Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 11 de julho de 2005
WASHINGTON, DC – Todo mundo no Brasil imagina que a CIA é uma espécie de KGB de direita, um governo invisível dominando com mão de ferro uma multidão inerme. No plano internacional, uma vasta organização subterrânea empenhada em fomentar golpes de Estado, assassinar intelectuais esquerdistas e implantar por toda parte o império do capitalismo ianque.
Se essas fantasias imitam tão simetricamente o modelo da espionagem soviética, é porque foi ela mesma que as criou à sua própria imagem e semelhança, invertendo apenas o signo ideológico da sua realidade macabra para formar o desenho de um tipo de organização que, num país com eleições e imprensa livre, jamais teria condições de existir. Esse desenho foi espalhado pelo Ocidente através de toda uma imensa subcultura editorial e cinematográfica produzida, sobretudo, entre os anos 60-80.
Após a abertura dos Arquivos de Moscou, ninguém mais tem o direito de ignorar, por exemplo, que o enredo conspiratório do filme de Oliver Stone, “JFK”, saiu direto dos escritórios da KGB, nem que o ex-agente Philip Agee, badaladíssimo pela mídia popular pelas denúncias escabrosas que fez contra a CIA no seu livro Inside the Company: CIA Diary (1975), esteve sempre na folha de pagamentos do serviço secreto soviético e hoje é um agente full time do governo cubano. Mas não há país do mundo em que esses fatos tenham sido suprimidos mais sistematicamente da mídia do que o Brasil. Resultado: as balelas mais sonsas postas em circulação por aquela subcultura tornaram-se, aí, verdades de evangelho cuja contestação ainda soa, no mínimo, “polêmica”, isto quando não lança sobre o contestador a fama de psicótico… ou de agente da CIA.
Para avaliar a distância entre o imaginário brasileiro e os fatos, basta notar que aqui nos EUA também circula uma multidão de livros contra a CIA , mas que a maioria deles a acusa de fazer exatamente o contrário do que os brasileiros imaginam que ela faz. Nenhum americano razoavelmente culto ignora que esse serviço de inteligência, há bastante tempo, trabalha mais para grupos políticos – de esquerda em geral – do que para o governo do seu país. Isso começou na era Reagan. Ronald Reagan foi um grande presidente, mas nas últimas semanas de mandato fez uma burrada monumental: privatizou uma parcela importante dos serviços secretos. Quem podia comprar comprou um pedaço e o pôs a serviço de si próprio. A família Clinton, por exemplo, tem lá seu feudo particular. Sem saber dessas coisas, o público brasileiro entende às avessas acontecimentos importantes como a falsa informação sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein. O que aos olhos brasileiros pareceu uma desculpa maquiavélica inventada por George W. Bush para legitimar a invasão do Iraque (até hoje isso é repetido na mídia nacional como obviedade de senso comum) foi na verdade uma cama-de-gato armada para o presidente por gente desleal dentro da CIA. Daí a limpeza geral que o governo está fazendo nesse serviço de inteligência, trocando tipos suspeitos por funcionários concursados.
Uma das melhores fontes para estudar o assunto são os artigos de Jack Wheeler, filósofo que abdicou da carreira acadêmica para levar uma vida de aventureiro, caçador de tigres e estudioso de culturas primitivas, acabando por ser conhecido como “o Indiana Jones da direita”.
Wheeler trabalhou na CIA por algum tempo e não modera as palavras ao dizer o que viu lá dentro: um panorama que vai da indolência anárquica ao antipatriotismo militante de altos funcionários empenhados em amarrar as mãos dos agentes por meio de exigências “politicamente corretas” impossíveis de cumprir, quando não em sonegar ao governo informações vitais para a segurança do país. Wheeler me disse que o empreendimento mais importante do governo Bush era justamente a reforma dos serviços de inteligência, mas que seus resultados seriam muito lentos, tamanhas as resistências que encontrava entre os marajás remanescentes da era Clinton.
Mesmo depois da conversa com Wheeler, porém, eu não imaginava que essas resistências podiam chegar ao ponto do boicote sistemático e da rebelião ostensiva. O que me abriu os olhos foi o livro de Curt Weldon, Countdown to Terror (“Contagem Regressiva para o Terror”), publicado há uns meses pela Regnery e a mais importante dentre as obras sobre a CIA que entraram na lista de bestsellers do New York Times .
O autor é um deputado pela Pensilvânia, reeleito consecutivamente por vinte anos. Durante sua experiência como vice-presidente de duas comissões parlamentares encarregadas de assuntos de segurança, Weldon obteve informações confiáveis de um dissidente iraniano sobre esquemas terroristas diretamente concebidos pelo governo de Teerã. O principal era o plano de atirar aviões com pilotos suicidas não sobre um simples prédio comercial como no 11 de setembro, mas sobre o reator nuclear de Seabrook, Massachusetts, ocasionando uma catástrofe do tipo e das dimensões de Chernobyl. O informante dava também detalhes sobre a fabricação da bomba atômica iraniana em íntima associação com a Coréia do Norte – um projeto em estágio muito mais avançado do que se imaginava no Ocidente –, descrevia a rede de agentes iranianos infiltrados no Iraque para espalhar o terror e esmagar no berço a democracia iraquiana, e resumia atas e mais atas do “Comitê dos Nove”, a entidade criada pelo governo do Irã para coordenar a atividade terrorista em escala internacional. Dizia ainda que Osama bin Laden se encontrava refugiado no Irã como hóspede de honra e que entre os projetos terroristas em andamento estava o assassinato do ex-presidente George H. W. Bush.
Mas a surpresa maior estava por vir. Quando tentou passar essas informações para a CIA , Weldon se defrontou não só com uma barreira de má-vontade e indolência, mas com uma hostilidade ativa que tentava por todos os meios – inclusive a ameaça de coerção física – bloquear o acesso ao informante e impedir que os dados fornecidos por ele chegassem ao primeiro escalão do governo.
Isso continuou mesmo depois que a mais espetacular das revelações, a do ataque a Seabrook, foi integralmente confirmada pela prisão, pelo governo canadense, de um grupo de terroristas preparados para realizar a operação – o que, segundo Weldon, não significa que o plano tenha sido abandonado e não esteja sendo levado adiante neste preciso momento, em algum outro lugar do mundo.
Weldon tentou por todos os meios articular os vários serviços de inteligência para que fizessem a análise cruzada dos dados, mas todos os seus esforços foram boicotados de maneira tão ostensiva que ele desistiu de buscar a atenção do governo e resolveu apelar diretamente ao povo americano, publicando os relatórios do seu informante clandestino na esperança de que a opinião pública pressione o governo para levar a fundo a reforma do sistema de segurança.
“Este livro – escreve ele no prefácio – é um ato de desespero. Trago-o à presença do leitor porque não consegui que a comunidade de informações fizesse nada a respeito, embora minha fonte tenha provado sua credibilidade e embora a informação que ela fornece anuncie um ataque terrorista maior aos Estados Unidos.”
Não é possível ler essas coisas e continuar não enxergando o abismo de diferença entre a realidade da CIA e o que se escreve a respeito dela na nossa mídia.
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O Brasil sempre viveu mais ou menos à margem do mundo, descompassado com o tempo histórico, incapaz de absorver as idéias vivas mas pronto a recolher e cultuar com devoção necrófila os resíduos da sua decomposição tão logo o restante da humanidade as tivesse esquecido por completo.
Não digo isso, é claro, com base no preconceito historicista de que as idéias são apenas expressões do “seu tempo”, sem valor permanente. Não é disso que estou falando. O que quero dizer é que idéias não são senão reações da mente humana a determinadas situações vividas. Quando as situações mudam, as idéias criadas em resposta a elas mudam também de significação e têm de ser reinterpretadas à luz do tempo histórico transcorrido. Quando elas chegam com atraso, desacompanhadas do respectivo upgrade cronológico, o risco que isso implica não é o de estar fora da moda – coisa que, em si, pode ser até saudável. É que essas idéias então adquirem uma espécie de força autônoma, deixando de funcionar como interpretações da realidade e sendo tomadas como se fossem elas próprias a realidade. Pior: como os seres humanos que as absorvem acabam agindo em função delas, elas criam mesmo uma espécie de realidade substitutiva, feita só de palavras e símbolos, que para quem vive dentro dela é a realidade tout court . Vidas inteiras podem transcorrer dentro desse cenário de ficção sem jamais dar-se conta de que não viveram realmente, apenas pensaram e falaram.
A história da cultura brasileira – e da política brasileira – não passa, nesse sentido, da história de uma prodigiosa alienação, de um divórcio completo entre experiência vivida e pensamento. A vacuidade, o sem-sentido, a impotência de lidar com a realidade condenam o país a uma sucessão de fracassos aparentemente sem explicação, que, de quando em quando, num paroxismo de revolta contra o destino incompreensível, ele tenta superar por meio de sobre-esforços de transformação ainda mais deslocados e inúteis.
A última dessas cíclicas convulsões pseudo-libertadoras foi a onda de entusiasmo nacional pela “ética”. Sob a inspiração desse fetiche verbal, a nação inteira se mobilizou para destituir um presidente supostamente corrupto, que depois de derrubado acabou sendo totalmente inocentado na justiça, bem como para elevar ao poder um “partido ético” que veio a se revelar uma máquina de corrupção incomparavelmente mais vasta e daninha do que todos os Anões do Orçamento, PCs Farias, Cacciolas e Juízes Lalaus somados.
Esse resultado era previsível, mas para prevê-lo era preciso saber que a expressão mesma “partido ético” se originara na Itália, nos anos 30, com o ideólogo Antonio Gramsci, como expressão técnica do vocabulário comunista destinada a designar a habilidade que o partido revolucionário deveria ter de amoldar a moral social às exigências da sua própria luta pelo poder. Como ninguém sabia disso, a palavra “ética” foi comprada pelo seu valor nominal, deslocado do contexto originário e preenchido de conotações morais sublimes, de tal modo que a nação inteira colaborou alegremente na acumulação de lixo petista no instante mesmo em que imaginava “passar o Brasil a limpo”. Transformadas em cúmplices de seu próprio ludíbrio, co-autoras do seu próprio escárnio, não é de estranhar que agora as classes falantes deste país se sintam inibidas de dar à situação presente as suas dimensões reais e não aceitem denunciá-la senão com toda sorte de ressalvas eufemísticas destinadas a salvar pelo menos um pouquinho da reputação dos acusados – preocupação que ninguém teve diante de casos de gravidade incomparavelmente menor, onde os suspeitos, não raro objetivamente inocentes, foram entregues às feras sem dó nem piedade, entre urros de sadismo “ético”.
Na época, o PT usava e abusava de uma oratória hiperbolicamente alarmista, na qual qualquer grupelho de suspeitos era imediatamente ampliado às dimensões de um “sistema paralelo” e qualquer indício de safadeza vulgar se tornava um iminente golpe de Estado, um risco apocalíptico para a segurança nacional. O observador atento notaria de imediato, no descompasso mesmo entre a retórica e os fatos, a presença do intuito de camuflagem. Hoje tornou-se evidente que o único “sistema paralelo” em formação na época era o próprio PT, que, seguindo o velho conselho de Lênin, acusava os outros de fazer o que ele próprio, assim, podia fazer com toda a tranqüilidade, a salvo de qualquer suspeita.