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Nunca ântef na iftória dêfte paíf…

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de fevereiro de 2015

Reunindo aproximadamente um milhão de pessoas e repetindo-se em várias cidades de março a junho de 1964, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi o maior protesto de rua observado até então na nossa História – maior, provavelmente, do que muitos movimentos similares, com signo ideológico invertido, que viriam nas décadas de 80 e 90.

No entanto, é certo que, na origem, nada teve de popular ou espontâneo. Foi longamente planejada por um grupo de devotados conspiradores, com vasto apoio da grande mídia – a começar pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand (mais de oitenta jornais, estações de rádio e canais de TV em todo o país) -, de empresas bilionárias como o grupo Light, de vários governadores, deputados e senadores e de importantes organizações da sociedade civil, como a Liga das Senhoras Católicas, a ABI, a OAB, os sindicatos patronais em peso e a maioria do clero católico.

Não se pode dizer que foi propriamente um movimento popular, mas uma mobilização popular orquestrada pela elite, uma obra de engenharia política.
Pega de surpresa, derrubada sem que fosse preciso dar um só tiro, a liderança esquerdista saiu em debandada, com uma pressa obscena de salvar a pele, mas logo em seguida procurou redimir-se ao menos intelectualmente, entregando-se a uma séria revisão crítica dos seus erros estratégicos e planejando um retorno triunfal a longo prazo.

A mais oportuna contribuição individual a esse esforço foi a do editor Ênio Silveira, que, publicando em tradução as obras do fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci, e fundando duas revistas inspiradas nas concepções desse grande estrategista político (Civilização Brasileira e Paz & Terra), indicou aos comunistas e seus parceiros o caminho a seguir.

Esse caminho consistia em tomar do adversário, mediante longa, paciente e discreta infiltração, o comando das entidades capacitadas a organizar a mobilização popular. Roubar da direita, sem que esta percebesse, o monopólio da engenharia política.
As guerrilhas, concomitantemente, serviram apenas como “bois de piranha”, atraindo a atenção do governo para desviá-la da operação mais vasta e silenciosa que acabaria por mudar os destinos do país.

Partindo de uma base modesta, limitada ao movimento estudantil e a alguns sindicatos da região do ABC, os comunistas e filo comunistas foram dominando passo a passo a grande mídia, a OAB, a ABI, a Igreja Católica, etc.

Vinte anos decorreram antes que a aplicação do método gramsciano de “ocupação de espaços” produzisse o seu primeiro resultado espetaculoso: a campanha das “Diretas Já”, em 1984, formulada – de acordo com o preceito de Gramsci – numa linguagem puramente cívica, sem qualquer apelo comunista explícito. Oito anos depois, o movimento “Fora Collor” já vinha com um tom ideológico um pouco mais definido.

Essas duas campanhas seguiram fielmente o modelo organizacional da “Marcha da Família”, com ricas e poderosas entidades controlando a massa e construindo ex post facto, mediante as falsificações históricas usuais nesse tipo de coisas, o mito da “revolta popular”.

Tanto em 1964 quanto em 1984 e 1992, o povo brasileiro só entrou em cena como massa de manobra. A troca do pretexto ideológico não alterou em nada a substância do fenômeno, reduzido, em todos esses casos, a uma bem sucedida obra de manipulação arquitetada e dirigida desde cima.

Nada disso é o que se observa agora, seja na série de protestos anti-PT a partir de 15 de novembro do ano passado, seja na valente carreata dos caminhoneiros até Brasília.

Tudo começou, na verdade, da maneira mais impremeditada, espontânea e anárquica que se pode imaginar. Começou com a imprevista reação popular à fraude do “Passe Livre”.

O governo federal, interessado em desestabilizar a administração estadual de seu desafeto Geraldo Alckmin em São Paulo, contratou baderneiros Black Blocs e dúzias de Pablos Capilés para que, sob a desculpa ridícula e artificiosa de protestar contra um aumento ínfimo do preço das passagens de ônibus, saíssem pelas ruas posando de pobres espoliados, quebrando tudo, agredindo policiais, ateando fogo em carros e aterrorizando a população.

Mas a massa, em vez de se deixar atemorizar, aproveitou a ocasião para expressar sua verdadeira revolta, que não era contra o sr. Alckmin – pelo qual também não morria de amores, é claro – e sim contra o promotor mesmo da confusão: o governo federal ladrão, mentiroso, manipulador, parceiro íntimo de narcotraficantes, sequestradores e ditadores genocidas.

A massa anárquica, sem qualquer comando, organização ou programa ideológico, tomou de assalto as ruas, gritando mais alto que os agitadores e infundindo medo naqueles que tencionavam amedrontá-la.

Tão surpreso e assustado ficou o aprendiz de feiticeiro com o efeito inverso obtido pela sua mágica que, ponderando que “quanto mais mexe, mais fede”, chamou de volta os agitadores pagos e ordenou que permanecessem quietinhos em suas casas, aguardando que o dragão despertado por acidente se esquecesse de tudo e voltasse a cair no sono.

Mas o dragão havia tomado gosto pela coisa. Vendo o governo trêmulo e inerme por trás de uma cortina de blefes e garganteios, saiu às ruas de novo e de novo, num “crescendo” que agora culmina no movimento dos caminhoneiros.

Ao longo de todos esses episódios, não se viu um só político à frente da massa, uma só empresa ou ONG bilionária subsidiando os revoltados, um só investidor estrangeiro oferecendo ajuda, um só partido político manifestando alguma solidariedade ou um só órgão de mídia noticiando os acontecimentos sem minimizá-los, distorcê-los pejorativamente ou achincalhá-los de maneira velada ou ostensiva.

A Rede Globo colaborou descaradamente com uma jogada maligna do governo ao espalhar a notícia falsa de que um acordo tinha sido firmado e os caminhoneiros tinham desistido da carreata.

Até mesmo o Canal Veja, tão odiado pelos petistas por noticiar frequentemente os escândalos financeiros do governo Dilma, não conseguiu falar dos caminhoneiros sem criticá-los por atrapalhar o trânsito nas estradas.

Em compensação, os moradores, os comerciantes das cidades do interior por onde passa a carreata, os pequenos proprietários rurais e uma infinidade de pessoas das classes sociais mais humildes correm para as estradas para aplaudir os caminhoneiros, oferecer-lhes comida e até dinheiro para a gasolina.
Passada de boca em boca, pessoalmente ou pela internet, as palavras-de-ordem emanam do povo e se espalham entre o próprio povo, enquanto, no topo da sociedade, uns rosnam de raiva impotente, tramando vingancinhas fúteis na pessoa do juiz Moro, que nada tem a ver com o movimento, outros fazem de conta que nada está acontecendo.

Este é, em quinhentos e tantos anos de existência do Brasil, o primeiro movimento autenticamente popular, espontâneo, nascido de baixo, sem comandantes chiques, sem estrategistas profissionais, sem interferência nem apoio das elites falantes, do beautiful people, do grande capital ou da grande mídia.

Se o sr. Lula tivesse um pingo da consciência social que alardeia, agora sim seria o seu momento de proclamar: “Nunca ântef na iftória dêfte paíf…”

Qualquer pessoa no uso perfeito das suas faculdades mentais percebe a diferença.
Um cientista social incapaz de notá-la, ou indisposto a reconhecê-la, revela uma dose de inépcia e de desonestidade que faz jus à sua expulsão vergonhosa e definitiva de toda profissão intelectual.

Esse é o caso, precisamente, do economista e ex-ministro, prof. Luiz Carlos Bresser Pereira, que, diante de fatos cujo sentido brada aos céus e só um louco negaria, não se vexa de assumir o papel desse  louco e atribuir a revolta popular ao “ódio que os ricos têm do PT”.

Que raio de sociologia é essa, em que caminhoneiros e carreteiros se tornam a elite milionária, e os donos da mídia chapa-branca os pobres e oprimidos?
No cérebro do professor, os estereótipos mais tolos da propaganda petista se impregnaram com tamanha força, que o impedem de enxergar – ou de admitir – aquilo que qualquer criança do interior está vendo com os olhos da cara.

Não há atitude mais vergonhosa para um intelectual do que prevalecer-se de glórias acadêmicas passadas – modestas, mas nem por isso irreais – para tentar insuflar numa mentirinha tola e já desmoralizada de antemão, um arremedo pífio de credibilidade.

Um cadáver no poder (II)

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de janeiro de 2015

 

Volto à análise da Teologia da Libertação.
Se a coisa e até o nome que a designa vieram prontos da KGB, isso não quer dizer que seus pais adotivos, Gutierrez, Boff e Frei Betto, não tenham tido nenhum mérito na sua disseminação pelo mundo. Ao contrário, eles desempenharam um papel crucial nas vitórias da TL e no mistério da sua longa sobrevivência.

Os três, mas principalmente os dois brasileiros, atuaram sempre e simultaneamente em dois planos. De um lado, produzindo artificiosas argumentações teológicas para uso do clero, dos intelectuais e da Cúria romana. De outro lado, espalhando sermões e discursos populares e devotando-se intensamente à criação da rede de militância que se notabilizaria com o nome de “comunidades eclesiais de base” e viria a constituir a semente do Partido dos Trabalhadores. “Base” é aliás o termo técnico usado tradicionalmente nos partidos comunistas para designar a militância, distinguindo-a dos líderes. Sua adoção pela TL não foi mera coincidência. Quando os pastores se transformaram em comissários políticos, o rebanho tinha mesmo de tornar-se “base”.

No seu livro E a Igreja se Fez Povo, de 1988, Boff confessa que foi tudo um “plano ousado”, concebido segundo as linhas da estratégia da lenta e sutil “ocupação de espaços” preconizada pelo fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Tratava-se de ir preenchendo aos poucos todos os postos decisivos nos seminários e nas universidades leigas, nas ordens religiosas, na mídia católica e na hierarquia eclesiástica, sem muito alarde, até chegar a época em que a grande revolução pudesse exibir-se a céu aberto.
Logo após o conclave que o elegeu, em 1978, o papa João Paulo I teve um encontro com vinte cardeais latino-americanos e ficou muito impressionado com o fato de que a maioria deles apoiava ostensivamente a Teologia da Libertação. Informaram-lhe, na ocasião, que já havia mais de cem mil “comunidades eclesiais de base” disseminando a propaganda revolucionária na América Latina. Até então, João Paulo I conhecia a TL apenas como especulação teórica. Nem de longe imaginava que ela pudesse ter se transformado numa força política de tais dimensões.

Em 1984, quando o cardeal Ratzinger começou a desmontar os argumentos teóricos da “Teologia da Libertação”, já fazia quatro anos que as “comunidades eclesiais de base” tinham se transfigurado num partido de massas, o Partido dos Trabalhadores, cuja militância ignora maciçamente quaisquer especulações teológicas, mas jura que Jesus Cristo era socialista porque assim dizem os líderes do partido.

Dito de outro modo, a pretensa argumentação teológica já tinha cumprido o seu papel de alimentar discussões e minar a autoridade da Igreja, e fora substituída, funcionalmente, pela pregação aberta do socialismo, onde o esforço aparentemente erudito de aproximar cristianismo e marxismo cedia o passo ao manejo de chavões baratos e jogos de palavras nos quais a militância não procurava nem encontrava uma argumentação racional, mas apenas os símbolos que expressavam e reforçavam a sua unidade grupal e o seu espírito de luta.
O sucesso deste segundo empreendimento foi proporcional ao fracasso do trio na esfera propriamente teológica. É possível que na Europa ou nos EUA um formador de opinião com pretensões de liderança não sobreviva à sua desmoralização intelectual, mas na América Latina, e especialmente no Brasil, a massa militante está a léguas de distância de qualquer preocupação intelectual e continuará dando credibilidade ao seu líder enquanto este dispuser de um suporte político-partidário suficiente.

No caso de Boff e Betto, esse suporte foi nada menos que formidável. Fracassadas as guerrilhas espalhadas em todo o continente pela OLAS, Organización Latino-Americana de Solidariedad, fundada por Fidel Castro em 1966, a militância se refugiou maciçamente nas organizações da esquerda não-militar, que iam colocando em prática as ideias de Antonio Gramsci sobre a “ocupação de espaços” e a “revolução cultural”. A estratégia de Gramsci usava a infiltração maciça de agentes comunistas em todos os órgãos da sociedade civil, especialmente ensino e mídia, para disseminar propostas comunistas pontuais, isoladas, sem rótulo de comunismo, de modo a obter pouco a pouco um efeito de conjunto no qual ninguém visse nada de propaganda comunista, mas no qual o Partido, ou organização equivalente, acabasse controlando mentalmente a sociedade com “o poder invisível e onipresente de um mandamento divino, de um imperativo categórico” (sic).

Nenhum instrumento se prestava melhor a esse fim do que as “comunidades eclesiais de base”, onde as propostas comunistas podiam ser vendidas com o rótulo de cristianismo. No Brasil, o crescimento avassalador dessas organizações resultou, em 1980, na fundação do Partido dos Trabalhadores, que se apresentou inicialmente como um inocente movimento sindicalista da esquerda cristã e só aos poucos foi revelando os seus vínculos profundos com o governo de Cuba e com várias organizações de guerrilheiros e narcotraficantes. O líder maior do Partido, Luís Inácio “Lula” da Silva, sempre reconheceu Boff e Betto como mentores da organização e dele próprio.

Nascido no bojo do comunismo latino-americano por intermédio das “comunidades eclesiais de base”, o Partido não demoraria a devolver o favor recebido, fundando, em 1990, uma entidade sob a denominação gramscianamente anódina de “Foro de São Paulo”, destinada a unificar as várias correntes de esquerda e a tornar-se o centro de comando estratégico do movimento comunista no continente.

Segundo depoimento do próprio Frei Betto, a decisão de criar o Foro de São Paulo foi tomada numa reunião entre ele, Lula e Fidel Castro, em Havana. Durante dezessete anos o Foro cresceu em segredo, chegando a reunir aproximadamente duzentas organizações filiadas, misturando partidos legalmente constituídos, grupos de sequestradores como o MIR chileno e quadrilhas de narcotraficantes como as Farc, que juravam nada ter com o tráfico de drogas mas então já costumavam trocar anualmente duzentas toneladas de cocaína colombiana por armas contrabandeadas do Líbano pelo traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar.

Quando Lula foi eleito presidente do Brasil, em 2002, o Foro de São Paulo já havia se tornado a maior e mais poderosa organização política em ação no território latino-americano em qualquer época, mas sua existência era totalmente desconhecida pela população e, quando denunciada por algum investigador, cinicamente negada. O bloqueio chegou ao seu ponto mais intenso quando, em 2005, o sr. Lula, já presidente do Brasil, confessou em detalhes a existência e as atividades do Foro de São Paulo. O discurso foi publicado na página oficial da Presidência da República, mas mesmo assim a grande mídia em peso insistiu em fingir que não sabia de nada.

Por fim, em 2007, o próprio Partido dos Trabalhadores, sentindo que o manto de segredo protetivo já não era necessário, passou a alardear aos quatro ventos os feitos do Foro de São Paulo, como se fossem coisa banal e arqui-sabida. Somente aí os jornais admitiram falar do assunto.

Por que o segredo podia agora ser revelado? Porque, no Brasil, toda oposição ideológica tinha sido eliminada, restando apenas sob o nome de “política” as disputas de cargos e as acusações de corrupção vindas de dentro da própria esquerda; ao passo que, na escala continental, os partidos membros do Foro de São Paulo já dominavam doze países. As “comunidades eclesiais de base” haviam chegado ao poder. Quem, a essa altura, iria se preocupar com discussões teológicas ou com objeções etéreas feitas vinte anos antes por um cardeal que levara a sério o sentido literal dos textos e mal chegara a arranhar a superfície política do problema?

Nos doze anos em que permaneceu no poder, o PT expulsou do cenário toda oposição conservadora, partilhando o espaço político com alguns aliados mais enragés e com uma branda oposição de centro-esquerda, e governou mediante compras de consciências, assassinatos de inconvenientes e a apropriação sistemática de verbas de empresas estatais para financiar o crescimento do partido.

A escalada da cleptocracia culminou no episódio da Petrobrás, onde o desvio subiu à escala dos trilhões de reais, configurando, segundo a mídia internacional, o maior caso de corrupção empresarial de todos os tempos. Essa sucessão de escândalos provocou algum mal-estar na própria esquerda e constantes reclamações na mídia, levando a intelligentsia petista a mobilizar-se em massa para defender o partido. Há mais de uma década os srs. Betto e Boff estão ocupados com essa atividade, na qual a teologia só entra como eventual fornecedora de figuras de linguagem para adornar a propaganda partidária. A TL havia assumido, finalmente, sua mais profunda vocação.

Quem quer que leia os escritos de Gutierrez, Boff e Betto descobre facilmente as suas múltiplas inconsistências e contradições. Elas revelam que esse material não resultou de nenhum esforço teorizante muito sério, mas do mero intuito de manter os teólogos de Roma ocupados em complexas refutações teológicas enquanto a rede militante se espalhava por toda a América Latina, atingindo sobretudo populações pobres desprovidas de qualquer interesse ou capacidade de acompanhar essas altas discussões.
Os boiadeiros chamam isso de “boi-de-piranha”: jogam um boi no rio para que os peixes carnívoros fiquem ocupados em devorá-lo, enquanto uns metros mais adiante a boiada atravessa as aguas em segurança.

Intelectualmente e teologicamente, a TL está morta há três décadas. Mas ela nunca foi um movimento intelectual e teológico. Foi e é um movimento político adornado por pretextos teológicos artificiosos e de uma leviandade sem par, lançados nas águas de Roma a título de “boi de piranha”. A boiada passou, dominou o território e não existem piranhas de terra firme que possam ameaçá-la.

Sim, a TL está morta, mas o seu cadáver, elevado ao posto mais alto da hierarquia de comando, pesa sobre todo um continente, oprimindo-o, sufocando-o e travando todos os seus movimentos. A América Latina é hoje governada por um defunto.

O preço da verdade

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 21 de janeiro de 2015

Todo mundo tem algum senso instintivo do que é normal e são, mas não sabe expressá-lo em palavras, nem usualmente é desafiado a fazê-lo. O desafio aparece quando, em épocas de crise, sentindo afrouxar-se os freios do costume e da autoridade, os interessados na promoção de alguma anormalidade específica – a sua própria ou a do seu grupo de referência — se erguem dos bas-fonds da sociedade e partem para o ataque frontal à própria noção de normalidade e sanidade. O defensor dos antigos costumes encontra-se então numa posição de extrema desvantagem: como experiências tão abrangentes e duradouras não se deixam facilmente traduzir em conceitos, ele se apega a definições nominais e símbolos corriqueiros que a crítica corrosiva destrói com a maior facilidade. É que, não contando com a proteção do costume e do senso comum, o militante da causa mórbida entra em campo armado dos mais sofisticados instrumentos da dialética — o que hoje em dia corresponde ao relativismo cultural e ao desconstrucionismo –, comparados aos quais o discurso do seu oponente assume a aparência grotesca de um mero apelo irracional ao argumento de autoridade e à força do conformismo banal. Eis aí, num instante, o anormal e o doentio elevados à condição de valores culturais respeitáveis, e a sanidade reduzida ao estatuto de “construção cultural” e de “preconceito”.

Comprova-se assim novamente, pela milésima vez, a lição do Eutífron de Platão, segundo a qual aqueles que estão do lado certo só por tradição e hábito, sem revigorar suas crenças pela busca ativa da verdade, se tornam presas fáceis e colaboradores inconscientes do mal.

Acontece que a busca ativa da verdade exige uma exposição profilática à experiência do erro, algo como uma vacina ou auto-intoxicação homeopática, experiência que não é sem riscos e da qual a inteligência preguiçosa, que é a da maior parte da espécie humana, foge como quem evita o contágio de uma lepra incurável.

O simples fato de que não exista erro absoluto, de que mesmo as hipóteses mais rebuscadas e antinaturais contenham uma parcela de verdade, é profundamente repugnante àquele que espera poder ter razão sem ter de pensar no assunto, ou instalar-se no reconforto da certeza sem ter de pagar o preço da dúvida. Nem sempre os valores em que ele acredita são meros preconceitos, mas é por mero preconceito que ele acredita neles. Assim, a maioria tende irresistivelmente a imitar o velho anfitrião do diálogo platônico, que, entediado e confuso ante o debate dos convivas mais jovens empenhados na busca da verdade, vai dormir.

Contribui ainda mais para isso este segundo fator: para tirar proveito dos erros, apreendendo a sua verdade parcial e integrando-a numa verdade mais abrangente, não basta conhecê-los intelectualmente, é preciso vivenciá-los em imaginação, senti-los, impregnar-se deles pessoalmente sem assumi-los por completo, como o ator que se identifica temporariamente com o personagem sem precisar transformar-se nele na vida real.

É uma operação imaginativa das mais difíceis e problemáticas, que constitui, no entanto, a essência da educação humanística, a conditio sine qua non de todo ingresso no mundo da cultura superior. Em geral, e excetuadas certas situações incomuns que não vêm ao caso, ela só pode ser realizada sob o guiamento de um professor experimentado, que passou por todos os erros e, em vez de ser devorado por eles, emergiu fortalecido. Os Diálogos de Platão dão-nos o exemplo do destemor, da naturalidade, da abertura de alma, quase da singeleza com que Sócrates aceita e toma como suas as hipóteses mais hostis e aberrantes, para apreendê-las em profundidade e superá-las. Mas os Diálogos são apenas simplificações teatrais: resumem num debate de poucas horas aquilo que, na realidade, é uma experiência que pode se prolongar por muitos anos e comprometer a alma em situações bem mais difíceis do que um mero duelo de razões. Só as mentalidades superficiais imaginam que tudo na esfera da inteligência é uma questão de teorias, argumentos e provas. Se o conflito das cosmovisões não se transfigura em guerra de paixões dentro da nossa própria alma, não conhecemos realmente essas cosmovisões, só as suas expressões verbais, e tudo o que dissermos contra ou a favor delas não passará nunca de um flatus vocis, de uma filosofia de isopor. A filosofia genuína, como a educação efetiva, é, segundo o verso imortal, “um saber de experiência feito”.

No Brasil, onde se espera que aos dezoito anos o cidadão já tenha opinião formada sobre tudo, e onde a única função dos professores é recitar as opiniões tidas como corretas para que os alunos as repitam aos berros e apedrejem quem as negue, a educação superior, nesse sentido, é virtualmente impossível em qualquer instituição nominalmente destinada ao ensino.

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Não vi nenhum inconveniente em enviar estas notas ao Diário do Comércio antes da segunda parte da série “Um cadáver no poder”, que  prosseguirei na semana que vem.

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Eu havia prometido também completar a análise do caso Bolsonaro e explicar como podem os comunistas e seus amigos ser tão loucos ao ponto de acusar de estupro, sem apontar uma única vítima, justamente o algoz mais severo de todos os estupradores. Prometi, mas não é preciso um artigo inteiro para isso. Posso resumir a explicação em poucas linhas.

Os comunistas inventaram o uso do estupro como arma de guerra psicológica, ao invadir a Alemanha (leiam Antony Beevor, Berlin: The Downfall 1945, Penguin Books, 2002), cultuaram como heróis e gurus máximos pelo menos três estupradores, Stálin, Mao Dzedong e Fidel Castro (sobre este último, v. http://cuban-exile.com/doc_326-350/doc0343.html ehttp://www.christusrex.org/www2/fcf/exwife.html), e ainda recentemente, no Brasil, produziram um manifesto em favor de Kim Jung-Un, que instituiu o estupro como sistema, nas cadeias do seu país, para o tratamento e “reeducação” de prisioneiros políticos.

Ninguém, no mundo, carrega mais culpa pelo fenômeno hediondo dos estupros em massa do que os comunistas. Eles sabem disso, mas não querem pensar no assunto. Reprimem a culpa. Rejeitam-na para o fundo do inconsciente, de onde, em momentos de tensão, ela emerge sob forma invertida, camuflada de acusações projetivas, como já explicava o dr. Freud.

Poucas coisas, no universo, são tão sujas quanto a mente de um comunista. Qualquer comunista.

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