Olavo de Carvalho+

Diário do Comércio, 25 de maio de 2009

Há pelo menos quarenta anos o debate político neste país gira em torno da escolha entre livre mercado e intervencionismo estatal, identificados respectivamente com a “direita” e a “esquerda” e incumbidos de definir automaticamente, a partir dessa base econômica, as demais alternativas humanas em todos os campos da cultura, da legislação, da moralidade, etc. Quando alguém se define como “liberal”, é portanto automaticamente classificado entre os direitistas, conservadores e reacionários, tornando-se, em contrapartida, socialista, progressista e revolucionário tão logo mude para o campo do intervencionismo estatal. Os ícones das facções respectivas são Roberto Campos e Celso Furtado.

Quando outros fatores – de ordem moral, cultural, geopolítica ou militar – intervêm na disputa, complicando o quadro e privando o distinto público dos confortos do esquematismo primário, a única reação do cérebro nacional é tentar recuperar às pressas seu estado de equilíbrio homeostático mediante a proclamação de que a esquerda e a direita não existem mais, de que o mundo entrou numa fase de unanimismo paradisíaco e de que, em suma, não há mais nada a discutir, exceto os nomes destinados a preencher os cargos na hierarquia da paz universal.

Passando, assim, de um esquematismo bocó a outro mais bocó ainda, acreditam ter superado todo conflito ideológico e ascendido às alturas de um pragmatismo sublime, onde, extintas as paixões baixas, reina soberana a razão tecnocientífica, nada mais importando senão o cálculo objetivo de custos e benefícios.

Infelizmente, tudo isso são ilusões autolisonjeiras, destinadas a resguardar a mente humana de um confronto com as dolorosas complexidades do mundo real.

Desde logo, a escolha entre livre mercado e intervencionismo é uma coisa quando encarada como alternativa teórica, como modelo abstrato de sociedade ideal, e outra coisa completamente diversa quando inserida no quadro histórico e geopolítico concreto. A bandeira da liberdade econômica foi erguida, primeiro, contra os despotismos monárquicos. Naquela época ela se identificava com as forças da revolução. Um liberal estava mais próximo de um socialista que de um monarquista ultramontano. Mais tarde, com a ascensão dos totalitarismos estatistas russo e alemão, a liberdade de mercado tornou-se “reacionária”. Contra a ameaça socialista, os liberais davam agora a mão a seus inimigos de outrora, monarquistas e conservadores cristãos. Esta segunda forma adquirida pelo debate ideológico, que é aquela na qual ainda se baseia a distinção usual brasileira entre direita e esquerda, já foi de há muito absorvida e transcendida por uma terceira equação. O livre mercado tornou-se o pretexto com que as forças globalistas interessadas na construção de um governo mundial controlador e despótico vão minando as soberanias nacionais e induzindo povos inteiros a abdicar de todas as demais liberdades em troca do simples poder de comprar e vender. O argumento de que a liberdade econômica traz consigo todas as demais liberdades é aí usado como pretexto para produzir o resultado oposto: suprimir todas as liberdades exceto uma. Concomitantemente, essas mesmas forças globalistas dão apoio bilionário a todas as organizações esquerdistas e revolucionárias do mundo, para jogá-las contra os Estados nacionais, daí resultando que muitos adeptos do livre mercado, imaginando-se embora homens da “direita”, acabem se juntando à rebelião esquerdista contra os tradicionalismos morais e culturais, que para uns são obstáculos à revolução, para outros, entraves ao livre mercado. Unidos pelo apego a velhos estereótipos deslocados da situação presente, ambos não percebem que, em sua luta contra o Estado nacional, que uns odeiam como reacionário e os outros como intervencionista, só contribuem para que, sobre as ruínas de tantos Leviatãs menores, se erga o Grande Leviatã do Estado mundial.

O conflito ideológico não terminou. Apenas complicou-se formidavelmente. A luta entre a liberdade e a tirania assumiu novo formato, no qual os engenheiros da tirania, jogando com os símbolos convencionais do debate político, conseguiram colocar a seu serviço até mesmo os adeptos da liberdade.

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