Yearly archive for 2007

São Ricardo Musse

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 08 de outubro de 2007

Resenhando na Folha de S. Paulo do dia 23 de setembro os meus livros A Dialética Simbólica e O Futuro do Pensamento Brasileiro (É-Realizações, 2007), o sr. Ricardo Musse distingue-se do seu antecessor Wilson Martins porque os leu, fez um esforço sincero de compreendê-los e até que obteve nisso algum sucesso. Nas presentes condições do ambiente cultural brasileiro, e principalmente considerando-se que o resenhista é professor da USP, semelhantes feitos justificam a abertura de um processo de canonização, que já encaminhei ao Vaticano. Louvemos São Ricardo Musse .

O resumo que ele fornece dos livros é exato e fidedigno, e só dois pontos restariam a objetar à sua resenha. O primeiro é a afirmação de que juro fidelidade a Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Gilberto Freyre e Miguel Reale. Honrar exemplos ilustres não é o mesmo que subscrever suas idéias. Propus esses grandes nomes como modelos para a educação brasileira, não necessariamente para mim mesmo. Uma coisa é selecionar os melhores no panorama nacional, outra é escolher num catálogo universal os mestres para um estudante em particular — no caso, eu. A lista dos meus gurus está no meu site, http://www.olavodecarvalho.org , e dos quatro citados só o primeiro se encontra entre eles.

O segundo ponto é a importância exagerada que a resenha atribui a esses dois livros no conjunto do meu trabalho, cuja órbita de interesses os transcende formidavelmente. É erro inocente que não provém de o crítico os ter lido mal, mas de não possuir conhecimento suficiente dos meus demais livros nem muito menos dos meus cursos transcritos – mais de vinte mil páginas, a esta altura. Medida na régua desses dois livros, minha vida de filósofo parece ter por objetivo supremo a crítica cultural, que, na verdade, é apenas o seu ponto de partida.

Num escrito já antigo, de 1997, Esboço de um Sistema de Filosofia , eu resumia o conjunto até então circulante (em livros, apostilas e gravações de aulas) como uma construção em onze etapas ou círculos, dos quais o primeiro e mais exterior era justamente a crítica cultural, ali qualificada como a provocação inicial a todo esforço filosófico.

Ensaios críticos, quase todos eles anteriores ao Esboço, compõem justamente o miolo dos dois livros ora publicados, os quais não podem, por isso mesmo, ser considerados uma exposição adequada do meu projeto intelectual, mas apenas dos motivos mais externos e ocasionais que o determinaram.

Nos dez anos que decorreram desde então, não só o meu pensamento assumiu direções imprevistas e sofreu upgradessubstanciais, mas o plano mesmo que o orientava foi bastante alterado e ampliado.

Como, por outro lado, a crítica cultural, praticada geralmente à moda frankfurtiana ou então desconstrucionista, representa hoje o horizonte máximo da intelectualidade brasileira – que em geral não chega nem a isso, limitando-se à propaganda pura e simples –, o fato de que a resenha encare o meu pensamento sob essa vertente exclusiva, adequando-o portanto às medidas usuais da esquerda acadêmica, pode dar a milhares de bocós a ilusão de que o compreenderam mediante a simples leitura daquelas trinta linhas, e então correremos o risco de que, após tê-lo rejeitado como um produto estranho e incatalogável, saiam pontificando a respeito com a naturalidade de velhos clientes da casa.

A propensão brasileira ao histrionismo intelectual é mais que propensão: é compulsão. O excelente Ricardo Musse não terá nenhuma culpa por isso, é claro, mas terá servido de arma do crime.

Oproblema que a esquerda acadêmica tem comigo é a sua inferioridade intelectual monstruosa, que ela busca compensar pela supremacia burocrática, pela voraz ocupação de espaços, pelo consumo pantagruélico de verbas públicas, pelo controle da mídia cultural, pela afetação histriônica de desprezo olímpico e por uma suscetibilidade autoritária que raia a demência pura e simples. Se a inveja material pode ser curada pela vaga esperança de um dia possuir bens equivalentes aos que a despertaram, a inveja intelectual não dispõe desse atenuante e é o equivalente terrestre de uma condenação eterna. O caráter abstrato e impalpável do objeto invejado torna-o tanto mais inacessível quanto mais a alma do interessado se debate, como é próprio do invejoso, entre o desejo e o ódio, entre a admiração rancorosa e o desprezo fingido.

As portas do espírito só se abrem à perfeita sinceridade de propósitos. Minha obra, como qualquer outra criação espiritual, está perfeitamente protegida contra a curiosidade dos maliciosos, aos quais não resta senão o pobre consolo de tentar roer pelas beiradas a reputação do autor, mediante rotulações absurdas ou intrigas. Sonhar que mentes raquíticas e doentes como as dos srs. Emir Sader e Quartim de Moraes chegarão algum dia a compreender o que é filosofia – conditio sine qua non para um diálogo com a minha filosofia – é esperar que brotem rosas de um porco-espinho. Não cabe a menor dúvida de que num futuro não muito distante esses nomes só serão lembrados – como é hoje o do outrora badaladíssimo José Américo Motta Pessanha – pelas menções lhes concedi nos meus escritos.

A única hipótese de que as coisas não se passem assim é a instalação de um rígido controle estatal da memória pública, como se fez na URSS, com a proibição total de citar autores condenados – mas mesmo esse expediente não fará, a médio e longo prazo, senão realçar grotescamente a impotência intelectual de seus beneficiários, enaltecendo a honra de suas vítimas. A maior glória de qualquer escritor russo, ao longo do regime comunista, foi a de ser excluído da Enciclopédia Soviética .

A presente intelectualidade esquerdista apostou tudo no tráfico de influência e no poder dos truques sujos, nada na busca sincera, no esforço de compreender a realidade. Passadas as disputas políticas do dia, esquecida a trama atual de interesses, ficará nítido que sua contribuição intelectual ao futuro é nula de pleno direito. Sem o suporte do poder político, sua influência se desfará no ar como um pum (digo isso sem desdouro dessas saudáveis efusões da gastrenterologia humana).

A melhor prova disso é o manifesto pró-Quartim, assinado por 1.300 mentecaptos acadêmicos. Tomado no conjunto das anotações que o reforçam, o documento é um mostruário de misérias intelectuais que, em comparação, fariam da Zâmbia uma nova Atenas. Desde a exibição despudorada do analfabetismo endêmico na classe dos professores universitários brasileiros até a pletora de chavões pueris extraídos diretamente da retórica stalinista – sem mencionar um ou outro doente mental que se finge de meu íntimo, portador de informações privilegiadas -, o documento é uma confissão de inépcia coletiva como nunca se viu, coisa de um ridículo tão patente e doloroso que, malgrado a profusão de medalhões que a assinam, os grandes jornais preferiram antes escondê-la, de modo que o único a lhe dar ali alguma divulgaçãozinha, por caridade (ou talvez por sadismo), fui eu.

O que temo é que a ótima resenha da Folha dê a essa gente uma enganosa impressão de facilidade, tornando-lhe aparentemente acessível o que na verdade está e estará para sempre fora do seu alcance, exceto na hipótese remota de uma metanóia , de uma crise espiritual curativa.

 

De Platão a Mangabeira

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 04 de outubro de 2007

Depois que os brasileiros tiraram o último lugar entre estudantes secundários de 32 nacionalidades, os progressos da ignorância pátria não cessaram de assombrar o mundo. O “Índice Global de Talentos” da consultorias Economist Intelligence Unit e Heidrick & Struggles mostra que o Brasil é um dos países com menor capacidade de criar ou atrair mentes brilhantes. Num total de trinta concorrentes, estamos em 23º lugar.

Não me venham com as explicações econômicas de sempre. “Nêfte paíf”, recordista mundial de professores universitários per capita (um para cada oito alunos), a classe dos intelectuais subsidiados prospera dia-a-dia desde que a USP chegou ao poder com Fernando Henrique e nunca mais saiu de cima de nós. Os dois fatores estão interligados. À progressiva míngua de talentos corresponde o vigoroso crescimento da máfia intelectual ativista. “Ativista” não quer dizer mentalmente ativo, mas “politicamente participante”, isto é, o sujeito que tem a generosidade de ocupar quantos cargos públicos lhe ofereçam, de embolsar todas as verbas estatais disponíveis e de assinar todos os manifestos que se publiquem em favor de pessoas envolvidas solidariamente nas duas tarefas anteriores.

Desde o tempo de O Imbecil Coletivo, já documentei tão amplamente a inépcia grotesca das figuras mais badaladas da intelectualidade nacional, que oferecer novas provas seria redundância. Mas não resisto a apontar o exemplo do prof. Roberto Mangabeira Unger, que de certo modo condensa na sua desengonçada pessoa todo esse fenômeno sociológico.

Outro dia, rememorando Platão, escrevi que filósofo é o indivíduo que tenta encontrar um princípio de ordem na sua própria alma e então – só então – diagnosticar ou mesmo tentar curar a desordem do mundo. Com essa idéia na cabeça, tomei um susto quando li a declaração do supracitado Mangabeira: “Para ajudar a transformar o Brasil, em primeiro lugar tenho que transformar a mim mesmo.”

Será que o Mangabeira virou filósofo após tê-lo parecido tão bem?, perguntei. Na continuação, porém, o iluminado esclarecia o sentido da transformação interior a que almejava: “Sou um homem sem charme num país de charmosos. Isso é uma séria complicação. Eu preciso aprender a ter charme.”

Platão, logo após seu fracasso político juvenil, descobriu que não estaria apto a orientar governantes enquanto não encontrasse dentro de si a raiz que o ligava ao fundamento último da existência. Tal foi a meta a que dirigiu seus esforços de uma vida inteira. O guru presidencial, em contraste, sente que para o desempenho de suas altas responsabilidades não lhe falta senão o que pode haver de mais exterior e efêmero. Sem querer, ele enuncia aí o princípio supremo da pedagogia filosófica nacional, que Machado de Assis já havia resumido na “Teoria do Medalhão”: o ser é nada, o parecer é tudo. Tal é a distância que separa Atenas de Brasília.

Guiada por tipos que não são nem mesmo o Mangabeira Unger mas aspiram a sê-lo quando crescerem, a inteligência brasileira entrou em parafuso, veio ao solo e, rompendo-lhe a superfície, mergulhou na treva infernal da estupidez auto-satisfeita. Desde então nossas universidades, sustentadas pelo dinheiro público, despejam anualmente no mercado milhões de imbecis qualificados para a devoção ao Che, o consumo de drogas e o culto emocionado da sua própria superioridade moral, medida pela raiva assassina que sentem do restante da espécie humana. Nessas condições, a educação nacional, hoje em dia, só se distingue do crime organizado porque o crime é organizado.

Entre tiros e afagos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 03 de outubro de 2007

O que escrevi aqui dias atrás sobre a incompatibilidade entre as pretensões da esquerda e as tradições constitutivas das Forças Armadas teve logo em seguida a mais significativa das confirmações quando fiquei sabendo que os três clubes que congregam a oficialidade nacional – o Clube Militar, o Clube Naval e o Clube da Aeronáutica – estão movendo, juntos, uma ação judicial contra a promoção post mortem do terrorista Carlos Lamarca ao posto de coronel de um Exército que ele traiu.

A petição, redigida pelo advogado carioca Nina Ribeiro, não foi noticiada pela grande mídia, empenhada em fazer parecer que toda a encrenca entre o governo e os militares é apenas uma rusga passageira entre um ministro fanfarrão e alguns oficiais magoados.

O sr. Nelson Jobim é de fato presunçoso e mandão ao ponto de tornar-se insuportável, mas sua conduta grotesca não faz senão trazer à mostra um conflito bem mais profundo, estrutural e, a longo prazo, sem solução.

As Forças Armadas estão bem conscientes de que não servem ao governo, muito menos a governantes, mas ao Estado brasileiro. Toda a estratégia petista, ao contrário, consiste em submeter o Estado não só ao governo, mas ao partido governante e, através deste, ao esquema revolucionário continental protagonizado pelo Foro de São Paulo, com todas as entidades estrangeiras que o compõem e que, através dele, se sentem autorizadas a interferir nos assuntos nacionais com a mesma naturalidade amoral, quase candura sociopática, com que o sr. Luís Inácio confessa ter usado o governo brasileiro como instrumento para dar uma ajudinha ao sr. Hugo Chávez no plebiscito venezuelano.

O que há aí não é uma querela de ocasião, mas uma contradição antagônica que só pode ser resolvida mediante a eliminação de um dos termos: ou o PT desiste de suas alianças com o movimento comunista latino-americano e consente em tornar-se um partido burguesmente inofensivo, submisso à ordem capitalista democrática que ele jurou substituir por um paraíso socialista, ou as Forças Armadas desistem de ser o que são e aceitam servir sob as ordens do Foro de São Paulo, juntando-se às tropas de Hugo Chávez e de Fidel Castro na “guerra anti-imperialista do povo inteiro” contra os EUA.

As duas hipóteses são desastrosas: a primeira jogaria contra o PT a totalidade da esquerda revolucionária continental, sujeitando os líderes petistas à ameaça dos seqüestros, atentados e demais truculências que eles acham lindas quando praticadas contra os outros. A segunda transformaria as nossas Forças Armadas não só em servidoras de seus inimigos mas em cúmplices de uma aventura revolucionária que só pode resultar na total destruição da nossa soberania, se não das bases materiais da existência nacional.

Consciente dessas tremendas dificuldades, a liderança esquerdista tem procurado ganhar tempo, adiando o confronto enquanto busca persistentemente levar para dentro dos quartéis a “revolução cultural” incumbida de transmutar as Forças Armadas no seu oposto, pelos meios ardilosos, lentos, delicados e anestésicos criados pelo gênio maligno de Antônio Gramsci. Sabemos que um dos cérebros mais ativos por trás dessa operação é o sr. João Carlos Kfouri Quartim de Moraes, sendo este o motivo pelo qual eu ter pisado no calo dessa figura apagada e discreta suscitou uma reação tão histérica da parte da intelligentzia esquerdista.

O antagonismo entre o futuro da revolução continental e o passado histórico das Forças Armadas é simbolizado de maneira eloqüente pelo contraste entre duas cenas que se repetem de tempos em tempos: de um lado, nossos soldados das tropas de fronteira trocando tiros com os guerrilheiros das Farc na Amazônia, de outro o presidente da República, em Brasília, afagando as cabeças dos líderes da organização. O sr. Luís Inácio é um mestre na arte de empurrar com a barriga, mas há contradições objetivas cujo peso resiste até mesmo à respeitável protuberância ventral de S. Excia.

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