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Capitalismo e liberdade (III)

Por José Nivaldo Cordeiro


20 de julho de 2002

No próximo dia 31 de julho, Milton Friedman completará noventa anos de idade.

O papel do governo em uma sociedade livre é o objeto do segundo capítulo do livro “Capitalismo e Liberdade”, de Milton Friedman, sobre o qual discorrerei aqui, encerrando a série de comentários que me propus fazer sobre a obra. Ele é taxativo: “Por mais atraente que possa o anarquismo parecer como filosofia, ele não é praticável em um mundo de homens imperfeitos. As liberdades dos homens podem entrar em conflito e quanto isso acontece a liberdade de uns deve ser limitada para preservar a de outros”.

O Estado é visto pelo autor como uma espécie de árbitro: “Do mesmo modo que um bom jogo exige que os jogadores aceitem tanto as regras quanto o árbitro, encarregado de interpretá-las e de aplicá-las, uma boa sociedade exige que seus membros concordem com as condições gerais que presidirão as relações entre eles…“. Friedman afirma que, consoante a sua tese de que é preciso separar o mais possível o poder econômico do poder político, que “quanto maior o âmbito de atividades cobertas pelo mercado, menor o número de questões para as quais serão requeridas decisões explicitamente políticas”.

Enquanto árbitro, o governo precisa garantir as regras, pois a “organização de atividade econômica através da troca voluntária presume que se tenha providenciado, por meio do governo, a necessidade de manter a lei e a ordem para evitar a coerção de um indivíduo por outro; a execução de contratos voluntariamente estabelecidos; a definição do significado de direitos de propriedade, a sua interpretação e a sua execução; o fornecimento de uma estrutura monetária”.

Friedman gasta alguns parágrafos do seu texto para analisar o problema dos monopólios e a sua relação com o governo.Embora reconheça que, “na prática, o monopólio freqüentemente, se não geralmente, origina-se de apoio do governo ou de acordos conspiratórios”, ele reconhece que em algumas situações ocorre o chamado “monopólio técnico”, cabendo três alternativas de ação: monopólio privado, monopólio público ou regulação pública. Ele não tem uma resposta pronta, uma regra geral, para os casos de monopólio natural. Cada situação deveria ser examinada para se ver o posicionamento adequado do governo.

A fato é que no Brasil sabemos em que dá o monopólio público, natural ou não. É sempre uma fábrica de favorecimentos e de esbulho dos consumidores indefesos, como vemos hoje no caso dos derivados de petróleo e da energia elétrica. Penso que o melhor mesmo é que a iniciativa privada realize a produção econômica em qualquer situação, cabendo ao governo fazer a regulação, para que não se permita que o abuso estatal seja substituído pelo abuso privado. Em qualquer caso, penso que o governo jamais deverá ser um produtor direto de bens e serviços.

Esses são os pontos mais relevantes do capítulo. Fridman fecha o texto insistindo que “o liberal consistente jamais é um anarquista”. Tenho de concordar com ele. O Estado pode ser um legítimo defensor da Ordem, uma necessidade para a humanidade. O anarquismo não é alternativa. Uma estrutura de poder democrático é a maneira mais inteligente de se controlar as tentações totalitárias sempre implícitas por parte dos agentes do Estado. Para tanto, é preciso impor como regra fundamental a separação completa entre o poder econômico e o poder político.

Sempre que me debruço sempre esse assunto – a relação entre política e economia – releio com proveito o artigo de Olavo de Carvalho, datado de 16/09/1999, intitulado “Dinheiro e Poder”, publicado no Jornal da Tarde. Friedman concordaria com ele. Segundo o filósofo, tornar um homem rico ou “mais rico” não torna os demais mais pobres. Com o poder a coisa é diferente. O “mais poder” se faz sempre em um jogo de soma zero, de modo que alguém só se torna mais poderoso se os demais forem submetidos.

O Estado é necessário, sim, porém a vigilância sobre ele deve ser cerrada, sem tréguas, permanente. Senão, o monstro cresce e escraviza a todos nós.

O autor é economista e mestre em Administração de Empresas pela FGV – SP

O sinhozinho, a escrava e a princesa

Olavo de Carvalho


O Globo, 20 de julho de 2002

Quê pode haver de mais banal e intranscendente que o bate-boca entre uma policial de trânsito e um cidadão que estacionou o carro em local proibido? É coisa que se repete diariamente milhares de vezes, em todas as capitais do mundo. Quando, portanto, essa ocorrência miudíssima sobe das profundezas abissais da insignificância para as manchetes de jornais, há nisto uma segunda ocorrência que, esta sim, é digna de espanto.

Estacionar em local proibido não é crime, é infração civil — no caso, atenuada pelo fato de que o local era uma rua sem saída e sem tráfego, onde a contravenção não poderia trazer dano a ninguém. O infrator alega que ao protestar contra a multa foi insultado e humilhado pela autoridade policial, a qual assim teria incorrido em crime previsto no art. 140 do Código Penal. Que ao ofendido coubesse em tais circunstâncias o recurso de dar voz de prisão à policial é coisa que nem se discute, de vez que é direito assegurado por lei a qualquer cidadão. Mas isso, é claro, não o eximiria de pagar a devida multa de trânsito.

Não há no caso, portanto, nenhuma dificuldade de ordem jurídica ou lógica. Foram duas infrações, uma civil, outra penal. Se provadas em juízo, cada um paga pela sua, e está liquidada a questão.

Se tão miserável picuinha se tornou objeto de celeuma nacional, foi exclusivamente em razão do especial tratamento jornalístico que a mídia deu ao acontecimento. Em vez de abordá-lo segundo a sua natureza jurídica mais evidente, nossos jornalistas preferiram ver nele uma hipotética tipicidade sociológica, condensada no estereótipo que já virou até título de livro: “Você sabe com quem está falando?”. O desembargador, então, apareceu como a encarnação da autoridade prepotente que, prevalecendo-se do geral temor servil aos importantes e poderosos, se coloca acima das leis e oprime cidadãos indefesos. Para dar maior credibilidade a esse enfoque, havia o providencial physique du rôle: a policial era mulher, negra, jovem e bonita, o desembargador era branco, rico, velho e gordo. Embora não se conceba que insultado por um policial branco o desembargador reagisse de forma diversa, o detalhe racial e estético foi explorado visualmente para obter a persuasão imediata de pessoas que pensam por imagens de impacto imediato, como as vacas e os gansos, em vez de raciocinar como gente. Mas, em princípio, não é impossível que um acontecimento particular coincida em gênero, número e grau com um estereótipo sociológico ou literário. A única maneira de saber se o caso se enquadra ou não no modelo escolhido é analisar a mentalidade dos personagens, para ver se suas reações, no episódio, foram mesmo estereotípicas ou tiveram um sentido bem diferente. Nesta última hipótese, a aplicação do estereótipo seria artificiosa e injusta. Curiosamente, a mídia, embora admitindo que o desembargador era conhecido como homem afável, justo, correto e de bons sentimentos — um tipo completamente diverso do coronelão da célebre crônica de Roberto Da Matta –, decretou que o homem deveria constar da notícia, a ferro e fogo, como a cópía viva, a imagem cuspida e escarrada do “Você sabe com quem está falando?”. Em lógica, isso se chama “analogia imprópria”: a falsa redução do caso particular a uma regra geral por meio de comparação forçada. Mas, para a elevada moralidade da nossa classe jornalística, isso pouco importa. Por um decreto dos tzares das redações, o atípico tornou-se estereotípico. Acrescente-se à ordem imperial o aplauso imediato do trêfego prefeito César Maia, ansioso por bajular o eleitorado negro que ele decerto imagina ter o QI de vacas e gansos — e pronto: está no ar mais um capítulo da comédia nacional, com o desembargador no papel do malvado sinhozinho, a policial Rosemeire no de escrava Isaura e César Maia no de Princesa Isabel.

Se o desnível de poder entre um desembargador e uma policial de trânsito é irrisório em comparação com o que existe entre a grande mídia e o desembargador, dane-se: as máscaras respectivas já estão a priori distribuídas no elenco, e de quê vale o senso das proporções, de quê vale a realidade mesma ante as exigências mais altas da justiça poética?

Que o factóide possa ter efeitos reais, que a vida de um homem bom possa ter sido destruída pelo prejulgamento baseado numa má figura de linguagem, quem liga para isso? Na mente dos nossos jornalistas, que molda o Brasil de amanhã, a justiça ou injustiça das condutas individuais é irrelevante, se cotejada com o peso maior das catalogações sociológicas envolvidas. Há classes culpadas e classes vítimas, com suas respectivas fisionomias raciais. Se você pertence às primeiras, não precisa cometer pessoalmente um crime para ser punido: a simples aparência de crime, somada à circunstância abominável de ser um membro da elite exploradora, já faz de você um candidato potencial à execração pública. Para passar da potência ao ato, basta uma analogia imprópria. E a mídia solícita está sempre pronta a fornecê-la, ciente de que seu dever número um é estimular, ao menor pretexto, o ódio racial e o ódio de classe.

Quem depois disso negar que o íncubo ideológico do comunismo domina o espírito das redações ficará reduzido ao estado de avestruz, não muito superior em discernimento ao das vacas e gansos.

***

Falando nisso: enquanto nossa mídia se esforça para fomentar a revolta antecipada contra um possível ataque norte-americano à central mundial do terrorismo, a inofensiva Taiwan já está sob a mira de 600 mísseis, cercada por navios de guerra chineses — e nem uma linha a respeito surge nos jornais ou nos noticiários de TV.

Manipulando as Forças Armadas

Olavo de Carvalho

Época, 20 de julho de 2002

O corte das verbas militares é, com toda a obviedade, mais uma etapa da pertinaz campanha de destruição das nossas Forças Armadas. Resta saber quem dirige essa campanha e com que fins.

Muitos recusam-se a fazer essa investigação, alegando que não há nada a investigar. Já sabem de onde vem a coisa: vem “dos americanos”. Baseados nessa certeza, agentes da esquerda ocupam espaço na ESG e nas academias militares, cortejam a oficialidade, exploram seus sentimentos patrióticos e buscam integrá-la na grande estratégia anti-americana da revolução continental.

Mas o diagnóstico que vendem ao público militar omite alguns detalhes essenciais:

1) O governo FHC que estaria assim hipoteticamente a serviço do imperialismo norte-americano promove a glorificação dos guerrilheiros comunistas da década de 70, muitos dos quais, ainda vivos, são eles mesmos os atuais propugnadores da aliança “anti-imperialista” com os militares.

2) O mesmo governo que reduziu à míngua as Forças Armadas alimenta o MST com verbas substanciosas sem as quais ele jamais teria se tornado a temível força revolucionária que hoje é.

3) A grande mídia nacional que a esquerda acusa de servir ao imperialismo é o principal instrumento da propaganda esquerdista no país, falseando as notícias sobre o Oriente Médio, encobrindo os crimes de Cuba e da China com um véu de silêncio protetor, usando uma linguagem na qual “conservador” é sinônimo de malvado, bombardeando as Forças Armadas com denúncias escandalosamente falsas de atrocidades anticomunistas e dando força a conluios de jornalistas e promotores para usurpar o papel das seções de inteligência das Forças Armadas de modo a torná-las inofensivas contra a violência revolucionária da aliança MST-Farc.

4) Nas relações com os militares, a esquerda segue uma divisão de tarefas demasiado evidente para não denotar manipulação premeditada: seus ataques às Forças Armadas vêm sempre através de seus agentes na mídia e nas entidades “de direitos humanos”, nunca das lideranças políticas, poupadas para fazer no jogo pavloviano da estimulação contraditória o papel do queijo, não o do choque. O sr. Miguel Arraes, por exemplo, merece o Troféu Camembert do ano.

5) As pressões imperialistas mencionadas acima vieram substancialmente durante a gestão do sr. Clinton, o mesmo que, eleito com a ajuda financeira da China, debilitou as Forças Armadas dos EUA, desmantelou a CIA e o FBI, transferiu o controle de zonas estratégicas para uma estatal chinesa, bloqueou as investigações sobre espionagem no laboratório nuclear de Los Alamos e abarrotou de equipamentos militares e de informação privilegiada o maior agressor potencial do seu país (v. Bill Gertz, “The China Threat”, Washington, 2002).

6) As ONGs acusadas de meter o dedo imperialista no território amazônico não são em geral americanas, mas européias. Servem à CEE, a mesma entidade que dá dinheiro para o sr. Yasser Arafat comprar armas e, de parceria com a ONU, promove a criação de um Tribunal Penal Internacional feito sob medida para criminalizar os EUA e Israel. E quem aplaude as ambições separatistas indígenas que põem em risco a integridade nacional não é o “imperialismo ianque”: é a mídia esquerdista européia.

7) A esquerda é hoje o único movimento político e cultural organizado globalmente, capaz de operações de desinformação em escala mundial.

Da exposição dos fatos, duas perguntas decorrem:

1) Se a máquina estatal americana pode ser manipulada pela desinformação esquerdista, acabando por colaborar servilmente com seu inimigo chinês, por que não poderia, pelos mesmos meios, ser induzida a adotar no Brasil e na AL em geral uma política que fomenta o anti-americanismo entre os militares da região?

2) Se o governo americano não é imune a cair na armadilha de servir a seus inimigos, por que o seriam os nossos militares?

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