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O Brasil tem filósofo

Entrevista de Olavo de Carvalho a Gramática On-line

1 de maio de 2001

Um dos mais conhecidos (e polêmicos) pensadores da atualidade, Olavo de Carvalho conversa com o Gramática On-line a respeito de filosofia, cultura e, é claro, língua portuguesa

Por Júlio Tanga

“Olá, amigo. O Olavo de Carvalho está respondendo aos sucessivos ataques por parte de alguns órgãos de imprensa, fato que o impossibilita de responder-lhe agora. Você receberá resposta o mais rápido possível.” É certo que esse e-mail, enviado atenciosamente ao Gramática On-line como justificativa da eventual demora com que se daria a entrevista, atesta a vida nada consensual do filósofo e jornalista tido por muitos como dos maiores pensadores da atualidade. O nome Olavo de Carvalho é, para alguns, sinônimo de polêmica, talvez porque, diferentemente dos que se sentem apontados em seu livro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras, ele se destaque por defender a liberdade da consciência individual contra a tirania da autoridade coletiva. Diferenças ideológicas deixadas de lado, é indiscutível (e interessa-nos mais nesta entrevista) a qualidade da expressão e do conteúdo das idéias desse pensador que mais brasileiros deveriam conhecer.

Olavo Luiz Pimentel de Carvalho, 54, nasceu em Campinas, interior de São Paulo. Estudou Filosofia no Conjunto de Pesquisa Filosófica da PUC do Rio de Janeiro por três anos, sob a direção do Padre Stanislavs Ladusãns. Apesar de não ter podido terminar o curso – fechado após a morte de Ladusãns -, Olavo de Carvalho não quis dar prosseguimento aos seus estudos em outra instituição de ensino superior. “Os outros cursos de Filosofia que eu conhecia neste país não me interessavam, pois eram demasiado ruins”, diz o estudioso, que não se considera um autodidata, por ter desfrutado a orientação de muitos mestres, principalmente no campo das religiões comparadas.

Pai de oito filhos e já por quatro vezes avô, o filósofo dedica-se, entre outras atividades, aos seus livros (está sendo publicado o décimo quinto de sua autoria) e artigos veiculados em grandes periódicos brasileiros. Merecem atenção especial do pensador os Seminários de Filosofia que conduz em São Paulo. O curso, que atrai estudantes e profissionais de diversas áreas, é reconhecido como um dos mais sérios e consistentes dos que se conhecem. Encontram-se excertos das apostilas do curso – além de inúmeros textos publicados por e sobre Olavo de Carvalho em vários jornais e revistas – no site www.olavodecarvalho.org, mantido e atualizado desde maio de 98 pelo próprio professor. A página, visitada por cerca de 600 internautas diariamente, já recebeu o título de Site do Mês (OpenLink / abril de 99) e mostra, por si só, por que seu criador gera tanta polêmica no meio intelectualóide e por que a qualidade de seu texto chama tanto à atenção. Sem dúvida alguma, é um dos poucos sites da rede mundial de computadores que induzem a uma reflexão realmente crítica. Uma infinidade de temas é abordada com linguagem simples, bem-humorada, apimentada e abrasileirada, encarrapitada em uma qualidade gramatical de causar inveja a muitos jornalistas e profissionais das letras. A maioria dos textos está disposta integralmente no site, que é gratuito.

Entrevistado pelo Gramática On-line, Olavo de Carvalho falou sobre suas preferências de leitura, sobre filosofia e, principalmente, sobre a Língua Portuguesa e seu estudo.

 Gramática On-line – Comecemos falando um pouco sobre a sua área. Na sua opinião, que é a Filosofia? Há diferenças entre concepções antigas e modernas de Filosofia?

  — A Filosofia, segundo a entendo, é a unidade do saber realizada na unidade da consciência e vice-versa. Creio que essa definição absorve e domina praticamente todas as definições antigas e modernas. Aliás, foi obtida da comparação delas.

  Gramática On-line – Muitas pessoas têm dúvida quanto à atuação profissional do filósofo. Além de lecionar, que atividades pode exercer o formado em Filosofia?

  — A Filosofia, em si, não é uma atividade profissional (e espero que não se torne isso nunca), mas um tipo de know-howque está subentendido, ou deveria estar, em inumeráveis profissões, especialmente o ensino, a pesquisa científica em todas as áreas, as artes, a política, a medicina.

  Gramática On-line – Atualmente, as faculdades em geral formam realmente filósofos? Ou são só professores de Filosofia?

  — Ninguém pode dar o que não tem nem ensinar o que não sabe. Não há um só filósofo no nosso meio acadêmico, e a prova é que esse meio rejeita, por medo e preconceito, todo filósofo autêntico que apareça dentro ou fora dele. Dizer que uma Marilena Chauí, um Leandro Konder sejam filósofos é um ultraje à filosofia. A primeira é uma professora de ginásio, o segundo é um propagandista barato. Mas é só esse tipo de gente que a universidade aceita. Já o Villém Flusser, um gênio espantoso, acabou desistindo do Brasil e foi publicar seus livros na Alemanha, onde imediatamente foi reconhecido como um dos pensadores mais originais das últimas décadas. No Brasil aqueles entojadinhos da USP faziam pouco dele, empinavam o nariz diante dos seus escritos porque eram publicados em jornal – como se Gabriel Marcel ou Ortega y Gasset também não tivessem sido eminentemente jornalistas. Mário Ferreira dos Santos e Vicente Ferreira da Silva também foram postos para escanteio, e até Miguel Reale, reitor da USP, era discriminado dentro da sua própria universidade. Agora, com quarenta anos de atraso, a USP decidiu absorver o prof. Reale, concedendo ao mestre um lugarzinho modesto ao lado de quinze micos na coletânea Conversas com Filósofos Brasileiros, na qual ele é obviamente o único filósofo presente. Ora, esses quatro nomes – Flusser, Reale e os dois Ferreiras – perfazem o essencial da filosofia brasileira deste século – o que vale dizer que a filosofia esteve rigorosamente fora da universidade, por obra de medíocres e invejosos que se empoleiraram como urubus nas chefias de departamentos. O que a universidade brasileira tem feito contra a filosofia é simplesmente criminoso.

  Gramática On-line – Nota- se que há muitas faculdades de Filosofia (e Letras) espalhadas pelo país. Essa proliferação de faculdades é boa ou ruim para o ensino qualitativo da Filosofia?

  — É péssima. Quanto mais gente falando do que não entende, mais confusão, mais empulhação, mais verbalismo oco vai circular pelo país. A filosofia universitária no Brasil só vai começar quando o MEC ou instituição similar fizer uma edição padrão dos escritos daqueles quatro grandes pensadores e a distribuir como leitura obrigatória em todas as faculdades. Não pode haver ensino da filosofia senão com base numa filosofia vivente.

  Gramática On-line – Pode- se dizer que hoje em dia há grandes pensadores, como Sócrates, Platão, Santo Agostinho, etc.?

  — Eric Voegelin e Xavier Zubiri superam todos os demais pensadores da segunda metade do século XX.

  Gramática On-line – Quais são seus autores favoritos (da filosofia e de outras áreas)?

  — Em filosofia, Aristóteles, Leibniz, Sto. Tomás, Schelling, Husserl, Voegelin, Zubiri, Lonergan, Éric Weil, Louis Lavelle. Na literatura, Dante e Shakespeare, Dostoievski e Stendhal, Camões e Camilo, Manzoni e Scott, Pío Baroja, Thomas Mann e Jacob Wassermann, Antonio Machado, Apollinaire, T. S. Eliot e William Butler Yeats. Mas gosto também muito de ler historiadores – meus prediletos são Taine, Huizinga e Oliveira Martins – e obras de psicologia, principalmente as de Viktor Frankl, Lipot Szondi e Maurice Pradines. Nas ciências sociais, Weber e Ludwig von Mises. Em religião, além da Bíblia, do Corão e dos Upanishads, releio sempre a Legenda Dourada de Giacomo di Varezzo, um livro que me parece ter certos dons miraculosos. Sou aficionado de temas islâmicos e retorno sempre aos livros de Ibn Arabi, René Guénon, Henry Corbin, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr. Adoro as polêmicas de Chesterton, de Bernanos, de Nelson Rodrigues. Gosto também de livros de memórias e depoimentos, sobretudo de políticos, agentes secretos e criminosos que um dia envelhecem e perdem o medo de contar o que sabem; mas também relatos de vidas extraordinárias: meu preferido desde a infância, relido com encanto crescente de tempos em tempos, é Hunter, de John A. Hunter (uma coincidência de nome e profissão): memórias de um caçador de leões e elefantes, certamente o melhor livro de psicologia animal que alguém escreveu antes de Konrad Lorenz.

  Gramática On-line – Diante de tantos autores, de tanta leitura, que o senhor diz sobre o jovem? Com o desenvolvimento da Sociedade da Informação, o jovem tem pensado menos ou mais? Está mais fácil ou mais difícil pensar?

  — Os computadores e a internet, em si, são um imenso benefício para todas as atividades intelectuais. O problema é que pessoas incapazes de absorver mesmo doses moderadas de informação se vêem de repente submetidas a um bombardeio informático. No mínimo, isso infunde nelas a ilusão de que estão por dentro de todos os assuntos. Na verdade, para tirar proveito da internet o sujeito precisa ter as habilidades conjuntas de um pesquisador acadêmico, de um jornalista e de um oficial de informações. O número de pessoas que tira real proveito da internet é ínfimo. Que fazer pelas outras? Bem, da minha parte já faço o que está ao meu alcance: procuro desenvolver nos meus alunos aquelas habilidades conjuntas. Mas não creio que os demais educadores estejam conscientes dessa necessidade, porque eles próprios não têm em geral esse tipo de formação.

  Gramática On-line – Além de ler, qual é o seu hobby? Uma atividade que lhe proporcione prazer…

  Não tenho nenhum hobby em especial. Tudo o que faço me proporciona imenso prazer, sobretudo estudar, escrever, dar aulas, conviver com a minha família maravilhosa e com os meus amigos, comer, amar, rezar, dormir. Se tivesse tempo livre, iria caçar e andar a cavalo, coisas que fiz muito na infância. Música, ouço de vez em quando, mas sempre as mesmas, principalmente Mozart e Wagner. Filmes, já vi todos os que queria ver.

  Gramática On-line – Falemos um pouco sobre a Gramática. Quais são os primeiros registros dos estudos lógicos e gramaticais?

  — Os primeiros estudos gramaticais no Ocidente resultaram da tentativa de aplicar à linguagem, considerada materialmente, os conceitos da lógica de Aristóteles. Mas a aplicação foi muito rasa e um logicismo extemporâneo deixou cicatrizes em toda a gramática ocidental. Quem estudou isso a fundo e procurou corrigir essas distorções foi Eugen Rosenstock-Huessy, cujo livro A Origem da Linguagem deve sair em breve pela Biblioteca de Filosofia que dirijo na Editora Record.

  Gramática On-line – Ao seu ver, qual é a melhor maneira de desenvolver no cidadão a habilidade de escrita e leitura?

  — Expliquei algo disso no meu artigo “Aprendendo a escrever” (O Globo, 3 fev. 2001). Primeiro o sujeito tem de adquirir, pela leitura de obras de história, de cronologia e de bibliografia, um senso da unidade do campo das letras. Um bom começo é a História da Literatura Ocidental de Otto Maria Carpeaux, ou a série Great Books da Encyclopaedia Britannica. Mas em seguida, ou ao mesmo tempo, tem de ler os clássicos e tentar imitá- los, formando um repertório de meios de expressão. Terceiro, tem de manter esse repertório em contínuo acréscimo e desenvolvimento, pela prática da escrita.

  Gramática On-line – Entre as características de Olavo de Carvalho, uma que merece destaque é a habilidade lingüística. O seu texto mostra-se, ao mesmo tempo, fiel às normas do ensino prescritivo do idioma (a chamada norma culta da língua) e acessível a um grande número de leitores. Leitura qualitativa e quantitativa basta para que se alcance essa habilidade? O domínio das estruturas fonética, morfológica e sintática é realmente necessário?

  — Há dois tipos de pessoas: as que aprendem por indução e as que primeiro precisam conhecer a regra geral para depois reconhecê-la na prática. O aprendizado da gramática é necessário a ambas, mas em momentos diferentes. As do primeiro tipo (e eu mesmo estou entre elas) devem acumular uma grande experiência de leitura antes de ter a primeira lição de gramática, porque já terão aquela experiência que lhes permitirá reconhecer do que a gramática está falando. Mas há pessoas que precisam estudar gramática primeiro. O educador é que tem de ter o tirocínio para perceber o que é melhor para o seu aluno.

  Gramática On-line – Como o jornalista Olavo de Carvalho vê a situação dos textos impressos dos meios de comunicação. Os cursos de Jornalismo estão levando a sério a abordagem (ou estudo) da linguagem? Qual é a solução?

  — A linguagem da mídia é um compactado de cacoetes funcionais. O sujeito que aprende a escrever com base nela vai tender inevitavelmente a compactá-la ainda mais. Só os grandes escritores têm o gênio, o espírito do idioma. É preciso aprender a escrever com Camilo e Machado, e só depois simplificar o idioma para adaptá-lo às necessidades da mídia. Para fazer comida desidratada é preciso partir da comida autêntica: se o sujeito desidrata o que já vem desidratado, acaba comendo areia.

 Gramática On-line – O senhor estudou profundamente a Gramática ou, como explicam alguns jornalistas, apela na maioria das vezes à intuição para escrever adequadamente?

  — Não sei quem foi que disse que cultura é aquilo que sobra quando a gente esquece o que aprendeu. Fiz muitos exercícios de gramática, seguindo especialmente a velha Gramática Metódica de Napoleão Mendes de Almeida, e procurei incorporar o aprendizado de tal modo que a regra aprendida funcionasse automaticamente. Hoje, que escrevo com correção, esqueci metade da nomenclatura gramatical e ela não me faz falta nenhuma. A gramática é um estudo reflexivo que pressupõe de certo modo o conhecimento prático do idioma e não pode substituí- lo. Mas, como eu já disse, as mentes muito dedutivas e analíticas precisam já de um pouco de gramática no começo do aprendizado.

  Gramática On-line – Tem-se falado muito sobre a influência da língua na sociedade e vice-versa. A difusão intolerante da Gramática tradicional dá origem, segundo alguns sociolingüistas, ao preconceito lingüístico, sentimento por meio do qual se mantém o desrespeito às variantes lingüísticas divergentes da norma culta, da variante de prestígio. O senhor acha que o ensino rigoroso da Gramática, como era antigamente, pode contribuir para a manutenção desse preconceito? A norma culta é, como dizem, mais uma das imposições de uma minoria que visa a manter as classes sociais distantes umas das outras?

  — Esses sociólogos são simplesmente charlatães que querem tirar proveito político de uma observação falseada da realidade. Não estamos na Inglaterra, onde o falar correto ou incorreto basta para identificar imediatamente a classe social a que o sujeito pertence. Aqui, as classes altas falam e escrevem tão errado quanto o povão, e só quem se interessa pela norma culta são escritores e gramáticos pobretões e marginalizados. Por outro lado, exigir que o aluno, em vez de aprender a norma culta geral, se apegue eternamente aos modos de falar do seu bairro ou da sua classe social, isto sim é discriminá-lo, barrando-lhe o acesso a uma norma que existe justamente para ser o terreno comum da comunicação democrática. Os inimigos da norma são obscurantistas que querem prender cada pessoa no gueto lingüístico e social da sua infância, bloquear a comunicação social e inviabilizar a democracia. Os que inventaram essa ideologia sabem perfeitamente que o propósito dela é criminoso. Os que a repetem como papagaios do alto de suas cátedras são apenas tolos desprezíveis.

  Gramática On-line – Na sua opinião, é mais eficaz combater o preconceito lingüístico ou difundir de maneira mais figurativa os conhecimentos do idioma?

  — O único preconceito lingüístico que existe no Brasil é contra a linguagem correta. Ninguém é criticado neste país porque fala errado, mas, se usa uma única palavra que a platéia desconheça, é rotulado imediatamente de pedante, e assim todos contribuem para o empobrecimento do idioma. Há na sociedade brasileira uma espécie de populismo atávico, regressivo, mórbido e masoquista. Temos de acabar com ele, e qualquer ensino da gramática é útil para esse fim.

  Gramática On-line – Certa vez, quando o Gramática On-linejulgou que houvesse uma falha de digitação no seu site (a palavra muçulmano foi escrita com dois ss), o senhor disse que escreveu intencionalmente a forma que transgride a registrada. Referiu-se, ainda, a um sistema fonético independente, de sua autoria. O senhor poderia explicar em que consistem essas ações dissidentes?

  — Foi apenas um truque que inventei para facilitar o aprendizado do árabe clássico. O sistema internacional de transliteração é complicado e incoerente. Em árabe a escrita pode ser abreviada mediante a omissão das vogais, como numa taquigrafia. Na transliteração internacional você nunca sabe se as letras são vogais ou consoantes. Inventei então uma transliteração na qual as consoantes eram grafadas em maiúsculas e as vogais em minúsculas. Só que para isso era preciso que cada letra árabe correspondesse a uma e uma só letra portuguesa. Naturalmente, isso acabava por afetar os próprios termos árabes aportuguesados, como por exemplo “mussulmano”, que é uma adaptação de musslim. Na minha transliteração, musslim se escreve MuSSLiM, indicando que, na escrita corrente – por exemplo, num jornal árabe -, se escreveria apenas MSSLM. A utilidade disso é extraordinária para o aluno estrangeiro, porque, para o árabe, a consoante, conforme o contexto, já sugere imediatamente a vogal que a acompanha, e para nós não, o que é um problema, já que as declinações (nominativo, genitivo e acusativo) são indicadas precisamente pelas vogais. Há um belo livro de introdução ao árabe, Arabic Made Easy, de Abdul Hashim, que estou adaptando para o português com a minha transliteração. Mas ainda vai demorar para ficar pronto, porque tenho pouco tempo para trabalhar nisso.

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A vaca louca da história nacional

Olavo de Carvalho


O Globo, 28 de abril de 2001

A mente humana não tem nenhum meio de testar uma hipótese senão concedendo iguais chances de credibilidade à hipótese contrária. Mas às vezes isso não fica bem, e em tais circunstâncias os esgares de indignação no rosto do advogado da primeira hipótese devem ser aceitos como cabal demonstração científica da falsidade da segunda. Ora, ninguém sabe mostrar-se indignado com a veemência, com o pathos de um militante de esquerda, apologista dos crimes de tortura e genocídio cometidos pelo governo de Cuba, quando aponta atrocidades análogas, mas de escala muito menor, praticadas no Brasil. Por isso, denúncias de crimes atribuídos ao regime militar não devem ser averiguadas. Têm de ser aceitas prima facie , alardeadas por todos os meios de comunicação, estampadas nos livros escolares, fixadas em letras eternas na memória nacional antes que algum aventureiro ouse amortecer o fervor da certeza por meio de um gélido ponto de interrogação.

Na verdade, não é só que essas denúncias não devam ser averiguadas. Elas nem mesmo podem sê-lo, na prática, pois, com exceção dos arquivos militares, os depósitos de documentos daquele período estão, em geral, entregues à guarda de militantes de esquerda. Dominando as fontes de informação, a esquerda tem ainda o monopólio dos meios de investigação, instalada como está na chefia dos departamentos de História de todas as universidades públicas, assim como na dos órgãos distribuidores de verbas de pesquisas, às quais se acrescentam os generosos subsídios de empresas e fundações estrangeiras, empenhadas em impor aos países do Terceiro Mundo uma ideologia politicamente correta que inclui, como um de seus itens essenciais, a desmoralização sistemática das Forças Armadas.

Acrescentem a isso o predomínio esquerdista nos meios de comunicação e a completa devoção do MEC a seu papel de preparador ideológico das crianças brasileiras para a luta de classes, e terão uma idéia de quanto a imagem do passado histórico forjada no molde da propaganda ideológica se tornou mais difícil de contestar do que um decreto de César na Roma imperial.

Tão vasto poder de controle sobre a visão do passado é fenômeno inédito nas democracias. Somente os regimes totalitários lograram conquistar tão sólida autoridade monopolística sobre a fabricação do relato histórico, fazendo dele um dos pilares de sua dominação ideológica sobre a vida presente.

Mas, por uma atroz coincidência, foi justamente um grande historiador, Lorde Acton, quem disse que o poder absoluto corrompe absolutamente. Os donos do passado, afeitos às delícias do monólogo incontestado, acabam relaxando as precauções mais elementares e caindo na sua própria armadilha: acabam acreditando tão piamente em si mesmos que já não verificam nem as contradições mais gritantes das histórias que alardeiam.

Um caso recente ilustrará isso da maneira mais escandalosa. João Antônio dos Santos Abi-Eçab e sua esposa Catarina Helena, terroristas oficialmente dados como mortos numa colisão entre o Volks em que viajavam e a traseira de um caminhão perto de Vassouras, RJ, teriam, na verdade, sido presos no bairro do Maracanã e mortos a tiros, sepultados em S. João de Meriti e mais tarde desenterrados, vestidos e colocados no automóvel, por gente do Exército, para simular o acidente rodoviário em 8 de novembro de 1968.

A denúncia é do “Jornal Nacional”. Baseia-se no depoimento do ex-soldado Waldemar Martins de Oliveira, que, segundo declarou ao repórter Caco Barcelos, na época atuava no serviço de informações do Exército na área de Marília, SP, e teria presenciado a execução. Contra essa acusação, divulgada em tom de certeza inabalável, restam os seguintes fatos:

Quanto à testemunha:

1. Waldemar diz que desertou do Exército em 1970, cansado de participar de malvadezas governamentais. Ele mente. A folha de alterações do recruta Waldemar no 27 . Batalhão de Infantaria Pára-quedista, da qual obtive cópia com os oficiais que mantêm o “site” http://www.ternuma.com.br, mostra que ele desapareceu do quartel no começo de setembro de 1968, sendo dado como desertor a partir do dia 11 desse mês e não podendo, portanto, estar a serviço do Exército dois meses depois.

2. Waldemar sentou praça em janeiro de 1968. Ele pretende ter realizado inúmeras “operações secretas” entre esse dia e a morte do casal. Mas qual Exército do mundo designaria para operações de inteligência um recruta que nem terminou o período regulamentar de um ano de treinamento? Simplesmente não havia recrutas, mesmo treinados, na área de Operação de Informações do Exército, que só empregava oficiais e graduados com Curso de Especialização. Para piorar ainda mais as coisas, Waldemar, lotado no então I Exército, não poderia atuar em Marília, SP, que era área do II Exército.

Quanto às vítimas:

1. Abi-Eçab e sua esposa não poderiam ter morrido em 8 de novembro, pois no dia 13 do mesmo mês participaram do assalto ao carro pagador do Ipeg (Instituto de Previdência do Estado da Guanabara), segundo depoimento do líder comunista Jacob Gorender na quinta edição, revista e corrigida, de seu livro de memórias “Combate nas Trevas” (São Paulo, Ática, p. 109), confirmado por Luís Mir em “A Revolução impossível. A esquerda e a luta armada no Brasil” (São Paulo, Best-Seller, 1994, p. 337).

2. Mesmo na hipótese de que tivessem morrido no próprio dia 13, seria impossível prendê-los, matá-los, sepultá-los em S. João de Meriti, desenterrá-los, limpá-los, vesti-los e levá-los para Vassouras para simular o acidente, tudo no mesmo dia.

3. Nas fotos exibidas pelo “Jornal Nacional” havia na estrada nítidas marcas de frenagem do Volks até a um metro de distância do caminhão. Um dos dois falecidos teria ressuscitado para frear o carro? Ou este foi freado por algum poderoso recruta Waldemar que, sentado sobre o cadáver, ainda teve tempo de sair voando pela janela um metro antes de que o veículo se espatifasse de encontro à rabeira do caminhão?

Há muitos outros absurdos no depoimento de Waldemar, que não tenho espaço para expor aqui. Mas um desertor que mente sobre a data de sua deserção, mortos que praticam um assalto cinco dias depois de falecidos, um cadáver que acorda e freia um carro que vai bater já não são loucura bastante? A coisa toda é tão imensuravelmente estúpida que, dez anos atrás, ninguém lhe prestaria atenção, exceto psiquiátrica.

Mas, no ambiente de carnavalesco triunfalismo Anti-Anos-de-Chumbo, até um repórter geralmente criterioso como Caco Barcelos se embriaga de loucura denuncista e, no meio das requintadas averiguações médico-legais que não deixou de fazer — o que muito o honra como profissional –, se esquece da primeira lição que os repórteres tarimbados ensinam aos novatos: conferir nomes e datas. O vírus da infalibilidade dos donos da memória nacional tornou-se a vaca louca do jornalismo brasileiro: contaminados, mesmo os mais fortes dentre nós endoidam.

Despertando da hipnose

Olavo de Carvalho

Época, 28 de abril de 2001

Pela primeira vez um homem de esquerda percebe que no Brasil não existe direita

Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades não tem a menor idéia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam mesmo é da novidade-padrão, indefinidamente requentável com pequenas variações. O motivo é simples: ela é fácil de escrever e de efeito garantido. Denúncias de corrupção, fofocas do beautiful people, taxas de desemprego, brigas de políticos infundem no redator aquela segurança do mágico que vai brilhar com o mesmo truque, pela milésima vez, ante uma platéia que já o esqueceu 999 vezes. Quando você tem pressa e o trabalho é muito – duas condições que jamais falham nas redações –, a melhor notícia é aquela que já vem escrita.

A novidade autêntica, inédita, sem nome no catálogo, é um problema, um abacaxi: o sujeito não sabe nem por onde começar. Faltam-lhe os esquemas verbais, os lugares-comuns, os argumentos de apelo automático sem os quais mesmo o redator mais talentoso fica desamparado como uma tartaruga sem casca. O inédito, o esquisito, o incatalogável requer meios de expressão também inéditos. Exige algo mais que técnica jornalística: exige uma inventividade literária que raramente consente em dar o ar de sua graça no alvoroço do “fechamento”. Por falta de meios de expressão, às vezes aquilo que é mais interessante, mais urgente, mais útil vai para a lata de lixo, inapelavelmente condenado pela fatalidade da regra wittgensteiniana: “O que não se pode falar, deve-se calar”. E, quando casos desse tipo se acumulam, a imprensa deixa de cumprir seu papel de abrir para o leitor as janelas do mundo. Torna-se um repressivo “guardião do portal”, incumbido de lacrar os horizontes e manter a imaginação popular presa do repetitivo e do convencional.

Por isso mesmo é uma alegria ler o que li na coluna de Zuenir Ventura da semana passada. Pela primeira vez um jornalista reconhecidamente “de esquerda” dá uma espiada no mundo e, ao voltar, repara que desembarcou num país anormal – num país onde não existe direita. Normalmente, seria preciso ser direitista para notar isso, mas no Brasil nem os direitistas são direitistas o bastante para chegar a tamanho atrevimento de percepção. Em geral admitem o uso consagrado que faz do direitismo uma modalidade de crime hediondo e dizem que são “de centro”, sentindo-se mais ou menos como as prostitutas quando dizem que são massagistas.

Mas a criminalização da direita não se produziu sozinha. Ela é o resultado de meio século de “revolução cultural” – a ocupação esquerdista de todos os espaços, que inclui, como área privilegiada, o espaço verbal. E isso vai muito além do domínio sobre a linguagem dos jornais e das escolas. Os mestres soviéticos de desinformação recomendavam especial empenho na redação de dicionários. A partir dos anos 50, os principais dicionários em circulação no Brasil são verdadeiros receituários de semântica esquerdista, a qual assim se integra no uso corrente como se fosse a coisa mais normal e apolítica do mundo, rejeitando para o limbo do indizível, portanto impensável, tudo o que escape da ortodoxia consagrada. Passadas duas gerações, a anormalidade da situação transfigurou-se em normalidade postiça, e aí, mesmo quando o sujeito viaja, não lhe ocorre reparar numa diferença como aquela que Zuenir assinalou: pois o indizível e impensável se torna também imperceptível, mesmo quando nos posa diante dos olhos da cara com a sutileza de um hipopótamo.

É preciso ser muito inteligente e muito sincero para romper o cerco da repetição dessensibilizante e, num relance, perceber algo que está fora da pauta mental admitida. Quando os homens dormem, dizia Heráclito, eles se fecham cada qual em seu mundo; quando acordam, voltam todos ao mesmo mundo. Não fica bem a gente criticar ou elogiar, nas páginas de uma revista, os colegas de redação. Mas Zuenir ajudou o leitor a emergir da hipnose brasileira para voltar ao mundo de todos os homens. Que mais se pode exigir de um jornalista?

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