Monthly archive for maio 2012

Ato falho

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 31 de maio de 2012

Um precedente histórico sangrento pode ilustrar a deformidade mental que inspira os trabalhos da Começão de Dinheiro Público, a que um lance de humorismo macabro deu o nome de “Comissão da Verdade”.

O mundo inteiro sabe do genocídio ruandês de 1994, quando, segundo a versão consagrada, a maioria de raça hutu matou a tiros, facadas e machadadas 75 por cento da minoria tutsi, mais de um milhão de pessoas.

No curso do morticínio, os tutsis também cometeram crimes, mas o Tribunal Penal Internacional decidiu não investigá-los, sob o pretexto edificante de que estavam previamente justificados como reações compreensíveis da minoria oprimida à violência da maioria agressora.

Resultado: os hutus e principalmente seus comandantes militares entraram para os anais da crueldade universal como autores únicos e exclusivos de um massacre despropositado, politicamente inútil e moralmente abjeto.

Bernard Lugan, o maior historiador de assuntos africanos que o Ocidente já conheceu, atualmente professor da Universidade de Lyon, trabalhou como consultor do Tribunal e publicou dois livros a respeito da tragédia ruandesa, subscrevendo a narrativa oficial.

Decorridos treze anos da sentença, Lugan teve acesso a uma documentação mais completa e, num exemplo raro de coragem e honradez intelectual, confessou que ele e o Tribunal estavam completamente errados:

1) Quem começou a briga foi o general tutsi Paul Kagame, que mandou explodir com dois mísseis soviéticos o avião em que viajava o presidente ruandês Juvenal Habyarimana e, por meio de um golpe de Estado, se fez presidente de Ruanda com o apoio de uma minoria eleitoral ínfima.

2) O massacre não foi iniciativa unilateral dos hutus, mas um conflito generalizado em que as duas facções combatentes agiram de maneira igualmente criminosa: no fim das contas, morreram 600 mil tutsis e 500 mil hutus. A denominação mesma de “genocídio” acaba se revelando inadequada para descrever os acontecimentos, mais propriamente definidos, portanto, como genuína guerra civil.

3) Na confusão que se seguiu ao assassinato do presidente Habyarimana, os militares hutus não cederam a nenhuma tentação de golpe de Estado, mas fizeram o possível para manter a ordem constitucional, acabando por perecer como vítimas de um legalismo abstrato que, naquelas condições, se revelou incapaz de controlar a fúria popular.

4) A minoria tutsi havia governado Ruanda pacificamente durante séculos, amparada num prestígio de casta que a maioria aceitava sem reclamar. Foi a ONU que introduziu à força o critério democrático do “governo da maioria”, quebrando de repente a ordem tradicional e desencadeando a crise que culminaria na guerra civil. O resultado final do conflito foi a derrota da democracia impossível e o retorno ao velho sistema africano do governo de casta… com o apoio da própria ONU.

5) A pressão do movimento anticolonialista internacional, em que a URSS e os EUA se deram as mãos numa estratégia conjunta para a destruição das potências coloniais européias, forçou o exército francês a se retirar de Ruanda em dezembro de 1993, deixando o país à mercê de tropas nacionais obviamente incapazes de manter a ordem: quatro meses depois, começava a guerra civil, que jamais teria acontecido se os soldados franceses ainda estivessem ali presentes.

Ao recusar-se a investigar os crimes cometidos pelos tutsis, a ONU não fez senão camuflar sob a infalível retórica humanitária a sua própria parcela de responsabilidade – a maior de todas, sem dúvida – na produção do morticínio.

Se puderem, leiam Rwanda: Contre-Enquête sur le Genocide, Toulouse, Éditions Privat, 2007, onde o grande historiador se revela também um grande homem.

Mutatis mutandis, a coisa mais óbvia do mundo é que o golpe de 1964 nunca teria acontecido se o presidente João Goulart não tivesse se acumpliciado a Fidel Castro nos seus planos de revolução continental, chegando a acobertar as guerrilhas que já em 1963 estavam em plena atividade no Nordeste brasileiro, orientadas diretamente desde Cuba e sob a direção local do chefe das Ligas Camponesas, Francisco Julião.

Quando exclui do seu campo de investigações os crimes cometidos pela esquerda terrorista, a “Comissão da Verdade”, que não passa de uma vulgar equipe de propaganda a serviço da esquerda dominante, busca  varrer para baixo do tapete fatos essenciais que, divulgados como merecem, desfariam em pó a lenda de que as guerrilhas nacionais foram uma reação “democrática” ao regime militar instalado no país em abril de 1964 – quase um ano depois de descoberta a guerrilha de Julião.

Ao inaugurar a porcaria, o ex-ministro José Carlos Dias, que tem uma longa folha de serviços prestados à esquerda revolucionária, incorreu num ato falho freudiano quando declarou: “Não seremos os donos da verdade, mas seus perseguidores obstinados.” O verbo “perseguir” tem às vezes a acepção de “buscar”, porém mais freqüentemente significa, segundo o Caldas Aulete, “atormentar, castigar, punir, fazer violência”. A Comissão, portanto, já começou a mostrar serviço. Perseguida e acossada, a verdade histórica não tem ali a menor chance de prevalecer.

Promessa cumprida

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de maio de 2012

Amigos e leitores perguntam o que penso da “Comissão da Verdade”. Nem há muito o que pensar. Ao entregar à admiração pública essa criatura dos seus sonhos, a presidenta Dilma Rousseff prometeu “transparência”, e confesso raramente ter visto coisa tão transparente, tão aberta à inspeção de seus mais íntimos segredos. Tão cândido é o despudor com que ela se apresenta, que vai até um pouco além da obscenidade. A mais exaurida das imagens diria que desde a roupa nova do rei não se via nada igual. Mas, comparadas a este espetáculo, as vestes inexistentes de Sua Majestade têm a impenetrabilidade de uma burqa. De um só lance, o sistema que nos governa rasga as vestes e, lançando às urtigas até o manto diáfano da fantasia, exibe ao mundo suas banhas, suas partes pudendas e suas entranhas com o devido conteúdo excrementício.

O nome da porcaria já diz tudo. Nenhuma comissão investigadora com alguma  idoneidade e honradez pode prometer, antecipadamente, “a verdade”. No máximo, uma busca criteriosa, o respeito aos fatos e documentos e um esforço sincero de interpretá-los com isenção. Se antes mesmo de constituir-se a coisa já ostentava o rótulo de “a verdade”, é porque seus membros não esperam encontrar pelo caminho aquelas incertezas, aquelas ambigüidades que são inerentes tanto ao processo histórico quanto, mais ainda, à sua investigação. Se têm tanta certeza de que o resultado de seus trabalhos será “a verdade”, é porque sentem que de algum modo já a possuem, que nada mais têm a fazer do que reforçar com novos pretextos aquilo que já sabem, acreditam saber ou desejariam fazer-nos crer.

E quem, ó raios, ignora que verdade é essa? Quem já não conhece, para além de toda dúvida razoável, o enredo, os heróis, os vilões e a moral da história no script da novela que os sete membros da Comissão terão dois anos para redigir? Quem não sabe que o produto final da sua criatividade literária será apenas o remake, retocado num ou noutro detalhe, de um espetáculo já mil vezes encenado na TV, nas páginas dos jornais e revistas, em livros e teses universitárias, em manuais escolares e em discursos no Parlamento?

Se é certo que quem domina o passado domina o futuro, qualquer observador atento poderia prever, já nos anos 60, a conquista do poder pela esquerda revolucionária e a instauração de um sistema hegemônico que eliminaria de uma vez por todas a mera possibilidade de uma oposição “direitista” ou “conservadora”. Sim, desde aquela época, quando os generais acreditavam mandar no país porque controlavam a burocracia estatal, a esquerda, dominando a mídia, o movimento editorial e as universidades, já tinha o monopólio da narrativa histórica e portanto, o controle virtual do curso dos acontecimentos. Os militares, que em matéria de guerra cultural eram menos que amadores, nada perceberam. Imaginaram que a derrota das guerrilhas havia aleijado a esquerda para sempre, quando já então uma breve leitura dos Cadernos do Cárcere teria bastado para mostrar que as guerrilhas nunca tinham sido nada mais que um boi-de-piranha, jogado às águas para facilitar a passagem da boiada gramsciana, conduzida pelo velho Partidão no qual os luminares dos serviços de “inteligência” militares só enxergavam um adversário inofensivo, cansado de guerra, ansioso de paz e democracia, quase um amigo, enfim.

A história que a “Comissão da Verdade” vai publicar daqui a dois anos está pronta desde a década de 60.

O simples fato de que os comissionados se comprometam a excluir do seu campo de investigações os crimes cometidos pelos terroristas já determina que, no essencial, nada na narrativa consagrada será alterado, exceto para reforçar algum ponto em que a maldade da direita e a santidade da esquerda não tenham sido realçadas com a devida ênfase.

Com toda a evidência, não é possível a reconstituição histórica de delitos cometidos por uma tropa em combate sem perguntar quem ela combatia, por que combatia e quais critérios de moralidade, iguais para ambos os lados, eram vigentes na ocasião dos combates. O prof. Paulo Sérgio Pinheiro não entende essa obviedade, mas quando foi que ele entendeu alguma coisa?

Os membros da Comissão enfatizam que os trabalhos da entidade “não terão caráter jurisdicional nem persecutório”, que visarão apenas a reconstituir a “verdade histórica”. Mas quem não enxerga que essa presunção já nasce desmascarada pelo fato de que, entre os incumbidos da missão historiográfica, não há um único historiador, nem unzinho: só juízes, advogados e – sem outra razão plausível fora a homenagem de praxe ao charme e à beleza da mulher brasileira – uma psicanalista.

Já imaginaram um tribunal penal ou cível sem um único juiz, tão somente professores de História e um ginecologista?

Juristas não têm treinamento profissional para a averiguação histórica de fatos, só para a sua posterior catalogação e avaliação legal. E é precisamente disto que se trata. Não é preciso pensar nem por um minuto para enxergar que a finalidade da coisa não é a verdade histórica, mas o julgamento, a condenação moral e publicitária, a humilhação dos acusados, preparando o terreno para um festival de punições sob o título cínico de “reconciliação”.

Tudo isso é óbvio, transparente à primeira vista. A promessa da presidenta, portanto, já está cumprida. Apenas, S. Excia. se esqueceu de avisar, ou de perceber, que o objeto visível por trás da transparência não é a verdade do passado, mas a do presente: não o que sucedeu entre militares e guerrilheiros nos anos 60-70, mas o que se passa nas cabeças daqueles que hoje têm o poder de julgar e condenar.

A ordem dos fatores

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de maio de 2012

No estudo admirável que publicou em 1994 sob o título The Soviet Tragedy, Martin Malia pergunta por que os sovietólogos ocidentais, tão prestigiosos, tão bem pagos, tão dotados de amplos meios de investigação, não atinaram nem por um momento com a queda iminente da URSS, e ao contrário continuaram prevendo, até a véspera do desenlace, uma nova era de progresso espetacular para o gigante de pés de barro.

O caso mais patético foi o de Paul Kennedy, historiador da Yale University, cujo livro Ascensão e Queda das Grandes Potências, anunciando para breve a queda dos EUA e a ascensão da URSS como potência dominante, virou um best-seller mundial, foi traduzido em 23 idiomas e celebrado como o nec plus ultra em matéria de análise estratégica. Isso foi em 1987: três anos antes que o curso das coisas o desmentisse fragorosamente, provando, pela milésima vez, que o aplauso universal da mídia reflete apenas o entusiasmo da uma multidão de cegos tagarelas pelos cegos ainda mais tagarelas que os guiam.

Em contraste, assinala Malia, os dissidentes internos, Bukovski, Soljenítsin, Zinoviev e tantos outros, nunca cessaram de insistir que o comunismo era irreformável, que sua autodestruição era apenas questão de tempo, mas eram recebidos com ceticismo no ambiente acadêmico ocidental, que os via como sonhadores incapazes de atinar com o poder de auto-renovação do regime soviético.

Pior ainda, os desertores da KGB e do serviço militar soviético, que traziam inside information da melhor qualidade, anunciando que o sistema estava consciente de ter de desmantelar-se até mesmo para salvar o que restasse do movimento comunista mundial, foram desprezados como “teóricos da conspiração” pelos serviços de inteligência ocidentais, isto é, pelos mais autorizados sovietólogos do mundo, porque os diagnósticos que ofereciam vinham só dos altos círculos governantes, sem levar em conta – alegava-se – as realidades sociais e econômicas do regime. O mais brilhante desses desertores, Anatolyi Golytsin, cujas previsões acabariam depois se revelando acertadas em pelo menos 94 por cento, foi o mais criticado e ridicularizado pelos bem-pensantes.

Martin Malia pergunta-se como foi possível que erros tão colossais se tornassem verdades indiscutíveis para toda uma elite acadêmica espalhada pelas maiores universidades, institutos de pesquisa, think tanks e serviços da inteligência da Europa e dos EUA, praticamente sem uma única voz discordante.

Ele poderia ter respondido, genericamente, que a principal tarefa do consenso acadêmico há duzentos anos tem sido precisamente a de impor a autoridade do erro como padrão supremo de racionalidade em todos os campos do conhecimento humano, e acabar sendo sempre desmentido por um ou dois gênios isolados, teimosos e mal subsidiados.

Mas ele preferiu dar uma ilustração mais detalhada dessa resposta.

Os estudos sovietológicos no Ocidente, no seu empenho de tornar-se cientificamente respeitáveis, seguiram em linhas gerais as duas tradições mais badaladas no campo da sociologia histórica, o positivismo e o marxismo. Segundo essas duas escolas, o rumo das coisas na esfera político-ideológica é, ao menos a longo prazo, determinado por fatores mais básicos de ordem econômico-social.

Esse princípio servia portanto, uniformemente, para analisar tanto as sociedades ocidentais como a soviética. Dele os sovietólogos concluíam que o “potencial de crescimento” da sociedade soviética terminaria por prevalecer sobre a rigidez ideológica da elite governante, forçando-a modernizar o regime para liberar, como diria Marx, as “forças produtivas”.

Nesse diagnóstico, diz Malia, não contavam com dois fatores: a força avassaladora da elite revolucionária, que ao longo de seis décadas diluíra e remoldara a seu belprazer uma sociedade passiva e inerme, e a rigidez imutável das instituições de controle governamental criadas por essa mesma elite, capazes, no máximo, de variar a dose de violência repressiva que aplicavam a cada momento, porém jamais de reformar-se de alto a baixo. Na URSS, em suma, não vigorava a hierarquia marxista de uma “infra-estrutura” econômico-social a determinar os rumos da “superestrutura” ideológica e política. A superestrutura havia se fortalecido e enrijecido a tal ponto, que já não podia refletir as mudanças da infra-estrutura: o regime soviético só podia eternizar-se, estrangulando a sociedade, ou suicidar-se para deixar a sociedade viver. O plano reformista de Gorbachov fracassou e o governo soviético foi repentinamente suicidado por um bêbado corajoso. Quod erat demonstrandum.

Ao consentir em usar as categorias de infra-estrutura e superestrutura como instrumentos essenciais de análise do fenômeno soviético, os sovietólogos ocidentais mostraram ter-se deixado hipnotizar pelos esquemas mentais do inimigo, tentando apenas usá-los com signo político invertido. Isso nunca funciona.

Os dissidentes, ao contrário, jogaram o marxismo fora junto com a discurseira oficial do Kremlin, e buscaram categorias de pensamento radicalmente novas, inspiradas em parte na filosofia da religião, em parte na lógica matemática, em na própria tradição literária russa, chegando a desvendar os mais íntimos segredos do sistema soviético ao ponto de diagnosticar com clareza o seu estado terminal.

Nossos liberais e conservadores teriam algo a aprender com essa lição, mas quem pode com gente de casca grossa e miolo mole? Metade deles acredita que a economia move o mundo (como se hoje em dia não fosse ela o mais volátil dos fatores), a outra metade imagina que o melhor que tem a fazer é macaquear o programa cultural da esquerda.