Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 23 de fevereiro de 2006
Não existe a mais remota semelhança entre as táticas de pressão psicológica usadas pelos americanos nos terroristas presos e as torturas mutilatórias, incapacitantes ou mortais empregadas em escala incomparavelmente mais vasta contra civis em países comunistas e islâmicos. As primeiras são substancialmente idênticas às que foram aplicadas aos prisioneiros nazistas após a II Guerra Mundial. As segundas são iguais às usadas pelos próprios nazistas contra os opositores do regime. A diferença é estridente. Nenhum ser humano em seu juízo perfeito pode achar que empurrões, gritos, tapas e exposição a vexames sejam o mesmo que amputações, espancamentos, fraturas, choques elétricos e outras práticas usuais da velha Abu-Ghraib de Saddam Hussein ou dos oitocentos presídios da ilha de Fidel Castro, entre as quais a Guantanamo originária, poço de horrores comparado ao qual a homônima prisão americana é um hotel de cinco estrelas.
Qualquer órgão de mídia que continue apelando à mesma palavra, “tortura”, sem distinções comparativas, para designar por igual as duas coisas, é indigno da confiança dos leitores. Ao alardear cobertura honesta, comete delito de propaganda enganosa, infringindo o Código de Defesa do Consumidor.
Jamais vi um único jornal brasileiro — e raramente algum americano — que estivesse inocente desse delito, com o agravante de que o destaque concedido em todos eles às denúncias contra os EUA forma um contraste obsceno com a míngua de notícias sobre tortura e assassinato de prisioneiros em Cuba, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte ou nas ditaduras islâmicas. A distribuição do espaço, inversamente proporcional à quantidade e gravidade das informações disponíveis, comprova a adesão da classe jornalística a um código de valores no qual a veracidade deve ser sacrificada aos interesses da corrente política mais brutal e criminosa que já existiu no mundo.
A desproporção a que me refiro pode ser facilmente demonstrada por meio de aferições objetivas do espaço e do realce dado às notícias. Desafio publicamente todos os órgãos de mídia deste país a submeter suas publicações a um teste desse tipo, a provar que não estão ocultando milhares de crimes monstruosos por trás da ênfase obsessiva e espetaculosa concedida a maldades chinfrins, ampliadas pela impropriedade vocabular proposital.
Certa vez o diretor de um grande jornal de São Paulo, ao qual eu apontava essa distorção sistemática da realidade, tentou mesmo justificá-la, alegando que os delitos americanos mereciam mais atenção justamente porque os EUA eram uma democracia, da qual se esperaria conduta melhor. Esse argumento, observei, era o suprassumo da perversão jornalística: equivalia a decretar que pequenos deslizes de homens honestos deveriam ser denunciados com mais alarde do que crimes hediondos cometidos por assassinos habituais.
Se me perguntam como e por que a mídia brasileira chegou a esse ponto, não respondo com uma teoria, mas com um exemplo factual. Quando em 1993 a CUT admitiu que tinha oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos, ninguém reconheceu o óbvio: que essa confissão justificava a imediata abertura de uma CPI para apurar a mais vasta operação de suborno já registrada na história dos meios de comunicação na América Latina. Se a hipótese dessa investigação não chegou a ser cogitada, não foi por coincidência. Na mesma época, parlamentares da CPI das empreiteiras reconheciam abertamente que sua atividade consistia apenas em endossar com servilismo canino as denúncias saídas nos jornais e noticiários de TV. Comprometida até à medula, a classe jornalística tinha se tornado, por autopromoção, a mais temida autoridade moral deste país, à qual ninguém ousaria desagradar. Mas é evidente que a honestidade jamais poderá imperar num país em que o hábito da mentira interesseira se impregnou na mente dos próprios formadores de opinião, dos próprios fiscais do bom comportamento geral.