Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 5 de julho de 2001

Um dos exemplos mais estonteantes da vigarice que domina a cultura moderna é a atitude do establishment acadêmico ante a psicanálise: pois, ao mesmo tempo que lhe nega todo estatuto de ciência, celebra a explicação psicanalítica do fenômeno religioso como uma vitória da ciência sobre a superstição.

Ou seja: as investigações que a psicanálise realiza no seu próprio domínio especializado não são científicas, mas miraculosamente o são as conclusões que ela tira delas para o remotíssimo campo da história cultural. É como um cliente sem fundos no banco acreditar que seu saldo negativo pode ser investido no mercado de ações.

Tamanha intrujice não poderia ser admitida num cérebro humano normal sem a ajuda daquela cegueira específica que se chama viés ideológico: a necessidade de apostar na mentira para justificar uma opinião anteriormente assumida. No caso, essa opinião é a que identifica ciência com materialismo, religião com fantasia e superstição. Quando uma doutrina não científica parece sustentar esse dogma, ela adquire retroativamente o estatuto de científica, mesmo entre aqueles que sabem que de científico ela não tem nada.

Esse joguinho de esconde-esconde pelo qual uma consciência comodista finge que não vê aquilo que vê perfeitamente bem é hoje o padrão mesmo da mentalidade do mundo acadêmico. A prestidigitação que legitima a psicanálise da religião é só um exemplo. Outro é a sucessão de “releituras” com que se arranjam ex post facto significações mais aceitáveis para teorias desacreditadas. Os intelectuais marxistas vivem disso – e, pior ainda, crêem que é uma atividade perfeitamente respeitável. E não é preciso mencionar a legião de estruturalistas, desconstrucionistas, adeptos da estética-da-recepção e outros pelo gênero, que já tratam de introduzir a ambigüidade na própria formulação originária de suas doutrinas, prevendo a inevitabilidade das futuras acomodações semânticas.

Quem busque medir a extensão dominada por charlatães, vigaristas, palhaços e loucos furiosos no mundo acadêmico verificará, com espanto, que ela não apenas supera o perímetro ocupado pelos pesquisadores sérios, mas também abrange as áreas mais elevadas e valorizadas do terreno: os farsantes não se encontram predominantemente entre os cientistas e docentes anônimos, mas entre os nomes de maior destaque em cada área.

É evidente que uma parte da culpa por esse estado de coisas não cabe à instituição acadêmica, mas à mídia, à indústria editorial e ao show business. É a caixa de ressonância das “classes falantes” que dá a certos sujeitos um destaque que eles jamais obteriam no seu estrito meio profissional e os eleva à categoria de “fenômenos culturais”. Os instrumentos de difusão estão precisamente nas mãos daquele típico semi-intelectual ou pseudo-intelectual que, não dominando nenhum ramo do conhecimento, busca em vez disso dominar a opinião pública. Secretamente consciente de sua inépcia, ele consola-se dizendo que não tem tempo de tentar conhecer a realidade porque está ocupado em transformá-la. Não é de espantar que, de tudo o que se estuda e se discute na esfera acadêmica, esse tipo colha – e portanto divulgue – preferencialmente aquilo que se parece com ele. Daí que as idéias que alcançam maior repercussão não sejam as melhores, as mais consistentes, as mais verdadeiras, porém as mais “fecundas”, as mais “revolucionárias”, isto é, aquelas que podem produzir mais discussões insensatas no plano intelectual e mais agitação sem propósito na vida social.

O establishment acadêmico pode, com razão, alegar que nada disso é culpa sua, e sim do pseudo-intelectual que domina a imprensa cultural e forja o “espírito do tempo”. Mas esse personagem é, por sua vez, produto do ensino universitário. Quanto mais se expandem as universidades, menor é o contingente de estudantes diplomados que vão para a pesquisa séria e maior o dos que saem para a “indústria cultural”, o ramo mais pujante e expansivo da economia moderna.

Dividida entre a exigência de produzir conhecimento e a de moldar profissionais do prêt-à-porter mental, a universidade avança por uma via dupla cujas pistas divergem cada vez mais, ameaçando atingir em breve o ponto de ruptura. Então será preciso escolher. Mas a escolha já está feita e todos sabem qual é. Nesse dia, portanto, as universidades como centros de produção de conhecimento se tornarão obsoletas e o mundo verá surgir um novo tipo de instituição, mais leve, mais ágil, menos comprometido com a geração de empregos e a satisfação “cultural” das massas. Talvez seja a volta da academia platônica.

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