside o poder do pensamento eficaz, que essas pessoas contemplam sem compreender e sem mesmo chegar a admitir que exista, e para cujos efeitos visíveis têm de encontrar então algum tipo de explicação realmente mágica e irracional.

Nesse tipo de mentalidade, que pode se considerar dominante entre os autodenominados “homens comuns” — um título que lhes parece credor de honras especiais –, a “impressão de realidade” se esfuma e se desfaz à medida que eles se afastam das percepções imediatas e dos sentimentos mais intensos e se aventuram nos domínios do pensamento abstrato. A abstração, neles, é efetiva separação, e não aquela simples duplicação dos níveis de atenção que para o filósofo experimentado é operação corriqueira.

A causa dessa dificuldade reside, segundo me parece, num insuficiente domínio da imaginação, a função mediadora que permite ir e vir entre as representações sensíveis e os conceitos abstratos. A diferença entre a mente apta e a inapta para a filosofia reside sobretudo em que a primeira possui um mundo imaginário mais organizado e integrado – mais estetizado, de certa maneira. Através dos graus sucessivos de formalização estética, a mente transita mais facilmente da experiência direta à reflexão verbal e vice-versa, enquanto a imaginação desordenada bloqueia a passagem mediante a interposição de uma massa de imagens disformes e inconexas, carregadas de apelos inconciliáveis.

Mas, por caridade, não confundam essa qualidade imaginativa com alguma espécie de talento artístico, “criatividade” ou coisa assim. Aquilo a que estou me referindo nada tem a ver com a criação de produtos artísticos, pois não é uma estetização de determinadas formas em particular, com a finalidade de transformá-las em obras, em quadros, em poemas e em músicas, mas sim uma estetização global do campo de experiência individual tomado como um todo e, portanto, não objetivável artisticamente já que toda objetivação pressupõe o estreitamento do campo de atenção até o limite da singularidade de um só objeto.

A reflexão filosófica exige, assim, uma expécie de apreensão estética da vida mesma, e ela começa, precisamente, no ponto em que essa apreensão, ao defrontar-se com aquilo que na realidade é absolutamente inestetizável, encontra o seu próprio limite e requer a entrada em cena de uma superior estratégia cognitiva.

O uso do termo “estético” também não deve induzir ao erro de supor que se trate de uma apreensão meramente contemplativa, objetivante e “desinteressada”, pois ela inclui necessariamente a autoconsciência do sujeito enquanto inseparavelmente cognoscente, agente e paciente no drama universal aí apreendido. Talvez coubesse falar em “sentimento do mundo”, se a palavra sentimento não tivesse conotações tão mesquinhas hoje em dia.

Admito que o conceito que estou procurando expressar, embora claro no seu conteúdo próprio e interno, não é nítido o bastante, isto é, suficientemente distinto de outros conceitos em torno, e por isto ainda é preciso recorrer a imagens e símiles para sua exposição, provisória portanto, mas suficiente para o momento.

Enfim, sem uma certa integração estética da visão pessoal do mundo, o acesso à filosofia está bloqueado. Mas, como a imaginação é diretamente condicionada pelos sentimentos e desejos, uma certa limpidez psíquica – ao mesmo tempo uma consciência clara dos próprios sentimentos e desejos e um senso aguçado da responsabilidade pessoal de harmonizá-los numa totalidade pessoal capaz de projetar-se numa ação coerente sobre o exterior e compor ao longo do tempo uma “unidade biográfica” – é a condição moral sine qua non do aprendizado filosófico. A filosofia não é para as almas toscas, mal arranjadas, provisórias e meio submergidas no “inconsciente”. A filosofia pressupõe a maturidade, num sentido muito mais exigente do que a mera adaptação ao entorno imediato que esse termo usualmente designa. A filosofia responde a perguntas que só o indivíduo amadurecido pode fazer a si mesmo e, nesse sentido, ela, radicalmente, não é coisa para crianças, seja no sentido etário do termo, seja no sentido daquele resíduo de puerilismo que parece irremovível da alma da quase totalidade dos nossos contemporâneos.

Veja todos os arquivos por ano