Olavo de Carvalho
O Globo, 8 de setembro de 2001
Dezesseis de dezembro de 1933 é uma data memorável para os devotos da epopéia socialista. Nesse dia, o agente búlgaro do Comintern, George Dimitrov, acusado falsamente de incendiar o Parlamento alemão, pronunciou ante o tribunal de Leipzig o célebre discurso que desmascarou o regime nazista como fachada do poder econômico, “a ditadura dos Krupp e dos Thyssen” (grandes grupos industriais alemães).
O episódio e o giro verbal que o condensa fixaram na memória da esquerda mundial a definição marxista do nazismo como regime da “direita”, o recurso totalitário adotado in extremis pela burguesia para sufocar a iminente revolução proletária.
Essa versão, de tão repetida, tornou-se um lugar-comum, um dogma da teologia mística socialista que, ao menos no Brasil, conserva toda a força da sua autoridade. Guardada no fundo do inconsciente, ela volta à tona de tempos em tempos, em livros escolares e artigos de jornal, sempre apresentada como um marco de referência inabalável, tão certo e confiável quanto a regularidade dos movimentos celestes ou o teorema de Pitágoras.
Não obstante, tudo nesse episódio é falso. Tudo. Da narrativa à interpretação, das premissas à conclusão, nada no mito Dimitrov corresponde à realidade, nem mesmo num sentido remoto e aproximativo do termo.
Talvez não haja exemplo mais nítido da compulsão irrefreável de mentir, que caracteriza a religião esquerdista e a mentalidade do seu clero.
Para começar, George Dimitrov não foi herói nenhum. Nem sequer correu perigo. Anunciada sua prisão iminente, ele e seus assessores Popov e Tanev, em vez de se esconder, sentaram-se num restaurante repleto de oficiais nazistas e tranqüilamente aguardaram a chegada da polícia. Eles sabiam, desde o início, que seriam inocentados e devolvidos intactos às autoridades soviéticas, que já tinham combinado tudo com o governo nazista.
A URSS e o III Reich estavam inaugurando então um programa de intensa colaboração subterrânea para a obtenção de dois tipos de vantagens mútuas.
De um lado, a Alemanha fornecia assistência técnica para a modernização do atrasado Exército Vermelho, em troca da permissão para dar aos oficiais alemães, em território soviético, o treinamento militar que o Tratado de Versalhes proibia em solo alemão. De outro lado, as duas ditaduras mais ferozes da Europa ajudavam uma à outra na liquidação de suas respectivas oposições internas, mediante troca de informações entre seus serviços de espionagem, intercâmbio de prisioneiros e, last not least , colaboração fraterna no homicídio de indesejáveis.
Tudo foi concebido por um dos mais próximos colaboradores de Stalin, Karl Radek. Para encobrir a delicada e perigosa manobra, Radek criou uma vasta operação de despistamento: uma campanha de antinazismo verbal, sob a direção do gênio comunista da propaganda, Willi Münzenberg, um artista perto do qual o dr. Goebbels não passava de um amador caipira. Para o espetáculo foram cooptadas dúzias de celebridades do show business e das letras, que, como geralmente acontece com essas criaturas, se deixavam levar pela aparência e não tinham a menor idéia da sórdida artimanha com que colaboravam. O processo farsesco em Leipzig foi um episódio da campanha, que logo formou um comitê pela libertação de Dimitrov, encabeçado com grande alarde por André Gide e André Malraux. A farsa aí chegou ao cúmulo do requinte. Estimulados por insinuações vindas do governo alemão, os dois acadêmicos partiram de trem, entre fanfarras, para uma entrevista com o ministro da Propaganda do Reich. Goebbels nem sequer os recebeu, porque o único propósito de atraí-los à Alemanha era um jogo de cena para agitar o meio parisiense. De fato, nada havia a reivindicar em Berlim, onde a libertação de Dimitrov e seu retorno à URSS já eram favas contadas desde o início, mas Gide e Malraux voltaram a Paris sem se dar conta de que tinham servido de fantoches no teatrinho de Goebbels e Radek.
Dimitrov, aureolado das glórias de sua performance , foi inocentado, retornou à URSS e recebeu uma bela promoção, enquanto Popov e Tanev, os homens que sabiam demais, foram jogados para o fundo do Gulag e desapareceram para sempre…
A definição do nazismo como braço armado dos capitalistas, enunciada pelo ator principal no momento culminante do espetáculo, não foi jamais nem o próprio Dimitrov imaginou que fosse uma tradução da realidade. Mas também não foi apenas uma fala entre outras no script geral da farsa. Foi um momento especial, a pièce de résistance na programação da camuflagem. Não houve talvez, nos anais da oratória forense, declaração mais cínica e mentirosa. Pois Dimitrov sabia perfeitamente que aqueles capitalistas que ele acusava, personificações do complexo industrial-militar alemão, sustentáculos do Partido Nazista, eram os mesmos que, naquele preciso instante, ajudavam a consolidar o Estado soviético mediante a assistência técnica e a exportação de equipamentos indispensáveis ao Exército Vermelho. O rearmamento da URSS e o show de Dimitrov no tribunal tinham o mesmo patrocinador do Partido Nazista: ou seja, a “ditadura dos Krupp e dos Thyssen”.
É verdade que, enquanto isso, comunistas eram espancados e mortos nas ruas pelos militantes nazistas. Mas isso fazia parte do show e parecia a Stalin e Radek um preço módico a pagar em troca da ajuda militar e econômica, das preciosas informações da Gestapo e da liquidação de comunistas dissidentes que se encontrassem ao alcance da polícia alemã. Tanto que, no auge da tagarelice antinazista em Paris, Radek, em carta a um amigo íntimo, confessava: “Só um idiota pode imaginar que vamos romper com os alemães. Ninguém nos daria o que eles nos dão.”
Por isso, caro leitor, quando você ouvir pela milionésima vez algum doutorzinho brasileiro, num jornal ou numa cátedra, teorizar sobre o nazismo como regime “de direita”, criado pelos capitalistas para liquidar os comunistas, saiba que isso não demonstra senão a incalculável miséria mental da intelectualidade de um país periférico, onde, passados quase setenta anos, uma mentirinha safada, concebida como pura camuflagem para ocultar a aliança macabra de duas tiranias genocidas, ainda é cultuada como teoria cientificamente respeitável, digna de constar de manuais universitários e de ser repassada às novas gerações nas escolas. Chamo a esse fenômeno “servilismo residual”: a obediência continuada e mecânica dos idiotas a uma ordem que já foi cancelada faz décadas. Radek e Münzenberg sempre tiveram o maior desprezo pelos intelectuais que repetiam às tontas qualquer bobagem que o Comintern lhes soprasse nos ouvidos. A propagação de mentiras entre essa gentinha pretensiosa e frívola era tão fácil que Münzenberg a denominava “criação de coelhos”. O que ele jamais pôde imaginar foi que, num remoto país do Terceiro Mundo, os coelhos, depois de mortos, continuariam a reproduzir-se, tão prolificamente, por tanto tempo…