Olavo de Carvalho


 O Globo , 26 de janeiro de 2002

No famoso “Imposturas intelectuais”, Alan Sokal pôs em teste a erudição científica dos mestres da esquerda contemporânea — Althusser, Foucault, Derrida, Lacan et caterva — e demonstrou que eram todos charlatães da mais baixa espécie.

O historiador australiano Keith Windschuttle, em “The killing of History”, prova que em matéria de conhecimentos históricos eles não se saem nada melhor. Somem-se a isto os impiedosos exames lógicos empreendidos por Roger Scruton em “Thinkers of the new left” e a descrição apocalíptica que em “Tenured radicals” Roger Kimball apresentou da devastação mental das universidades americanas submetidas à influência desses gurus, e sobra no fundo de tudo apenas uma pergunta: como foi possível que durante meio século a intelectualidade esquerdista, a casta letrada mais pretensiosa que já existiu, a que mais candidamente se arrogou a missão de guiar o mundo, se deixasse por sua vez guiar pelos mais estúpidos, perversos, mentirosos e incapazes?

A resposta é que estamos diante de um fenômeno coletivo de racionalização neurótica, com todas as conseqüências letais que o esforço de fugir da realidade pode ter sobre a inteligência humana. “Neurose é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita”, dizia meu falecido amigo Juan Müller, um gênio da psicologia clínica. Quando o vendaval de fatos em torno ameaça remover a mentira de dentro do entulho inconsciente, a alma se agarra a subterfúgios cada vez mais desesperados, mais inconseqüentes e mais tolos para evitar o choque da luz, a revelação libertadora da culpa longamente negada.

A culpa, no caso, não poderia ser mais incontornável. Por toda parte onde conquistou o poder, o socialismo provou a essência maléfica e genocida dos ideais pretensamente lindos que o inspiravam.

Explicar cem milhões de mortos, o Gulag e o Laogai como efeitos acidentais e epidérmicos da aplicação de idéias que em si permanecem sublimes e generosas é mais do que pode o discurso humano.

Moralmente, socialismo e nazismo são indiscerníveis. Querem um exemplo? Leiam Máximo Gorki, o piedosíssimo Gorki de “A mãe”, que até hoje arranca lágrimas da militância pueril e senil. Ele aconselhava a seus companheiros de luta: “O ódio de classe deve ser cultivado por meio da repulsa orgânica ao inimigo, enquanto ser inferior, enquanto degenerado não somente no plano moral, mas no físico.” O doutor Goebbels não o diria com mais brilho. Partindo daí, como não concluir com Sartre que Robespierre, aquele frouxo, não matou gente o bastante?

Ter empenhado toda a força dos seus talentos na defesa de semelhante monstruosidade fez de gerações inteiras de intelectuais de esquerda cúmplices de crimes contra a espécie humana, exatamente no sentido em que esses crimes são definidos no Código Penal da própria pátria dos Sartres e Bourdieus: “Deportação, escravização ou prática sistemática e em massa de execuções sumárias, de tortura ou outros atos inumanos, inspirados por motivos políticos, raciais ou religiosos, segundo plano concertado contra um grupo de população civil.”

O pertinaz embelezamento do genocídio é culpa suficiente para alimentar na alma da intelligentzia esquerdista o terror ante a mera possibilidade de um Julgamento de Nuremberg para os crimes do comunismo. Desde 1956, com o Relatório Krutchov, esse terror veio crescendo, até atingir a máxima intensidade com a queda da URSS e a abertura dos arquivos de Moscou. À medida que ele crescia, enrijeciam-se as defesas neuróticas, proliferavam os subterfúgios, superavam-se em inventividade os contragolpes retóricos e as manobras diversionistas.

Tudo o que a casta letrada esquerdista escreveu e disse desde a década de 50 não passa de uma sucessão de encenações desesperadas para escapar à consciência de suas culpas. Tudo: chantagens morais, intimidações de testemunhas, afetações histéricas de horror ao liberalismo, acrobacias lógicas concebidas para separar de suas conseqüências históricas um platônico marxismo ideal. In extremis, apelou-se à demolição da lógica, da linguagem e da cultura. Quando já não se pode negar a realidade, resta destruir o próprio senso da realidade. Não sendo possível apagar a luz, furam-se os olhos da platéia. Se toda a humanidade aderir à semiótica, ao desconstrucionismo, à etno-história, ao relativismo, ao historicismo absoluto etc., ninguém mais poderá associar com certeza razoável as idéias aos atos, os atos às conseqüências: tudo se tornará incerto, e ninguém mais terá de suportar a medonha consciência de ter feito o que fez. A elite esquerdista terá livrado sua cara, à custa de mergulhar a Humanidade nas trevas.

Os reflexos dessa alucinação auto-induzida dos intelectos mais covardes e mendazes que já ocuparam o cenário público do Ocidente vão parar longe — e quanto mais longínquos, mais grotescos. Nem um perfeito charlatão pode competir, em ridículo e miséria, com macaqueadores de charlatães: tal é a diferença entre a intelligentzia esquerdista da Europa e a do Terceiro Mundo. A farsa do centro repercute, na periferia, como imitação de farsa. Farsa da farsa. Se num Althusser ou num Foucault a mentira existencial conservava ao menos a autenticidade da tragédia interior que ela encobria, já nem esse farrapo de dignidade resta a seus imitadores tupiniquins. Os efeitos sociais de seu duplo fingimento são portentosos: toda a história cultural e política do Brasil nos últimos quinze anos pode ser descrita como a progressiva perda, pelas classes falantes, do mais elementar discernimento moral, diluído na mistura de tagarelice pseudo-intelectual nas universidades e de vociferação pseudo-ética nos palanques.

No auge da pantomima, aqueles que ensinaram aos delinqüentes a técnica dos seqüestros e os princípios da organização paramilitar; que durante quarenta anos adularam a alma criminosa até instilar nela o orgulho autobeatificante e a ambição de poder sem limites; que apregoaram do alto das cátedras e dos púlpitos o desprezo a toda moral, a toda lei, a toda autoridade; que assim colocaram a sociedade inteira no banco dos réus ante um júri de assassinos e seqüestradores — esses mesmos, quando o monstro que criaram escapa de seu controle e se volta contra alguns deles, de repente aparecem em público travestidos de paladinos da ordem. Choram por seus companheiros mortos o que nunca choraram por milhares de vítimas de seus pensamentos, transmutados em ações cruentas pelo fértil convívio na Ilha Grande. Nos seus rostos, nenhum sinal de arrependimento. Nenhuma dúvida, nenhuma inquietação moral. É que para ter problemas de consciência seria preciso ter consciência. Livres desse mal, partem para a terça-feira gorda do longo carnaval sangrento envergando sua nova fantasia com a naturalidade de quem tivesse nascido dentro dela. Disto, nem os mais escorregadios charlatães parisienses seriam capazes. A mentira brasileira tem profundidades que seus próprios modelos desconhecem.

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