Yearly archive for 2001

Filósofos e gnósticos

16 de agosto de 2001

Pedro Sette Câmara

“O objetivo de toda polêmica entre católicos e hereges é fazer com que estes vomitem sua heresia, de preferência voltando à Fé Católica, ou ao menos expondo aquilo que ocultavam para se infiltrar e perverter os bons.”

Felipe Coelho

O coelhinho da Montfort resumiu aí toda a sua visão da “polêmica” entre Orlando Fedeli e Olavo de Carvalho. Para ele, os lados já estão definidos: os montfortianos seriam os “católicos” e os “olavianos” os “hereges”. Mais: Olavo de Carvalho (e os olavianos) agem apenas como quem se infiltra no meio de inocentes cordeiros para lhes perverter a alma. O mais curioso aqui é que eu nunca vi Olavo de Carvalho dando aulas em ambientes nominalmente católicos, ou mesmo participando de qualquer atividade da Montfort – o coelhinho, ao contrário, era aluno do Seminário de Filosofia e participante do Fórum Sapientia. Além disto, o coelhinho trocava e-mails com alunos do Seminário, eu inclusive, solicitando materiais ou tentando demonstrar alguma incompatibilidade entre a “doutrina olaviana” e aquilo que ele pensa que é a doutrina católica, na tentativa de fazer com que os alunos abandonassem as perigosas águas da investigação filosófica para se proteger no porto seguro da retórica fedelista.

Retórica, vejam bem. A adesão a algum grupo – seja ela a Associação Montfort, a Igreja Católica, o Partido Comunista ou um time de futebol – aliada à condenação de tudo que pareça um grupo e pareça contrário só pode produzir um discurso retórico, porque suas premissas só são aceitas dentro do contexto daquele grupo e os demais grupos estão sendo condenados justamente por não aceitar as tais premissas. Assim, os católicos condenam os muçulmanos por não serem católicos, e os muçulmanos condenam os católicos por não serem muçulmanos. Não há premissas comuns que permitam uma depuração dialética dos discursos (ou até há, mas não ao nível dos montfortianos) dos grupos opostos, apenas premissas que se excluem mutuamente.

Assim, todo o esforço montfortiano é um só: provar que Olavo de Carvalho e seus alunos não concordam com suas premissas. Como eles consideram que estas premissas são a quintessência da doutrina católica, crêem que os discordantes são não-católicos ou mesmo anticatólicos. Que uma agremiação oriunda da TFP, condenada por vários outros representantes do saco de gatos que compõe a massa dos que se opuseram às mudanças recentes na Igreja Católica, também alienada da própria Igreja “oficial”, considere-se o último bastião da doutrina, pode parecer altamente imprudente, mas não é atípico nem imprevisível.

Na verdade, para eles, o simples fato de não pertencer à associação Montfort já é razão suficiente para suspeitar de alguém. Afinal, neste mundo mau, os homens de verdadeira boa vontade não se negariam a aderir ao grupo dos defensores do bem, da tradição, da família, da propriedade, e do direito de eliminar fisicamente os culpados por este mundo ser tão mau – que é justamente a interpretação que os montfortianos dão à posição contrária à “liberdade de consciência”, pois acreditam que a vida civil deve ser regrada por um Estado forte da mesma maneira que a alma do fiel deveria se submeter à vontade divina. A vida da alma, porém, é diferente da vida civil.

Que eles creiam nisto, vá lá: cada um sabe de si. Mas daí a pretender que é um ponto essencial do catolicismo a defesa de um Estado que imponha a moralidade cristã a todos os cidadãos… É possível entender porque um sujeito que se diz católico pense isto a partir das considerações sobre a Igreja e o império tecidas por Olavo de Carvalho no Jardim das Aflições, mas não é possível aceitar em sã consciência que a adesão à fé católica compreenda necessariamente a adesão à ideologia de um “mundo melhor cristão” – até porque Jesus disse: “meu reino não é deste mundo”. Isto vale tanto para os “teólogos da libertação” que desejam fazer a revolução proletária e chamar isto de reino de Deus quanto para os TFPistas e afins – isto é, a Montfort – que desejam instaurar o reino do moralismo.

Se houver qualquer dúvida de que é isto mesmo que a Montfort defende, basta considerar, em última instância, que Orlando Fedeli defende, segundo Felipe Coelho, a doutrina explícita da TFP, que pode ser encontrada, sem equívoco, no site da mesma. O Auto-retrato filosófico de Plínio Correia de Oliveira assim sintetiza o primeiro dos “principais elementos doutrinários” do clássico TFPista Revolução e Contra-Revolução: “a missão da Igreja como única Mestra, Guia e Fonte de Vida dos povos rumo à civilização perfeita”.

Este item, que deixa de ser um pressuposto de análise teórica e passa a ser uma diretriz de ação no momento em que um grupo minoritário pretende assumir o papel que atribuía à Igreja (seja por considerá-la decadente ou qualquer coisa), mais os subseqüentes, já bastam para enquadrar a doutrina explícita da TFP – e, por conseguinte, da Montfort – em cinco dos seis itens assinalados por Eric Voegelin para descrever a gnose.

Como se isso não bastasse, basta olhar a conduta dos montfortianos, que fizeram de uma visão peculiar – e bastante próxima da gnose segundo Voegelin – da doutrina católica sua “gnose” particular, dando o benefício da dúvida quanto à salvação da alma aos membros de seu grêmio e a condenação certa de quem estiver de fora – Felipe Coelho, auto-nomeado promotor do Juízo Final, já proferiu a minha sentença.

Isto tudo, como dizia, não passa de retórica, como é todo discurso destinado a condenar alguém, e não pode dizer nada quanto à verdade dos fatos, mas apenas quanto à sua adequação aparente a uma interpretação peculiar da doutrina da Igreja, aliás mais fixada na letra da doutrina do que em seu conteúdo. A veracidade da doutrina, como já disse em meu artigo O Coração e o Mundo, só pode ser verificada pela consciência humana individual, e não pelos livros que a contém. Livros não pensam nem inteligem. Palavras só se referem a algo se a consciência “vê” o objeto que elas chamam. Caso contrário, saímos do mundo das coisas para viver no não-mundo das palavras soltas, onde um computador pode habitar perfeitamente. E é realmente tenebroso que entre os defensores da Igreja estejam pessoas tão incapacitadas para defendê-la com algo além da inteligência de um computador e a capacidade de armar intrigas.

Apêndice I

E-mail enviado à Montfort no dia 6 de agosto, não publicado

Srs. Montfortianos,

Agradecendo a publicação integral de meu e-mail – honra jamais antes dispensada a este mortal por qualquer outro veículo – , gostaria no entanto de fazer alguns reparos, que me parecem mais urgentes. Outros devem seguir de acordo com a disponibilidade e a paciência.

1. Não sou “astrólogo”, e sim “estudante de astrologia”. Qualificar-me como astrólogo equivale a chamar o discípulo de mestre.

2. É uma deslavada, pérfida, sórdida mentira que o primeiro e-mail a ser recebido pela Montfort tenha sido o meu. Foi o do Marcelo De Polli, o “Montfort Kids – para seu fedelho virar um Fedeli”. 

3. Felipe: aquilo que você escreveu sobre ir roer um carvalho foi extremamente constrangedor. Contenha-se, pois, como diria o Dr. Freud, um carvalho às vezes é apenas um carvalho.

Pedro Sette Câmara

Apêndice II

Parabéns à Montfort por ter tirado as estrelinhas da primeira página do site! Agora só falta o resto! Vocês quase nem parecem mais maçons!

 

Breve história do machismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 16 de agosto de 2001

As mulheres sempre foram exploradas pelos homens. Se há uma verdade que ninguém põe em dúvida, é essa. Dos solenes auditórios de Oxford ao programa do Faustão, do Collège de France à Banda de Ipanema, o mundo reafirma essa certeza, talvez a mais inquestionada que já passou pelo cérebro humano, se é que realmente passou por lá e não saiu direto dos úteros para as teses acadêmicas.

Não desejando me opor a tão augusta unanimidade, proponho-me aqui arrolar alguns fatos que podem reforçar, nos crentes de todos os sexos existentes e por inventar, seu sentimento de ódio ao macho heterossexual adulto, esse tipo execrável que nenhum sujeito a quem tenha acontecido a desventura de nascer no sexo masculino quer ser quando crescer.

Nosso relato começa na aurora dos tempos, em algum momento impreciso entre Neanderthal e Cro-Magnon. Nessas eras sombrias, começou a exploração da mulher. Eram tempos duros. Vivendo em tocas, as comunidades humanas eram constantemente assoladas pelos ataques das feras. Os machos, aproveitando-se de suas prerrogativas de classe dominante, logo trataram de assegurar para si os lugares mais confortáveis e seguros da ordem social: ficavam no interior das cavernas, os safados, fazendo comida para os bebês e penteando os cabelos, enquanto as pobres fêmeas, armadas tão-somente de porretes, saíam para enfrentar leões e ursos.

Quando a economia de coleta foi substituída pela agricultura e pela pecuária, novamente os homens deram uma de espertinhos, atribuindo às mulheres as tarefas mais pesadas, como a de carregar as pedras, domar os cavalos, abrir sulcos na terra com o arado, enquanto eles, os folgadinhos, ficavam em casa pintando potes e brincando de tecelagem. Coisa revoltante.

Quando os grandes impérios da antiguidade se dissolveram, cedendo lugar aos feudos perpetuamente em guerra uns com os outros, estes logo constituíram seus exércitos particulares, formados inteiramente de mulheres, enquanto os homens se abrigavam nos castelos e ali ficavam no bem-bom, curtindo os poemas que as guerreiras, nos intervalos dos combates, compunham em louvor de seus encantos varonis.

Quando alguém teve a extravagante idéia de cristianizar o mundo, tornando-se necessário para tanto enviar missionários a toda parte, onde arriscavam ser empalados pelos infiéis, esfaqueados pelos salteadores de estradas ou trucidados pelo auditório entediado com os seus sermões, foi novamente sobre as mulheres que recaiu o pesado encargo, enquanto os machos ficavam maquiavelicamente fazendo novenas ante os altares domésticos.

Idêntica exploração sofreram as infelizes por ocasião das cruzadas, onde, armadas de pesadíssimas armaduras, atravessaram os desertos para ser passadas a fio d’espada pelos mouros (ou antes, pelas mouras, já que o machismo dos sequazes de Maomé não era menor que o nosso). E as grandes navegações, então! Em demanda de ouro e diamantes para adornar os ociosos machos, bravas navegantes atravessavam os sete mares e davam combate a ferozes indígenas que, quando as comiam, – era porca miséria! – no sentido estritamente gastronômico da palavra.

Finalmente, quando o Estado moderno instituiu o recrutamento militar obrigatório, foi de mulheres que se formaram os exércitos estatais, com pena de guilhotina para as fujonas e recalcitrantes, tudo para que os homens pudessem ficar em casa lendo A Princesa de Clèves.

Há milênios, em suma, as mulheres morrem nos campos de batalha, carregam pedras, erguem edifícios, lutam com as feras, atravessam desertos, mares e florestas, sacrificando tudo por nós, os ociosos machos, aos quais não sobra nenhum desafio mais perigoso que o de sujar nossas mãozinhas nas fraldas dos nossos bebês.

Em troca do sacrifício de suas vidas, nossas heróicas defensoras não têm exigido de nós senão o direito de falar grosso em casa, de furar umas toalhas de mesa com pontas de cigarros e, eventualmente, de largar um par de meias no meio da sala para a gente catar.

Uma intentona e tanto

Ronaldo Castro

15 de agosto de 2001

Há algum tempo que as polêmicas em torno do professor Olavo de Carvalho nos divertem e nos enriquecem com seu inigualável brilhantismo intelectual. Um verdadeiro filósofo, sem a empáfia dos jargões, a nos brindar em periódicos e pela Internet, com o mais fino dos temas filosóficos, surgiu como num passe de mágica, para horror dos ídolos de plantão. Mas seu empreendimento filosófico não se resume aos temas, ditos, específicos da filosofia. Sua bondade intelectual nos propicia uma das mais profundas e catárticas análises da cultura que esse país já teve, conforme o best-seller O Imbecil Coletivo pode atestar.

A cruzada que Olavo empreende contra a perigosa hegemonia ideológica esquerdista nunca foi respondida à altura. A esquerda não tem pensadores, quiçá filósofos, e nenhuma das questões que o professor Olavo denuncia, com objetividade e clareza escandalosas, foram respondidas. Quantas vezes, entre amigos, eu reclamei da mudez sórdida dos intelectuais e dos fazedores de opinião desse país?! Orava para que alguém pudesse dialogar com ele. Era triste ver quão solitária era a verdade. Não reclamo da solidão do professor, tão já afeiçoado a ela, mas a solidão mórbida de todos os que se interessam pela verdade dos fatos e esbarram na ideologia, na mentira cotidiana da modernidade, da esquálida cultura juvenil que odeia o que ignora. Mas, passada a fase de entusiasmo, que sua socrática intervenção na cultura brasileira nos traz, pois o império da burrice maliciosa e arrogante ainda sobrevive, uma tristeza, ainda que terapêutica, substitui o encanto.

É claro que não me refiro nem ao valor nem a qualidade das aulas do professor Olavo, mas uma suposta reação à elas. A mudez foi substituída por uma gritaria. Surge agora um grupo, dito católico, que, ao contrário da esquerda brasileira, parece pensar e se coloca contra o projeto, devo dizer, pedagógico do professor Olavo. A arrogante mudez coletiva da mídia parece já menos escandalosa que a balbúrdia inquisitorial que esse grupo dito católico, repito, empenha.

Um grupo, cujas citações em latim apenas douram um barroco podre, sente-se honrado de dispersar a unidade inegável que o professor Olavo aponta entre as várias tradições espirituais da humanidade. Condenar o professor e a toda a sua obra de herética, justamente aquele que já figura como um dos que mais fez pela dignidade intelectual de nosso país, é uma outra maneira de apagar os sinais da autêntica espiritualidade em nome de um discurso canônico míope, de um rigor anacrônico, vazio de espírito.

Artigos de um aluno do grupo fedeliano, arrotam uma pseudo erudição, específica e afetada, cheia de sarcasmos e arrogâncias, parecido, aparentemente, com o sarcasmo do próprio Olavo de Carvalho. É certo que alguns fedelianos também foram breves alunos do professor Olavo, mas, como a intenção sórdida de apreender-lhe apenas contradições já dominavam seus corações, suas mentes não puderam apreender nada mais que um estilo, um dentre os vários. A crítica de Olavo ao Concílio Vaticano II, à infalibilidade papal, à equivocada generalização sobre a gnose, esse esplêndido conceito grego do conhecimento, é tratada como uma heresia digna das fogueiras. E os fedelianos se arrogam seus mais resolutos vestais. É sabido que, após o Vaticano II, a nova missa não é um ato do sacerdote a quem o povo se une, mas um ato do povo a quem os ministros servem. Os altares foram transformados em mesas e isso, nem mesmo um filósofo deve dizer. Pelo menos é assim que pensam esses “guardiões romanos”. Mas Olavo não pode e não deve ficar calado. A Teologia da Libertação não é um fenômeno sul-americano , nem restrito à Igreja Católica, é ensinada em universidades americanas e européias, disseminada na maioria das denominações protestantes e, acima de tudo, pelo Concílio Mundial de Igrejas. É notório que é uma tentativa de misturar ideologia marxista com os valores religiosos mais superficiais. O grupo dos fedeli é mais uma manifestação de nosso tempo: riqueza religiosa e pobreza espiritual. As análises de Olavo de Carvalho sobre a Igreja, sobre a religião são de uma clareza e bondade que falta até mesmo à maioria dos próprios religiosos. Ninguém tem a palavra definitiva, é certo, mas o caminho que se percorre já diz muito, e a trilha intelectual que o professor percorre é de um inegável brilho espiritual cuja reação ígnea dos seguidores de Fedeli realmente nos espanta. Há uma série de questões sobre a Igreja que são de suma importância para o filósofo discutir, para benefício não só do povo, mas da própria Igreja. Não podemos esquecer que ela também é uma instituição humana e que as soluções que se buscam para os dilemas da humanidade, ainda que inspiradas, não são absolutas, pois seriam, ai sim, uma grande heresia.

Só Deus é Absoluto. A Verdade deve ser buscada. Não a encontraremos por decreto. Os que se dizem defensores da Tradição, especialmente os que o fazem com as tochas em punho, não podem esquecer que devem continuamente se manifestar a respeito do problema da miséria, e das contínuas contradições da humanidade. A busca do conhecimento, sendo a busca do sentido da vida, comunga de uma dimensão comum com a mística. Não se confunde com ela, mas não lhe é estranho. O divórcio que o grupo fedeliano quer reeditar entre Ser e Conhecer, açoitando-nos com dogmas literais, é no mínimo um ultraje filosófico. Mas creio que mandar a filosofia às favas não é exclusividade dos fedeli, e a esquerda materialista agradece mais essa intentona.

Ronaldo Castro
castro@recife.pe.gov.br

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