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Decadência e submissão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de dezembro de 2015

Não lembro quem disse, mas, no fim das contas, um romance nada mais é que uma vida, a biografia de um personagem imaginário. Não necessariamente uma biografia completa, do berço ao túmulo, mas um apanhado dos episódios essenciais que marcam a figura de um destino individual de tal modo a fazer dele um símbolo, um modelo aproximativo de muitos destinos possíveis.

Em Soumission, de Michel Houellebecq (Paris, Flammarion, 2015), romance de sucesso mundial já traduzido no Brasil, a vida do personagem corre paralela à do seu país natal, num roteiro de decadência inelutável que  desemboca na submissão quase simultânea de ambos ao islamismo. O paralelo é realçado pelos nomes: François-France.

“Submissão”, em vez de “conversão”, é a palavra correta. François e a França não se convertem ao islamismo: caem dentro dele como corpos fatigados que desabam na cama.

A história transcorre no ano de 2022, numa eleição nebulosa em que o Front Nacional ganha o voto majoritário no primeiro turno (34 por cento), tendo como principal concorrente a Fraternidade Muçulmana que, transformada em partido político, supera em votação os socialistas e a moribunda direita gaullista. O Front representa, em teoria, a identidade nacional francesa, mas muitos católicos lhe sonegam apoio porque são “demasiado terceiromundistas” (sic). Cenas de violência acompanham as eleições, mas, como só são noticiadas na mídia com muitos dias de atraso, tudo transcorre numa atmosfera de aparente normalidade. Para evitar a ascensão do Front Nacional ao poder, as facções minoritárias se aliam à Fraternidade e elegem presidente o muçulmano Mohammed Ben Abbes. É o velho mito comunista da “frente antifascista” restaurado, agora sob patrocínio islâmico.

O novo governante é um homem simpático e moderado, que mantém a ala radical sob rédea curta e faz toda sorte de concessões gentis aos partidos aliados, insistindo em manter sob controle islâmico tão somente… a educação nacional. De início estão todos felizes, porque parece que nada vai mudar substancialmente, mas François logo percebe a profundidade das reformas introduzidas por Ben Abbes quando vai dar suas lições de literatura na Universidade de Paris III – a Sorbonne – e vê que a mais tradicional das universidades francesas, agora subsidiada por bilionários sauditas, virou oficialmente uma instituição islâmica na qual não há mais lugar para um agnóstico. Pouco após a demissão, convidado a dirigir a edição das obras do romancista J.-K. (Joris-Karl) Huysmans para a Bibliothèque de la Pléiade, ele vai a uma recepção elegante promovida pela editora Gallimard e nota que ali só há homens: as mulheres, no Islam, ficam em casa. Na escala maior da sociedade as mudanças não são menos portentosas: expelido o sexo feminino do mercado de trabalho, sobra emprego para todos os homens. Da noite para o dia, a França mudou de identidade sem nem mesmo perceber. Ben Abbes, o salvador da pátria, já sonha em integrar na Europa várias nações muçulmanas e restaurar o Império Romano em versão islamizada.

Ao longo da narrativa espalham-se muitas observações exatas sobre a lenta e inexorável decomposição cultural e ideológica da França, cada vez mais desprovida de uma autoridade moral e intelectual habilitada a infundir um sentido de ordem na vida nacional. Quando os partidos políticos, a Igreja, a Maçonaria, a intelectualidade e até o movimento nacionalista se mostram incapazes de compreender o enrosco em que se meteram, a entrada do Islam em cena surge como um alívio improvisado e humilhante, mas necessário: a nação confessa sua bancarrota e, com um pragmatismo entre derrotista e cínico, sem alegria nem tristeza, submete-se ao inevitável. Além de mostrar claramente aquilo que ninguém quer ver – que a força do Islam na Europa não está no terrorismo, e sim na imigração em massa -, a islamização da França, tal como a descreve Houellebecq, ilustra, mutatis mutandis, o conceito de “revolução passiva” de Antonio Gramsci.

Igualmente oportunista e leviana é a “conversão” do próprio François. Ela é magistralmente descrita sob a forma de um paralelo inverso com a biografia espiritual de J.-K. Huysmans. François é autor de uma tese universitária sobre o romancista de Là-Bas,  com a qual granjeou algum prestígio acadêmico. Huysmans, na juventude, envolveu-se em ocultismo e satanismo e, através de uma longa e atormentada crise espiritual, acabou se convertendo ao catolicismo, encerrando seus dias como oblata de uma ordem religiosa.

Nada de semelhante se passa com François. Sua aproximação com o Islam é tranqüila e sem dramas. Não tem, de fato, nenhuma profundidade espiritual. Mesmo a doutrinação que recebe é rala e brevíssima. Limita-se à leitura de um livreto de Robert Rediger, belga islamizado e discípulo de René Guénon, cuja ascensão na política francesa lhe permite viver com suas várias esposas – uma das quais de apenas quinze anos – num casarão elegantíssimo outrora pertencente ao crítico Jean Paulhan (precursor do desconstrucionismo, portanto um dos pais da decomposição cultural), discursando sobre as virtudes do Islam e, contra o mandamento corânico expresso, bebendo vinho na maior tranqüilidade (um hábito que nos anos 80 notei ser muito comum entre intelectuais “perenialistas”  islamizados).

Os argumentos com que Rediger muda a cabeça de François são de uma leviandade a toda prova. Consistem de:
(1) Uma promessa de reintegrá-lo no corpo docente da Sorbonne.
(2) Uma apologia do intelligent design em termos genéricos que serviriam para qualquer religião.
(3) Um discurso sobre as belezas da poligamia do ponto de vista darwiniano: condena os fracos e pobres ao celibato e oferece aos homens de prestígio, como por exemplo um professor universitário, o acesso fácil a mulheres.

Para o quarentão François, é uma oferta irrecusável. Após perder sua última namorada, uma moça judia que foge para Israel para escapar do anti-semitismo crescente na terra do capitão Dreyfus, ele se convence de que já não tem sex appeal, de que sua vida amorosa chegou ao fim: busca alívio na bebida e nas prostitutas, com as quais se entrega a toda sorte de extravagâncias eróticas sem nenhum prazer.  O que Rediger lhe oferece é a restauração, por via legal, da virilidade evanescente: no Islam todos os casamentos são arranjados à distância por meio de alcoviteiras e da instituição dos dotes, poupando aos tímidos, fracos e velhos os desafios da conquista amorosa e favorecendo, em vez dos atrativos viris, a mera superioridade financeira (nem François nem seu novo guru percebem que isso vai contra o princípio da seleção natural).

Tal como a aliança da direita e da esquerda com a Fraternidade Muçulmana, a conversão de François é um arranjo de ocasião, improvisado sem qualquer exame de suas implicações morais e existenciais de longo prazo. François apenas contempla as mocinhas tímidas, mudas e indefesas que se substituíram às ousadas feministas da época pré-islâmica, e conclui, com uma espécie de cinismo inconsciente:

— Não terei nada a lamentar.

No meio da narrativa, François, instigado por um amigo, faz uma visita à abadia de Rocamadour, imponente monumento da arquitetura medieval e foco de peregrinação tradicional onde se dera a conversão de J.-K. Huysmans ao catolicismo. Mas justamente ali, onde o autor de La Cathédrale vivenciara as mais profundas e arrebatadoras experiências espirituais, ele sente uma vaga emoção estética ante o ritual gregoriano e sai imune a toda mensagem cristã.

Sem nenhuma hostilidade especial ao cristianismo, ele aceita sem exame nem entusiasmo o argumento de Rediger contra a Encarnação, baseado exclusivamente no desprezo à espécie humana: Deus não desceria do Seu Trono de Majestade para se misturar com essa gentalha.

É impossível enxergar em Soumission o menor elemento autobiográfico: Houellebecq jamais freqüentou uma universidade (teve de documentar-se para descrever a vida na Sorbonne) e, com toda a evidência, não se identifica com o personagem central, cujo merecido desprezo por si mesmo transparece a cada linha da narração na primeira pessoa. Houellebecq é um daqueles gozadores a um tempo sádicos e discretos, que demolem tudo sem dar a impressão de estar fazendo nada de mais.

O duplo paralelismo – direto com o do destino nacional francês, inverso com a vida de J.-K. Huysmans – é a chave da sutil estrutura narrativa de Soumission: desaparecida do horizonte mental qualquer referência exceto museológica à experiência cristã, esfarelada a consciência entre mil e um artificialismos culturais e ideológicos – do desconstrucionismo ao darwinismo cínico da Nouvelle Droite –,  a alma da nação e a do indivíduo caem juntas no leito cômodo do fato consumado.

A síndrome de Al Capone

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de dezembro de 2015

Jamais esqueci a cena do filme “O Massacre de Chicago” (St. Valentine’s Day Massacre, 1967) em que Al Capone, representado por Jason Robards, esmigalha com um taco de beisebol a cabeça de um companheiro traidor.
Robards, ator impecável, transmite com precisão a ambigüidade do ódio vingativo que se adorna de uma encenação histérica de indignação moral ao ponto de confundir-se com ela.
É um quadro bem conhecido, banal até, nos anais da psicanálise e da psiquiatria forense: a consciência moral do assassino, sufocada e manietada no fundo do inconsciente, vem à tona em forma invertida e se transmuta em inculpação exagerada e teatral dos seus desafetos.
Quanto mais crimes hediondos o sujeito carrega no seu currículo de horrores, mais eloquente e persuasiva a sua afetação de dignidade ofendida.
Mil vezes descrito nos tratados médicos, o fenômeno, no entanto, continua desconhecido da maior parte dos analistas políticos, que não o enxergam nem mesmo quando ele fornece a explicação cabal e óbvia da conduta de certos grupos, facções e partidos.
O critério para reconhecê-lo é simples e infalível: quando o discurso de inculpação moral hiperbólica provém de alguém que cometeu crimes piores do que aqueles que aparentemente o indignam, você está diante do episódio de St. Valentine’s Day Massacre reencenado.
E aí duas séries de fatos paralelos, ambas abundantemente comprovadas, não têm como deixar de por à mostra a conexão íntima que as liga no fundo mais tenebroso da consciência histérica:
(1) Quem são os campeões absolutos na produção de discursos de indignação moral no mundo? Os comunistas.
(2) Quem são os campeões absolutos na prática do genocídio, da tortura, das prisões em massa, do assassinato de inimigos políticos, da escravização de populações inteiras? Também os comunistas.
Há nisso, é claro, um elemento de premeditação manipulatória: “Xingue-s do que você é, acuse-os do que você faz.” Mas isso é só na cabeça dos mandantes supremos, dos engenheiros sociais pavlovianos, dos próceres da KGB, da Stasi ou da DGI.
Nas almas dos militantes,  o que veio de cima como truque publicitário se converte em reação emocional espontânea, num modo de ser e de sentir habitual e automático, sem premeditação alguma: cada um deles sente que esmigalhar as cabeças dos adversários é uma obrigação moral sublime, uma graça santificante.
Se o adversário vê nisso algum mal, é a prova definitiva de que ele é um fascista sanguinário e, portanto, mais um motivo justo para lhe esmigalhar a cabeça.
A naturalidade quase ingênua com que essa gente se sente ofendidíssima com meras opiniões e reage mediante apelos ao assassinato político seria inexplicável sem a “síndrome de Al Capone”. A desproporção entre estímulo e resposta revela que, além do estímulo aparente, está em jogo uma motivação suplementar oculta.
Essa motivação é um mecanismo circular: Nada sufoca mais eficazmente o clamor da consciência moral do que sua imitação histérica invertida –alimentada, por sua vez, pelo próprio clamor sufocado que lateja no fundo do inconsciente.
Toda semana aparecem novos exemplos. Desta vez foi a chuva de ameaças de morte a Donald Trump porque quer vetar a entrada de muçulmanos no país até que sejam investigados e liberados.
A proposta do candidato tem ampla base constitucional reforçada por vasta jurisprudência da Suprema Côrte, mas a massa esquerdista indignada não aceita sequer discuti-la: quer suprimi-la matando o seu autor.
A “sindrome de Al Capone” deitou raízes tão fundas nas almas dos militantes esquerdistas, que até aqueles que jamais cometeram crime algum estão sempre em guarda contra a mera possibilidade de tomar consciência dos horrores praticados por seus correligionários, defendendo-se dessa perspectiva temível mediante o mesmo reflexo de inculpação projetiva hiperbólica.
Mesmo o mais inocente e bocó dentre os idiotas úteis do petismo ferve de indignação cívica contra o deputado Eduardo Cunha, como se os delitos menores e não provados que a este se atribuem fossem a causa da desgraça nacional, muito acima do Petrolão, do Mensalão e do rombo das contas públicas.
Sentindo-se acusado por tabela, arma-se de um taco de beisebol verbal e sonha em rachar cabeças como se fosse uma miniatura de Al Capone.

Intimação

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 03 de dezembro de 2015  

Até os anos 80 do século passado, programas como sex lib, feminismo, gayzismo, abortismo e liberação das drogas eram, para os governos comunistas, desvios pequeno-burgueses criados pelo imperialistas ianques para afastar a juventude da luta pelo socialismo.
Decorrida uma geração, todos esses temas foram absorvidos no discurso revolucionário e muito contribuíram para que o esquerdismo, aparentemente condenado à morte pela queda da URSS, não só sobrevivesse como se tornasse a força política dominante na Europa e nas Américas.
Se isso não basta para tornar evidente a potência de autotransformação camaleônica do movimento revolucionário mundial, não sei mais quantos desenhos seria preciso esboçar no quadro negro para ilustrá-la. No entanto, pouquíssimas são as inteligências que, nas hostes liberais e conservadoras, se deram clara conta desse fenômeno e de suas conseqüências.
Mas outras mutações concomitantes, tão vastas e profundas como essa, vieram a tornar o panorama ainda mais confuso.
Cito somente quatro:
1. A invasão islâmica, a “ocupação pela imigração”, cuja realidade muitos negavam até ontem, é agora um fato patente que ameaça a segurança de todas as nações ocidentais. Ao mesmo tempo, o cristianismo vem sendo cada vez mais  banido da esfera pública, só deixando aos governos, mesmo soi disant conservadores, a saída de opor, à islamização crescente, o apelo aos mesmos valores laicos “politicamente corretos” que a esquerda conseguiu impor como normas universalmente válidas.
O resultado é óbvio: a invasão islâmica não cessa, mas a esquerda se afirma cada vez mais como a grande e única salvadora das democracias, que ao mesmo tempo ela solapa mediante o apoio ostensivo à imigração muçulmana em massa como alternativa “pacífica” ao terrorismo.
2. Instruído ao menos parcialmente pelo “eurasianismo” de Alexandre Duguin, o presidente russo Vladimir Putin decidiu empunhar a bandeira do cristianismo tradicional e brandi-la contra o Ocidente hedonista e agnóstico, ganhando com isso o apoio de amplas faixas de conservadores desiludidos.
Desiludidos seja com o establishment americano, impotente para livrar-se de um bandidinho chinfrim sem documentos que já mal esconde suas simpatias islâmicas; seja com a Igreja Católica, cujo Papa se parece cada vez mais com um upgrade improvisado do sr. Leonardo Boff.
Ao mesmo tempo que seduz esse público, porém, Putin vai, mediante acordos de cooperação econômica e militar, dando a maior força aos movimentos esquerdistas por toda parte, colocando os conservadores na posição desconfortável de servir a seus inimigos estratégicos em troca de um reconforto ideológico passageiro e muito provavelmente ilusório.
3. Também simultaneamente, muitos grupos capitalistas bilionários passaram a apoiar partidos e movimentos de esquerda de maneira cada vez mais ostensiva, culminando na declaração pública do sr. Bill Gates de que só o socialismo salvará o mundo.
Nesse panorama, a mera defesa da economia de mercado, que até ontem era a pièce de resistance do cardápio liberal-conservador, perde todo sentido estratégico e se torna um mero pretexto para adotar, em nome da “modernidade” e da “democracia”, todo o programa sociocultural da esquerda: gayzismo, abortismo, etc. etc.
4. Por fim, esse programa foi integralmente subscrito pela ONU e se tornou obrigatório para todas as nações — exceto as islâmicas, é claro, que assim se beneficiam duplamente da dissolução moral do Ocidente, por um lado aproveitando-se da debilitação das identidades nacionais (desprovidas cada vez mais de seus fundamentos religiosos) e arrombando portas para a entrada de novas levas de imigrantes, por outro lado oferecendo-se gentilmente como portadoras da esperança de uma possível “restauração da moralidade”.
Tudo parece calculado, enfim – pelo demônio em pessoa, quem mais?– para aprisionar a opinião pública mundial numa rede de ambigüidades e contradições paralisantes, de modo pegá-la desprevenida, sonsa e inerme no dia em que se realizar a profecia que Carlos Drummond de Andrade enunciou nos versos da “Intimação”:
Abre em nome da lei.
Abre sem nome e lei.
Abre mesmo sem rei.
Abre sozinho ou grei.
Não, não abras; à força
de intimar-te, repara:
eu já te desventrei.

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