Olavo de Carvalho
Zero Hora, 13 de novembro de 2005
Mais de uma vez aludi aqui à máxima leninista “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” Ela fornece um critério certeiro para discernir a lógica de muitas manobras estratégicas e táticas do esquerdismo organizado: sempre que os partidos de esquerda lançam uma campanha de denúncias ferozes contra algum delito real ou imaginário, é porque eles mesmos, naquele preciso instante, estão preparando ou praticando outro crime da mesma espécie e de dimensões incalculavelmente maiores. Isso é assim desde os tempos do próprio Lênin, e o sr. Fidel Castro o ilustra novamente ao tentar alarmar a platéia quanto a uma impossível invasão americana do continente no instante mesmo em que vai preparando um ataque à Colômbia. Igualmente pedagógico é o timing dos esquerdistas chiques do Partido Democrata americano, que armam um escarcéu dos diabos acusando o vice-presidente de vazar informações sobre uma inócua agente da CIA ao mesmo tempo que abrem um rombo na segurança nacional revelando os locais onde o Exército guarda importantes terroristas presos.
Mas os exemplos locais não são menos edificantes.
O começo da década de 90, o tempo da “campanha pela ética na política”, da gritaria anti-Collor e das CPIs em que o sr. José Dirceu brilhava diagnosticando conspirações e golpes de Estado em cada intercâmbio chinfrim de propinas e favores, quase sempre aliás inexistentes, foi precisamente a época em que ele próprio e seus companheiros de cúpula do PT começavam a montar, por trás da cena, o mais vasto empreendimento de ladroagem política já observado neste país.
Imaginar que fosse tudo coincidência, que uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, que o sr. José Dirceu fosse apenas um caso de personalidade dupla, passando do papel de Eliott Ness ao de Al Capone sem nem se dar conta da transformação, é abusar do direito à estupidez. É claro que a campanha de ódio moralizante foi, desde o início, parte integrante da estratégia criminosa, como a camuflagem faz parte de uma operação de guerrilhas. Por isso não tem cabimento dizer que a roubalheira do Mensalão é um desvio, uma ruptura com os belos ideais petistas do passado. Os belos ideais eram instrumentos da roubalheira, e o mais óbvio sinal disso era que jamais se traduziam em atos de virtude mas somente em discursos histéricos contra os pecados alheios, sem ter nem ao menos a prudência de distinguir os verdadeiros dos inventados.
Na época, tendo aprendido com um sábio guru que não existe genuíno ódio ao mal quando não acompanhado do correspondente amor ao bem, não me deixei enganar pelas intenções nominalmente elevadas da retórica de acusação, incomparavelmente mais brutal e implacável do que as tímidas especulações, entremeadas de atenuantes lisonjeiros, que hoje o PT rotula hipocritamente de “massacre”. Afirmei resolutamente que o abuso malicioso do apelo à ética não poderia senão embotar ainda mais o senso moral da nação, prenunciando devassidões perto das quais os Anões do Orçamento, já então pequenos demais para o barulho que se fazia em torno deles, se tornariam miniaturas de anões num bolo de aniversário. Fundado na análise das discussões internas do PT lidas à luz da estratégia gramsciana que as orientava, meu prognóstico estritamente objetivo foi desprezado, com sorrisos de superioridade, por todos os sabichões da mídia, do empresariado, do judiciário e até das Forças Armadas a quem tive a ocasião de apresentá-lo. Se lhe tivessem prestado atenção, muitas perdas e humilhações teriam sido poupadas a este país já esgotado. Não hesito em dizer que a indiferença dessas pessoas foi irresponsável, covarde e criminosa. Mas seria tolice esperar que se arrependessem. A presteza solícita com que hoje aceitam as desculpas mais esfarrapadas para esquivar-se ao dever de investigar a sério a denúncia da ajuda ilegal de Cuba à candidatura Lula mostra que a passagem do tempo não lhes ensinou nada nem lhes ensinará jamais coisa alguma. Nesse sentido, os Dirceus, os Lulas e tutti quanti podem dormir tranquilos. Nada lhes acontecerá. É, no fundo, uma simples questão de justiça. Quem poderia ter tido a autoridade moral para puni-los tratou de vendê-la por pequenas vantagens, às vezes apenas por uns minutos de sossego anestésico, longe da própria consciência. Um povo que tem horror à verdade merece ser enganado indefinidamente.