Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 23 de fevereiro de 2006

Acabo de ver, num muro de universidade aqui perto, um cartaz em homenagem ao black pride, com frases de líderes e intelectuais negros famosos. Duas atraíram especialmente a minha atenção:

“A raça é o menos importante elemento de informação que temos sobre uma pessoa. Forçar as pessoas a terem reações baseadas na raça é perder de vista a noção mesma de humanidade.”

“Tenham tanto orgulho da sua raça hoje em dia quanto seus pais tiveram antigamente. Temos uma história magnífica, e ainda faremos outra no futuro que há de assombrar o mundo.”

A primeira é da romancista Toni Morrison, Prêmio Nobel de Literatura de 1993. A segunda é de Marcus Garvey, jornalista e líder cultural jamaicano, criador, na década de 20, do movimento “Volta para a África”. As duas exortações vão em sentido contrário. Morrison diz que os seres humanos não devem ser induzidos a agir segundo uma identidade racial; Garvey, que eles devem fazer precisamente isso.

A contradição pode ser resolvida dialeticamente, mas isso dá um bocado de trabalho e exige o apelo a premissas que, uma vez trazidas à luz, podem por sua vez ser contestadas, impugnando a resolução obtida. O espectador do cartaz, em geral, não vai parar para fazer essa análise. Vai absorver a mensagem toda de uma vez, chutando para o automatismo inconsciente a tarefa de resolver a contradição.

Mas o inconsciente desconhece as sutilezas da dialética. Para ele não existe contradição, não existe sequer a palavra “não”: só imagens afirmativas. O que ele vai fazer portanto é ignorar a contradição e superpor simplesmente as duas idéias, gerando uma terceira que as acomode da maneira perfeitamente confortável. O resultado é mais ou menos assim: “Os brancos nos impuseram reações baseadas na raça. Temos o direito de reagir afirmando o orgulho da nossa raça.” Pela mágica do inconsciente, ficam assim harmonizados numa síntese indissolúvel o anti-racismo e o racismo. Aquilo que, num debate científico, seria a impugnação completa de um argumento, torna-se em propaganda uma força psicológica inconsciente trabalhando a favor dele.

Longe de constituir um obstáculo à disseminação de uma idéia, o absurdo pode favorecê-la, justamente porque a estimulação contraditória, quando persistente e em doses maciças, amortece a inteligência do destinatário e o predispõe a uma apatetada passividade na qual ele está pronto para entregar-se, de joelhos, ao guiamento do espertalhão que o deixou nesse estado. A paralisia da razão não deixa ao indivíduo outra saída senão buscar na pura entrega emocional o alívio da indecisão.

Alinguagem da propaganda política hoje em dia não tem nada a ver com as antigas artes retóricas, cujo fundamento, em última análise, era a persuasão racional. A manipulação tornou-se tão geral e disseminada que, com frequência, a tentativa de persuasão racional é rejeitada como “autoritária”. Raciocinar tornou-se um esforço dolorido que passa por trabalho escravo. A conclusão inelutável das provas é ressentida como imposição de fora, não como o término natural de um percurso da inteligência. A massa, viciada, exige a dose habitual de absurdidade, fora da qual se sente solta e desamparada como um cãozinho de apartamento perdido na rua. A liberdade não é só uma questão de leis e instituições. Exige um adestramento da inteligência para a responsabilidade das decisões. O desconforto do aprendizado pode ser vivenciado como escravidão, ao passo que a submissão emotiva, justamente por ser tão fácil, pode passar como puro exercício da liberdade.

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