Yearly archive for 2001

Jesus e a pomba de Stalin

Olavo de Carvalho

O Globo, 20 de outubro de 2001

Quando Cristo disse: “Na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que deveríeis amar”, Ele ensinou da maneira mais explícita que os sentimentos não são guias confiáveis da conduta humana: antes de podermos usá-los como indicadores do certo e do errado, temos de lhes ensinar o que é certo e errado. Os sentimentos só valem quando subordinados à razão e ao espírito.

Razão não é só pensamento lógico: reduzi-la a isso é uma idolatria dos meios acima dos fins, que termina num fetichismo macabro. Razão é o senso da unidade do real, que se traduz na busca da coesão entre experiência e memória, percepções e pensamentos, atos e palavras etc. A capacidade lógica é uma expressão parcial e limitada desse senso. Também são expressões dele o senso estético e o senso ético: o primeiro anseia pela unidade das formas sensíveis, o segundo pela unidade entre saber e agir. Tudo isso é razão.

Espírito é aquilo que inspira a razão a buscar a chave da unidade da visão do mundo no supremo Bem de todas as coisas e não num detalhe acidental qualquer, tomado arbitrariamente como princípio de explicação universal, como algumas escolas filosóficas fazem com a linguagem, outras com a História, outras com o inconsciente etc. O espírito é o topo do edifício da razão, que por ele se abre para o sentido do Bem infinito, libertando-se da tentação de enrijecer-se num fetichismo trágico ou utópico.

Nem a razão nem o espírito se impõem. Só nos abrimos a eles por livre vontade. A abertura para a razão vem essencialmente da caridade, do amor ao próximo, pelo qual o homem renuncia a impor seu desejo e aceita submeter-se ao diálogo, à prova, ao senso das proporções e, em suma, ao primado da realidade. A abertura para a razão é educação. Educação vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da maturidade. O homem maduro — o spoudaios de que fala Aristóteles — é aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua comunidade para o bem. Este ponto é crucial: ninguém pode guiar a comunidade no caminho do bem antes de tornar-se maduro no sentido de Aristóteles. Líderes revolucionários e intelectuais ativistas são apenas homens imaturos que projetam sobre a comunidade seus desejos subjetivos, seus temores e suas ilusões pueris, produzindo o mal com o nome de bem.

A abertura ao espírito é um ato de confiança prévia no bem supremo da existência, ato sem o qual a razão perde o impulso ascendente que a anima e, fugindo do infinito, se aprisiona em alguma pseudototalidade, mais alienante ainda que o egoísmo subjetivo inicial. O nome religioso desse ato de confiança é fé, mas a confiança que eleva a razão à busca do infinito transcende o sentido da mera adesão a um credo em particular e tem antes uma dimensão antropológica: tudo o que o ser humano fez de bom, fez movido pela fé e por meio da razão.

O espírito e a razão educam os sentimentos. Os sentimentos do homem amadurecido pelo espírito e pela razão são diferentes dos do homem imaturo, porque aquele ama o que deve amar e odeia o que deve odiar, enquanto o segundo ama ou odeia às tontas, segundo as inclinações arbitrárias da sua subjetividade moldada pelas pressões e atrativos do meio social.

Mas o que atrai a alma para a abertura ao espírito e à razão é a esperança, e o despertar da esperança é um mistério. Homens submetidos à mais dura opressão e aos mais tormentosos sofrimentos conservam sua esperança, enquanto outros a perdem à primeira frustração de um desejo tolo. A esperança não está sob o nosso controle. Seu advento depende do espírito mesmo, que sopra onde quer. Todos os enredos humanos, da vida e da ficção, giram em torno do mistério da esperança.

A esperança, a fé e a caridade educam os sentimentos para o amor ao que deve ser amado. O culto idolátrico dos sentimentos é um egocentrismo cognitivo, um complexo de Peter Pan que recusa a maturidade. Quanto mais o homem busca afirmar sua liberdade por meio da adesão cega a seus sentimentos e desejos, mais se torna escravo da tagarelice ambiente. O caminho da liberdade é para cima, não para baixo. Libertar-se não é afirmar-se: é transcender-se.

Das várias formas de escravidão a que o homem se sujeita pelo culto dos sentimentos, a pior é a escravidão às palavras. Por meio do falatório em torno o homem pode ser adestrado para ter certos sentimentos e emoções à simples audição de determinadas palavras, independentemente dos fatos e do contexto. Paz e guerra, por exemplo, suscitam reações automáticas. Por isso as massas imaturas aceitam com a maior credulidade os novos regimes de governo que prometem acabar com as guerras e instaurar a paz. Mas é só nominalmente que guerra significa morticínio e paz significa tranqüilidade e segurança. As guerras, no século XX, mataram 70 milhões de pessoas. É muita gente. Mas 180 milhões, mais que o dobro disso, foram mortos por seus próprios governos, em tempo de paz e em nome da paz. O homem maduro sabe que as relações entre guerra e paz são ambíguas, que só um exame criterioso da situação concreta permite discernir a dosagem do bem e do mal misturados em cada uma delas a cada momento. Ele sabe que a Pomba da Paz, oferecida à adoração infantil nas escolas, foi um desenho encomendado a Pablo Picasso por Josef Stalin com o intuito de fazer com que o símbolo da Pax soviética — a ordem social totalitária construída sobre trabalho escravo, prisões em massa e genocídio — se sobrepusesse, na imaginação dos povos, ao símbolo cristão do Espírito Santo. O homem maduro sabe que, tanto quanto a Pomba da Paz, também manifestos pela paz, discursos pela paz e até missas pela paz são, muitas vezes, blasfêmias e armas de guerra. No dicionário, os sentidos da guerra e da paz estão nitidamente distintos, mas o homem maduro não se refugia da complexidade das coisas no apelo pueril a absolutos verbais.

Igualdade, liberdade, direito, ordem, segurança e milhares de outras palavras foram também incutidas na mente das massas como programas de computador para acionar nelas automaticamente as emoções desejadas pelo programador, fazendo com que amem o que deveriam odiar e odeiem o que deveriam amar. Até a esperança, chave da fé e da caridade, se torna aí uma arma contra o espírito, quando se coisifica na expectativa de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa ou, no fim das contas, de ganhar mais dinheiro. Jesus deixou claro que não era nenhuma dessas esperanças a que Ele trazia. Era a esperança de fazer de cada um de nós um novo Cristo, encarnação e testemunha do espírito. Quem aceitar menos que isso só ganhará, em vez da paz de Cristo, uma bandeirinha da ONU com a pomba de Stalin.

A fala de FHC

José Nivaldo Cordeiro

O discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso na Assembléia Nacional francesa – muito aplaudido por sinal – foi amplamente noticiado na imprensa de hoje e dificilmente pode refletir os interesses mais sólidos do Brasil. Pode ter arrancando aplausos dos franceses, mas FHC governa o Brasil. O discurso, que critica a ação militar e diplomática dos Estados Unidos, pode ser apenas um gesto gratuito contra aquele governo, sem nada acrescentar para ampliar, seja o poder nacional brasileiro, seja a sua presença no cenário internacional.

O Brasil já tinha perdido uma oportunidade histórica de se alinhar com os norte-americanos ao não estar na linha de frente contra o terrorismo, desde as primeiras horas. Ficou no termo morno, no muro de quem mais gostou que desgostou dos acontecimentos, na dubiedade dos fracos. Então o discurso de hoje pode ser lido como um corolário daquela posição, diplomaticamente equivocada, assumida pela Chancelaria brasileira e pelo próprio presidente.

Mesmo abstraindo as questões morais – e não há como ficar a favor do terrorismo – o governo brasileiro errou, por vários motivos. Em primeiro lugar, o terrorismo também nos ameaça e não há como negar que a tríplice fronteira ao sul pode ser um elemento de vulnerabilidade que pode colocar o país como um facilitador de ações terroristas. Em segundo lugar, porque, queiramos ou não, os Estados Unidos são os nossos melhores e maiores parceiros comerciais. Em terceiro, a proximidade geográfica torna o Brasil um país que não pode fechar os olhos para os dramáticos acontecimentos de 11 de setembro. Em quarto, como o grande país da América do Sul, a posição pusilânime assumida só favorece a uma perda de liderança regional e do reconhecimento internacional.

Em resumo, a equivocada posição diplomática nos colocou na habitual situação de irrelevância no cenário internacional.

E nada há a justificar isso. O Brasil teria realmente que aprofundar e extrair da relação com os Estados Unidos os frutos de uma parceria estratégica, que não seria difícil construir se, do lado de cá, houvesse uma predisposição ideológica e inteligência conduzindo as negociações. Em substituição a uma diplomacia mais eficaz, ficamos nós perdendo tempo com países quebrados como a Argentina, que nada nos podem dar e que freqüentemente querem nos levar alguma coisa. Perdemos tempo com aplausos fácil de países como a França, que têm um recalque histórico contra a América, que não temos. Perdemos tempo com todas as causas perdidas da comunidade internacional.

É admirável a posição da Inglaterra, do Canadá e da Austrália, além do Japão e da Alemanha, que não hesitaram diante dos perigos do terrorismo, ficando do lado de quem estava a força moral. Ganharam em virtudes e também no fortalecimento dos seus interesses. Como é que o Brasil entrará na agenda relevante se sempre busca a companhia dos irrelevantes e dos fracos?

Aqui é preciso frisar a coerência ideológica do governante brasileiro. Fazendo coro com a esquerda internacional, começa a ver nos gestos de defesa militar uma ameaça agressora, começa a desqualificar uma ação que defende não apenas países individualmente, mas o conjunto do mundo ocidental. O recente assassinato infame dos cristãos católicos em plena Missa no Paquistão é emblemático do que estamos a viver. Está em curso um choque de civilizações. Não há lugar para inocentes úteis, não há meios termos. Ou se está do lado de quem tem razão e vai vencer a parada, ou se está contra. A posição morna não é duradoura nem recomendável. Infelizmente o Brasil, pela fala do seu presidente, parece que está escolhendo ficar do lado perdedor e mesmo daqueles que são objetivamente os inimigos dos brasileiros, enquanto nação integrante do Hemisfério Ocidental.

FHC poderia ter saído do governo sem esse opróbrio de acovardado, que não representa minimamente os interesses e mesmo o sentimento da maioria dos brasileiros. Fico a me perguntar com que cara ficará o Brasil se um outro atentado de grande envergadura vier a ser executado. Voltará atrás sobre os próprios passos? Deixará o dito pelo não dito?

Alguém duvida que um segundo movimento será executado?

Educação Liberal

Palestra de Olavo de Carvalho
Rio de Janeiro, 18 de outubro de 2001
Transcrição: Fernando Antônio de Araújo Carneiro
Revisão: Patrícia Carlos de Andrade

Sem revisão do professor

Agradeço comovido as palavras do deputado Carlos Dias e da minha querida amiga Mina Seinfeld [1]. E, aliás, essa é não somente uma oportunidade para ela falar a meu respeito, mas para contar também algumas coisas a respeito dela. A professora Mina está envolvida numa luta que é paralela à minha, onde encontra condições muito parecidas. Nós dois estamos envolvidos na luta contra as drogas, apenas a espécie de droga é que muda: sobre as drogas de que ela trata, ainda há a discussão de se serão liberadas ou não, ao passo que as drogas de que falo, não apenas estão liberadas, como são obrigatórias. A diferença é mais ou menos esta. Mas, neste esforço monumental e meritório da professora Mina, ela encontra a mesma resistência que encontro na minha área, porque todos estão contra: os drogados, os traficantes, os que têm interesse político na coisa, os indiferentes e todos aqueles que querem parecer bonzinhos – todos os politicamente corretos. E, de fato, quando você vai para um debate é exatamente como ela descreveu: são trinta pessoas para falar a favor e uma contra e depois, na transcrição, ainda cortam umas frases do que a pessoa falou e ficam lá somente três linhas, para provar que o debate foi bastante democrático. Isto é pior do que não ter debate nenhum, é uma falsificação.

Agradeço muito a meus alunos essa iniciativa. A idéia foi inteiramente deles, que têm um grande mérito em fazer isto, abrir a outras pessoas a mesma oportunidade. Nosso curso aqui no Rio tem sido quase que confidencial. Creio que existe aqui há dezoito anos e nunca foi anunciado nem avisado; continua existindo, não sei como. Em São Paulo há toda uma infra-estrutura montada, o número de alunos é bem grande, e no Paraná são cento e cinqüenta alunos. É um pouco estranho que aqui no Rio de Janeiro, que ainda é a capital cultural do Brasil, nosso curso seja tão secreto assim. Não me incomodo se dou aula para um, dois ou cem alunos: o problema é exatamente o mesmo. Ademais, esse tipo de ensino requer muito tempo para dar frutos. Calculo mais ou menos dois anos, para a pessoa começar a perceber o que está mudando em sua vida, no seu enfoque existencial.

Agora, o tema de hoje, que é a educação liberal, é mais abrangente do que a proposta do meu curso; o curso é uma das modalidades, um dos capítulos do que chamaríamos de educação liberal. Liberal não se confunde com o liberalismo político, a ideologia de Adam Smith, Herbert Spencer e outros, nem com o sentido da palavra liberal nos Estados Unidos que quer dizer esquerdista, mas tem a ver com a noção, hoje em dia puramente nominal, de profissões liberais. Profissões liberais, como o próprio nome diz, se opõem às profissões servis, que são exercidas em troca de uma remuneração. Profissões liberais são exercidas num ato de liberalidade do indivíduo; ou seja, o profissional liberal está de algum modo obrigado a exercer a sua tarefa somente por um mandamento interno, somente por um dever interno, e ele tem que exercer aquilo com ou sem remuneração, ou até mesmo pagando para exercê-la. Esse é o sentido originário. Por exemplo, o médico na ética da idade média não poderia jamais recusar um paciente que não tivesse dinheiro para pagá-lo; o advogado a mesma coisa. E, por isso mesmo, quando havia uma remuneração, esta se chamava honorário. Honorário é algo que damos ao indivíduo não pela tarefa que ele desempenhou, mas em reconhecimento da honra de sua posição na sociedade ou do mérito de seu saber. Tanto faz dar cinqüenta centavos ou cinqüenta mil, porque o que vale é a intenção.

Hoje em dia, não é mais assim. Quando consultamos um advogado a primeira coisa que ele faz é puxar uma tabela de honorários. A expressão tabela de honorários é uma contradição de termos, pois se são honorários, não há tabela. Tabelas são de salários ou de preços, tabela de honorários não é possível.

Na idade média, a formação para as profissões liberais começava com a absorção do que se chamava as artes liberais. Eram um conjunto de disciplinas, das quais três tratavam essencialmente da linguagem e do pensamento e quatro tratavam dos números, entendidos num sentido muito mais amplo do que hoje estamos acostumados a designar por este nome, e das proporções. O número seria o sentido geral da forma e da proporção. As quatro disciplinas que lidavam com o número eram a aritmética, a geometria, a música e a astronomia ou astrologia. A astrologia veio a se dividir em duas áreas: a astrologia esférica, que era o estudo da esfera celeste, e a astrologia judiciária, que era o que hoje chamamos de astrologia – uma especulação, seja científica ou outra coisa, sobre as coincidências temporais entre o que se passa no movimento dos astros e os acontecimentos terrestres. Tudo isso era considerado parte das matemáticas, ou seja, a matemática era, de modo geral, a ciência da medida e da proporção. As outras três disciplinas eram a gramática, a lógica ou dialética, e a retórica.

Esta formação básica, que geralmente começava bem mais tarde do que hoje, aos quatorze anos, visava a transmitir ao indivíduo, por um lado, o senso das proporções, o senso da forma do mundo e, por outro lado, os meios de compreensão, expressão e participação na cultura humana [2].

O que hoje chamamos de educação liberal é uma adaptação das artes liberais antigas, feita sobretudo por dois educadores, Robert Hutchins e Mortimer Adler [3], no começo de século . Nesta adaptação, as artes liberais deixam de se distinguir das artes servis e começam a se distinguir do ensino profissional. Todas as áreas de ensino visam a transmitir determinadas habilidades profissionais; as artes liberais, em contra-partida, visam a formar o cidadão em geral, o cidadão não especializado. Mais especificamente com a ênfase na idéia de cidadão da democracia, subentendendo-se democracia pelo sistema onde vale a pena discutir, onde é possível haver uma discussão e onde há uma possibilidade de que as questões sejam arbitradas por meio da razão e não de motivos desconhecidos que uma autoridade possa ter para decidir assim ou assado.

A discussão é evidentemente inerente à própria idéia de democracia. Mas, por outro lado, a discussão é perfeitamente inútil se não há nenhum critério racional para arbitragem das discussões. Se não há nenhum meio de os lados em disputa provarem as suas razões, ou seja, se todas as razões se equivalem, então a discussão evidentemente não vai dar em nada e a coisa no fim será resolvida pelo meio da força. Pode ser a força física ou a força emocional, o apelo emocional da propaganda.

Adler e Hutchins eram pessoas que pensavam politicamente de maneira muito diferente entre si: Adler era mais conservador e Hutchins era definitivamente esquerdista. Mas, sabendo que há um compromisso inerente entre a idéia de democracia e a idéia de razão, achavam que podiam organizar um novo sistema de ensino não apenas baseado na tradição das artes liberais, mas na experiência acumulada do ensino das elites americanas. Nos Estados Unidos, antes mesmo da independência, se formaram vários colégios para a educação da elite que, quase instintivamente, adotaram como mecanismo básico de ensino, a leitura e a absorção do legado dos clássicos. Entendemos por clássico, uma obra que tem valor e interesse permanente, que tenha dado alguma contribuição que permanece eficaz ao longo dos tempos; aquela obra que, a despeito do tempo que passou depois que ela foi escrita, ainda tem algo a nos ensinar. Particularmente, e mais precisamente, se designam como clássicas obras que estabeleceram certas noções ou transmitiram certos ensinamentos, que vão formando patamares sucessivos de consciência humana, de tal modo que a discussão de determinados assuntos não tenha mais o direito de descer abaixo daquele patamar.

Por exemplo, a partir do momento em que Aristóteles formula a ciência da lógica não é mais possível discutirem-se legitimamente as coisas, como os sofistas e Sócrates discutiam, utilizando uma lógica rudimentar, onde os procedimentos de prova se confundiam provisoriamente a procedimentos destinados a impressionar o ouvinte. O próprio Sócrates, que é um crítico dos sofistas, incorre freqüentemente nesse tipo de argumentação. Não por maldade evidentemente, mas simplesmente porque os dois tipos de argumentação, a que visa a impressionar e a que visa a provar, não haviam ainda se distinguido perfeitamente. Essa distinção só veio mesmo com Aristóteles. E a partir do momento em que essa distinção fica estabelecida, cria-se uma espécie de patamar de consciência: não temos mais o direito de ignorar a existência dessa distinção [4].

A técnica da discussão e da prova foi elevada a nível de requinte quase inimaginável, mais tarde, pelos filósofos escolásticos, que também fixam um novo patamar de exigência. Depois surgem os processos de investigação e prova aceitos nas ciências naturais e isto vai se acumulando como uma série de patamares de exigência de modo que, teoricamente, não teríamos o direito de entrar na discussão de um assunto ignorando esses patamares já conquistados.

Dei o exemplo de patamares conquistados em filosofia, mas temos o mesmo processo em cada uma das ciências e sobretudo nas artes. Por exemplo, o que vai distinguir a escrita literária da escrita vulgar, nas artes literárias, é precisamente a consciência de uma evolução dos meios expressivos da arte, que a primeira traz dentro de si. A escrita literária é cheia de referências aos antecessores; referências a toda uma evolução anterior. É praticamente impossível encontrar um único verso da literatura moderna que não tenha dentro de si várias camadas de significado que foram sendo acumuladas pela evolução da poesia ao longo dos tempos. É evidente que, para o leitor perceber isso, é preciso que ele próprio tenha noção dessa evolução anterior, de modo que na medida que vai absorvendo esta consciência da evolução da arte literária, a leitura que faz de um poeta moderno seria imensamente mais rica do que a que poderia ser feita pelo sujeito que chegasse lá sem ter o conhecimento das referências. Ou seja, essa evolução vai sedimentando novas linguagens e novos códigos, cujo conhecimento é a condição para que se possa participar, de uma maneira consciente, do mundo cultural, do mundo das discussões, do mundo da comunicação.

A transmissão a um estudante ou a um jovem da consciência desses patamares é que seria precisamente a educação liberal.

O sistema político moderno é enormemente complexo. Se compararmos qualquer país hoje – Brasil, Uruguai ou Paraguai – com a República Romana, veremos que sua organização política é imensamente mais complexa. Para discutirmos um problema qualquer da economia ou da política paraguaias, precisaríamos ter um horizonte de consciência muito mais vasto que o que o cidadão romano ou o cidadão da democracia grega teriam que ter para compreender seus problemas locais. A acumulação desses patamares de consciência, portanto, forma a série de condições que, num dado momento da evolução histórica, o ser humano precisa cumprir para entender o que está acontecendo em torno dele. Entender o que está acontecendo não é não é um dever e não é atribuição de uma profissão especializada, mas é, de certo modo, uma possibilidade aberta a todos os cidadãos. Não podemos tornar isso obrigatório porque a aquisição desse patrimônio depende de uma capacidade pessoal e de uma disposição; uma vocação pessoal. Torná-lo obrigatório é, portanto, utópico.

Eu não acredito em educação universal obrigatória, de jeito nenhum. Não acredito em educação de quem não queira se educar. Acredito em oportunidade universal de educação. Abrir para todos, sim, mas tornar obrigatório é absolutamente inócuo.

A aquisição da consciência desses sucessivos patamares é uma possibilidade que está aberta aos cidadãos que desejem compreender o mundo em que estão. Porque o mundo atual não surgiu do nada, não foi inventado ontem, resulta de milhões de decisões e ações humanas que foram se encaixando umas às outras e que produziram resultados que não estavam sob o controle de ninguém. O código civil de qualquer país do ocidente e, de fato, toda a legislação moderna, por exemplo, certamente sofrem a influência do código de Napoleão. Napoleão chamou uma comissão de juristas que escrevia de um modo e ele riscava e dizia que não era daquele jeito, mas de outro. Ou seja, o código saiu da cabeça dele e, a partir desse momento, o impacto foi formidável. Mas se não temos consciência do modus raciocinandi, das razões que Napoleão teve para fazer isto desta maneira e não de outra, sofremos o impacto de novas legislações cujas razões profundas não conhecemos. Ou seja, não estamos capacitados para discutir aquilo.

Hoje em dia todo mundo acredita que existe o direito à liberdade de expressão e o direito à liberdade de opinião. Eu não acredito porque, para haver liberdade de opinião é preciso, em primeiro lugar, haver uma opinião. Mas a maioria das pessoas que exercem a liberdade de opinião não tem opinião. Para ter uma opinião, preciso ter prestado atenção em algo. Freqüentemente vemos pessoas que falam durante dez minutos sobre assuntos nos quais não prestaram atenção nem por dois minutos. Então não posso chamar isso de opinião: isto é uma efusão improvisada de palavras que brotam no momento da pessoa, mas sem nenhuma relação com o objeto do qual ela está falando. Então se acreditamos no direito universal à expressão das opiniões, que ele é um dado primeiro e incondicional, significa que todos têm o direito de falar pelo tempo que quiserem e todos têm a obrigação de ouvir. Então lhes pergunto: o que é o direito à liberdade de opinião sem a contra-partida que é o direito de não ouvi-la, o direito de ir embora? Por exemplo, nenhum de vocês está obrigado a ficar sentado aí. Vocês estão porque querem, mas têm o direito de ir embora a qualquer momento.

A própria idéia de direito à liberdade de expressão, à liberdade de opinião está condicionada ao mérito da opinião, ao valor da opinião. E esse valor é condicionado, no mínimo, pelo interesse que o próprio opinante tem no assunto. Imagina que o sujeito não se interessou pelo assunto o suficiente para se informar a respeito dele por cinco minutos que sejam. Por que ele teria o direito de falar sobre o assunto durante seis minutos e teríamos que escutá-lo? A conquista de uma opinião, portanto, é o primeiro passo para o exercício efetivo da liberdade de opinião. É evidente que quando o indivíduo expressa sua opinião numa assembléia, ele está de certa maneira se personificando; está dizendo: este sou eu, sou o camarada que pensa assim e assado. Dali em diante, ele será encarado como representante daquela opinião. Mas, se o sujeito dá uma opinião que pensou na hora e da qual não vai se lembrar nos próximos dez minutos, ele personifica o quê?

É só reparar um pouco nas discussões públicas que acontecem no Brasil e percebemos um fenômeno esquisito. Sabemos que as pessoas lêem pouco; os jornais de grande tiragem vendem hoje cerca de um milhão de exemplares, sendo que vendiam o mesmo na década de cinqüenta. Ou seja, a população cresceu formidavelmente, o número de escolas cresceu mais ainda, e as pessoas continuam lendo a quantidade de jornais que liam na década de cinqüenta. Quanto aos livros, não tenho cálculos mais atualizados, mas na década de noventa havia menos livrarias no Brasil do que na década de cinqüenta. Apesar dessa total falta de interesse em saber das coisas, as pessoas sempre têm interesse em opinar. Dificilmente vemos um repórter perguntar a uma pessoa na rua o que ela acha disso ou daquilo e receber como resposta: não sei, estou por fora do assunto. Nunca vi isso. As pessoas consultadas sempre têm opinião sobre qualquer coisa.

Vendo isso ao longo dos tempos, vi que esse é um traço antropológico muito estranho: uma sociedade onde as pessoas não se interessam pelo assunto, mas têm um interesse brutal em opinar a respeito dele. Não estranhamos isso apenas porque já nos acostumamos, mas essa é uma conduta anormal. É uma anomalia que, repetida ao longo do tempo, acabamos achando que é normal.

Ora, se tentamos convencer as pessoas de que existe um negócio chamado cidadania e que esta inclui o direito de opinar sobre questões públicas – e todos estão persuadidos disso – e ao mesmo tempo não cria a percepção de que para ter uma opinião é necessário ter prestado atenção no assunto, o que estamos fazendo com essa cidadania? A está transformando numa espécie de bolha de sabão, numa fantasia, numa mentira e numa paródia de si mesma. A noção de cidadania e de exercício da cidadania faz sentido a partir do momento em que as pessoas têm realmente opiniões, não confundindo a opinião com uma efusão qualquer de palavras que brota do inconsciente ou que foi ouvida num anúncio de rádio anteontem e o sujeito repete. Esse tipo de falatório é a degradação da liberdade de opinião, ele não é a própria liberdade de opinião. Sobretudo porque se espera que o exercício da liberdade de opinião contenha dentro de si a possibilidade de uma repetição, de uma reiteração e de uma luta pela própria opinião. Supõe-se que a opinião de um indivíduo valha algo para ele e, por isso, ele luta por ela. Mas se o sujeito não precisou pensar no assunto, se a opinião não lhe custou nada, quanto ela vale para ele? E a pergunta fatídica: por que devo prestar atenção à sua opinião por mais tempo que você levou para formulá-la? Se você levou dois minutos pensando no assunto, por que devo ouvi-lo durante três? Quando queremos que os outros façam o que não quisemos fazer, que sejam o que não somos, entramos diretamente no culto à Papai Noel. E chamar isso de formação da cidadania é achar que puerilizar as pessoas é torná-las cidadãos. Um homem que acha que os outros têm obrigação de ouvi-lo só porque ele é bonitinho é exatamente como aquela criança que, quando vem visita em casa, começa a fazer palhaçada e todos têm que achar bonito e passar a mão em sua cabeça. Qualquer cidadão que se atreva a falar em púbico com essa expectativa está se aviltando, está permitindo que a situação lisonjeie seus desejos pueris. Evidentemente não é esse tipo de formação do cidadão a que visamos.

Educar o cidadão em primeiro lugar não é educá-lo para falar, mas é educá-lo para saber, quer ele fale ou não. A famosa participação é apenas um exercício de uma força interior, de um poder que o indivíduo tem. A educação liberal consiste em dar a ele este poder, esta força interior e não em lhe dar os meios e as oportunidades de exercê-los.

Você já conheceu alguma pessoa que não tivesse nenhuma opinião sobre a sociedade em que vivemos? Acho que a minha avó não tinha mas ela foi a última pessoa. Se perguntasse isso para a minha avó ela perguntaria: ” do que está falando?” Ela nunca achou que existia essa possibilidade de ter uma opinião geral sobre a sociedade em que estava. Mas a partir da minha geração, ou talvez a de meus pais, todo mundo foi educado para ter uma opinião sobre a sociedade, ou seja, exercer uma coisa que se chama a crítica social. Qual é sua real possibilidade de ter uma visão crítica da sua sociedade? Em primeiro lugar, para isso você precisaria ter uma idéia do funcionamento da sociedade. Isso leva algum tempo; é um pouco trabalhoso. Mas mesmo que tivesse a visão geral, você acredita realmente que o membro de uma sociedade consegue colocar a cabeça para fora dela, acima dela, e julgá-la desde cima? Se todos somos de certo modo produtos da sociedade em que estamos, nossas opiniões, incluindo as negativas que sobre a própria sociedade, são criações dela mesma e fazem parte do mesmo mal que denunciam. A única possibilidade de haver uma crítica social legítima, que funcione, é a de que o indivíduo humano de algum modo se coloque acima da sociedade e consiga ver nela algo que ela mesma não vê. É necessário que a consciência dele esteja acima do nível de consciência que aparece nas próprias discussões públicas. Para criticar minha sociedade como um conjunto, preciso me colocar numa perspectiva que me permita vê-la como objeto, e daí já não sou mais um personagem ou um participante da coisa, mas um observador superior; consegui uma posição acima da confusão, de onde posso ver o que está acontecendo e julgar o sentido geral das coisas. Assim como para opinar numa briga entre marido e mulher é preciso que você não seja nenhum deles. Quando um casal com um problema vai procurar um conselheiro matrimonial ou um psicólogo, está supondo que ele tem um ponto de vista superior a cada um deles.

No que consiste esse ponto de vista superior? Consiste em que se tenha um critério de julgamento que se sobrepõe às paixões e interesses em jogo naquele momento. Supõe-se, portanto, que você tenha um conhecimento que o restante da sociedade não tem. Dito de outro modo, você julga a situação real à luz de uma norma, mas esta norma só será válida se não tiver sido criada pela própria situação. Vamos voltar ao exemplo do marido e mulher: a mulher está acusando o sujeito de não trazer dinheiro suficiente para casa e ele a está acusando de não desempenhar as tarefas domésticas a contento. Qual a norma que vai servir para julgar? Pode ser a opinião de um ou a opinião do outro? Não, a norma tem que ser uma terceira coisa que sirva para arbitrar as duas ao mesmo tempo. Ou seja, você tem que ter uma medida do justo e do injusto e esta medida não pode ter sido criada nem pela opinião de um, nem pela opinião do outro. No caso, trata-se de uma proporção entre direitos e deveres. É só o conhecimento dessa norma ou dessa proporção que lhe permitiria julgar a situação e ver qual é a cota de razão e de desrazão que haveria nessa discussão. O problema é: de onde vamos tirar essa norma. Se ela foi criada pela própria situação, apenas expressa um dos lados em conflito. Então ela tem que ser transcendente à situação. Assim como no julgamento de um processo criminal, o sujeito matou outro, roubou outro, aplicou estelionato: o tribunal vai julgar aquela situação à luz de uma lei que transcende a situação.

Se pegarmos nossa sociedade como um todo ou a parcela da história que conhecemos, todos temos opinião a respeito, mas raramente nos preocupamos com o problema da norma. Se digo que a sociedade é injusta, é injusta em face de que norma? Qual é a norma com que estou julgando? Ou tenho uma norma que seja efetivamente superior ao horizonte de consciência da discussão pública, ou não posso julgar. Ou, então, estou tomando partido dentro de um conflito e em seguida sou eu mesmo um membro desse conflito. Estou raciocinando, portanto, em circuito fechado, como um cachorro que persegue o próprio rabo.

Existem situações, no entanto, onde aparece um sujeito que tem um conhecimento que a sociedade não tem. A história de Moisés na Bíblia, por exemplo: Moisés faz uma crítica da situação, a situação do cativeiro dos judeus no Egito. Ele acha que a situação está ruim por isso, por isso e por isso. E se lhe dissessem que a situação é assim desde que o mundo é mundo? que sempre foi assim e sempre será assim? Que sentido faz você criticar uma coisa que não tem remédio de maneira alguma? A crítica estaria anulada. Mas Moisés podia criticar, porque ele tinha conhecimento do que veio antes e do que viria depois – o conhecimento profético. Tinha conhecimento de que seu povo podia ser retirado dali e ir para um outro lugar onde teria uma vida melhor. E de fato fez isto. Como sabemos que Moisés sabia algo que os egípcios não sabiam? Porque provou que sabia. Com a travessia do Mar Vermelho, ele provou que enxergava a situação dos judeus no Egito desde um ponto de vista superior ao da situação real. Sabia que podia fazer e como fazer e, de certo modo, conhecia o futuro. Esse futuro era invisível para os participantes da situação. Era invisível tanto para os egípcios quanto para os judeus. Eles demoraram quarenta anos para ouvir o que aquele homem tinha a dizer. Esse é o protótipo da crítica social válida.

Outra crítica social válida também é feita por Sócrates. Sócrates critica uma situação estabelecida à qual ele não se considera superior. Quando Sócrates é condenado por um tribunal ateniense, se dirige a esse tribunal do ponto de vista de um homem que já morreu. Ele praticamente se considera morto e diz: olha, realmente não sei se vocês ao me condenarem me fizeram um malefício ou um benefício, porque não sei exatamente o que é a morte; tenho a impressão de que talvez seja melhor depois, que talvez vocês tenham me feito um benefício. A consciência do desconhecimento da morte é uma norma válida para o julgamento de qualquer situação humana. Todos sabemos que vamos morrer; e todos sabemos que não sabemos precisamente o que é a morte, o que se desenrola nela e depois dela. Isto nos dá uma base firme para julgar todas as situações humanas.

Me lembro de uma conferência brilhante que o filósofo espanhol Julian Marías fez no Brasil, na época em que a junta militar havia instituído a pena de morte. Durante a conferência lhe perguntaram se era a favor ou contra a pena de morte e ele disse: “sou contra por um simples motivo: não sei o que é a morte e não tenho o direito de condenar um sujeito a uma coisa que eu não sei o que é; sei o que é prisão, trabalhos forçados, mas morte, eu não sei o que é e esses senhores também não.” Então, na hora em que o indivíduo emite este julgamento, coloca-se não apenas acima da discussão pública, mas quase que infinitamente acima dela, porque a discussão pública é feita em termos de posições relativas, de posições que podem ter sua validade maior ou menor numa ou noutra situação. Mas, de repente, chega o filósofo e diz algo que independe de toda a discussão. No meio das relatividades, ele entra com o absoluto. O absoluto é este: não sei o que é morte e vocês também não sabem, e ponto final. Nenhum de nós morreu para contar como é. Isto é o senso da medida. Em certos momentos, portanto, a consciência pode se colocar infinitamente acima das questões públicas e encará-las desde uma medida supeiror que lhe permite um julgamento justo.

Infelizmente isso não acontece sempre. Freqüentemente nos debatemos em questões onde nos falta a medida e não a encontramos. A única coisa que sabemos é que esse senso da medida universal pode ser desenvolvido nas pessoas pela consciência da dimensão histórica, pela consciência dos sucessivos patamares de consciência alcançados ao longo do tempo. Porém, o indivíduo que não recebeu a informação sobre este caso de Moisés, ou simplesmente não meditou sobre o assunto, simplesmente não tem idéia de que uma certa situação pode ser julgada em face de uma possibilidade concreta de mudá-la. Note bem, não é um desejo de mudá-la, mas uma possibilidade concreta conhecida de antemão. No caso, Moisés sabia porque Deus contou para ele. Podia ter sabido de outra maneira. Mas ele não achava que a situação dos judeus na época era ruim apenas porque sim, mas era ruim em face de um poder do qual Deus tinha investido esse povo antes e em face de uma promessa que Ele tinha feito para o futuro. Então, encaixando aquela situação numa sucessão histórica perfeitamente conhecida, podemos dizer que Moisés podia julgar que aquela prisão era ruim, porque ele sabia onde estava a porta.

Agora, se estudarmos a história do século XX, veremos uma infinidade de revoluções, golpes de estado, mudanças políticas feitas por pessoas que criticavam a situação e que diziam poder mudá-la para melhor e que produziram situações infinitamente piores. Na década de oitenta, por exemplo, um cidadão soviético consumia menos carne do que um súdito do czar em 1913. Isto significa o seguinte: Lenin e Trotsky não sabiam onde estava a porta; propuseram uma mudança não porque tinham perfeito conhecimento da possibilidade concreta de realizá-la, mas apenas porque queriam. É o caso de a gente dizer que este tipo de crítica social não é legítima: você está criticando uma situação mas não é melhor do que a situação, é apenas um componente dela; ou seja, a sua crítica não é uma crítica, é apenas uma queixa, é um sintoma da própria situação, e portanto não podemos confiar em você para resolver a situação. Na hora em que você passa por um sofrimento e diz ‘ai’, o ‘ai’ não é uma crítica válida da situação, é apenas uma expressão dela. Tanto que dizer ‘ai’ não vai curar você de maneira alguma.

Ao longo de todo o século XX, vemos que a crítica social, em sua quase totalidade, nunca passou de expressão ou de sintoma da situação. Raramente se viu um empreendimento vitorioso de transformação da sociedade com base na crítica, que produzisse exatamente o resultado prometido. Isto significa que, desde o tempo de Moisés ou Sócrates, a nossa capacidade de crítica social diminui formidavelmente. Simplesmente não entendemos a sociedade, não gostamos da sociedade; gostaríamos de mudá-la, mas não chegamos a perceber que nossa revolta e nosso próprio desejo de mudar são apenas sintomas da própria situação social e, portanto, impotentes não somente para mudá-la, mas até para fazer uma crítica objetivamente justa.

São essas constatações que nos colocam a necessidade de conquista de um patamar ou de uma medida justa e universal, em função da qual a crítica possa ser feita. Todo ser humano tem essa possibilidade e, de certo modo, tem esse direito porque embora seja, sob muitos aspectos, um produto, um efeito ou uma criação de sua sociedade, há algo nele que transcende a sociedade. Há no mínimo a estrutura biológica. Não houve nenhuma sociedade que mudasse substancialmente a estrutura anatomo-fisiológica do ser humano. Esta é uma constante. Portanto cada um de nós pode dizer que é fruto da sociedade brasileira? Bom, sou fruto da sociedade brasileira, mas sou membro da espécie humana e, como membro da espécie humana, existem em mim fatores estruturais constantes que já existiam antes de o Brasil existir e que vão continuar existindo depois que o Brasil acabar. Portanto, como membro dessa espécie animal chamada espécie humana, tenho em meu próprio corpo um dado que transcende a situação histórica em que vivo. É claro que não é só a estrutura anatomo-fisiológica do homem que transcende a situação histórica, existem muitos outros aspectos.

Ao longo da história humana, muitos desses elementos estruturais, constantes e universais foram se revelando à nossa consciência. E foram registrados em obras, depoimentos e atos desses seres humanos. A aquisição desse legado é o que é propriamente o que chamaríamos hoje de educação liberal, que, nesse sentido, é a formação do cidadão consciente e portanto capaz de julgar não só fatos da sociedade, mas a própria sociedade como um todo.

Formar um homem desses não é fácil. As situações vão se tornando cada vez mais complexas e, de repente, vêem-se emergir no cenário da história situações absolutamente novas que, apesar de todos os dados que acumulou em toda a sua educação, você não é capaz de compreender. Surge, por exemplo, um fenômeno como o totalitarismo moderno, como nazismo, fascismo e comunismo – fenômenos supremamente esquisitos, que tudo o que a humanidade ocidental sabia até o século XIX não bastava para explicar.

A idéia de que tratados internacionais fossem feitos não para ser cumpridos, mas apenas para ser usados como armadilhas para os inimigos: isso foi uma novidade na história. Até o século XIX todo mundo acreditava que tratados eram para ser cumpridos. De repente aparece um estado, a União Soviética, que acha que não é bem assim, que não é importante cumprir os tratados, mas sim apenas assiná-los. De um momento para outro, os tratados se transformam em instrumentos não para limitar a ação dos contratantes mas, ao contrário, para dar mais possibilidades de ação contra os demais contratantes. Hitler levou essa idéia a um nível alucinante: cada compromisso que Hitler assinou foi assinado com a finalidade específica de não ser cumprido. Nos acostumamos tanto com isso que hoje achamos natural.

Certas possibilidades de uso de violência assassina contra países inimigos não entraram na cabeça humana antes do século XX. A guerra sem declaração de guerra é um exemplo: você está em guerra com outro país mas não sabe; de repente soltam uma bomba no seu território. Isso foi mais uma novidade do século XX. Outro exemplo é o ataque sistemático às populações civis: não existe mais a noção de campo de batalha. O que é campo de batalha? É o lugar onde você vai para fazer a guerra. No século XX isso desapareceu. Não há mais campo de batalha, há guerra onde você estiver.

Quando começaram a suceder, esses fatos deixaram as pessoas desorientadas; não havia como explicar. Vemos, portanto, o avanço do totalitarismo no século XX e a impotência da inteligência humana para explicar esse fenômeno na época, já que somente hoje temos uma compreensão mais adequada do fenômeno totalitário. Notamos, então, que às vezes acontecem coisas novas e que mesmo a acumulação de todo o legado desses depósitos de consciência adquiridos ao longo dos séculos não é suficiente para nos situar. Seria necessária uma outra abordagem e as primeiras tentativas de diagnóstico falham, porque estão comprometidas de certo modo, inconscientemente, com o mesmo circuito produtor de idéias que geraram o fenômeno. Você tenta investigar o fenômeno, mas faz parte dele; tenta diagnosticar a doença, mas também está doente. Um exemplo característico é o livro da Hannah Arendt sobre o totalitarismo. Ela investiga, investiga e pega a pista certa: diz que os fenômenos totalitários não querem criar uma nova sociedade, querem modificar a natureza humana. A pista é exatamente esta. Só que, mais adiante, escorrega e diz que acredita na possibilidade de mudar a natureza humana, apenas não por meios violentos. E com isso aí a descoberta influencia a visão de quem descobriu, porque se é possível para o Estado mudar a natureza humana por meios não-violentos então, prestem bem atenção, a diferença específica do totalitarismo deixa de ser o projeto de mudar a natureza humana e passa a ser apenas o emprego da violência. A especificidade do fenômeno, portanto, se perdeu. Assim, Arendt não consegue levar o diagnóstico até o fim. Mas ela escreveu o livro no calor do momento e não podia enxergar a situação com toda a clareza; foi um dos primeiros diagnósticos abrangentes que se tentou. Se investigasse mais um pouco veria que, ao longo dos séculos, não surgiu nenhuma idéia ou doutrina política que visasse a mudar a natureza humana. Todas tomavam a natureza humana, fosse qual fosse, como pressuposto. Consideravam-na fenômeno de ordem natural, cósmica, biológica, no qual a sociedade não pode mexer.

Foi só no século XX que se acreditou que, através da formação de um certo Estado, leis, burocracia, se poderia mexer na própria natureza humana. É a diferença que existe entre você ser um criador de animais, como vacas e galinhas, ou você transformá-los em outra coisa: a idéia de transformá-los em outra coisa rigorosamente nunca tinha aparecido na mente humana até o século XX.

Hoje, passados cem anos, temos uma compreensão um pouco maior do fenômeno totalitário, mas para isso foi necessário remanejar todo o legado de conhecimentos e repensar a coisa sob mil aspectos. Embora não seja sempre infalível, esse processo de recuperação do legado é a única esperança que temos de entender a nossa situação existencial. Não existe nenhum outro meio. Aliás, existe um outro meio; existe o que a Bíblia chama de sabedoria infusa: Deus e os anjos infundem em você, sem que saiba. Vai dormir sem saber e acorda sabendo. Tirando esta hipótese, a única outra hipótese que existe é a da acumulação do legado da consciência humana ao longo dos séculos. A finalidade da educação liberal é exatamente esta. E isto é simples: consiste na aquisição dos documentos necessários, no estudo desses documentos e na revivescência das experiências cognitivas e existenciais que estão registradas nesses documentos. Ou seja, você vai ler a Bíblia, Platão ou Aristóteles, não no sentido apenas de adquirir informação, mas no sentido de tornar suas as experiências cognitivas que se registraram nesses documentos.

Por exemplo, Aristóteles insiste muito numa coisa que chama maturidade. Maturidade não no sentido fisiológico, mas no sentido intelectual. O homem maduro é o homem que teve certas experiências e aprendeu com elas. Uma dessas experiências é a plena experiência da norma, da existência da norma. A maior parte das pessoas simplesmente não teve isso; vê as coisas acontecerem e as opiniões se entrechocarem, mas nunca chegou a experienciar as famosas leis não-escritas de que fala a tragédia grega. Por exemplo, em Os suplicantes de Sófocles, dois jovens gregos fogem do Egito, onde o rei queria obrigá-los a um casamento que não desejavam, e vão parar numa ilha. Nesta ilha pedem asilo ao rei local. O rei fica num dilema porque, por um lado, havia uma tradição de dar asilo a quem pede e, por outro, dando asilo ele se arriscava a uma guerra contra o Egito. Ele imediatamente argumenta para os jovens: ” na legislação egípcia não há nada que impeça o rei de obrigá-los a casar com quem vocês não querem, portanto o rei do Egito não cometeu nenhuma ilegalidade” . E eles respondem: ” é, mas acima das leis do Egito há as leis não-escritas, há as leis divinas. A lei divina diz que ninguém pode ser obrigado a casar contra sua vontade.” O rei se toca com aquilo e, em seguida, tem outro problema: o regime na ilha era constitucional e ele não era monarca absoluto. Tem, portanto, que levar o problema à assembléia. Reúne, então, a assembléia e, por meio de um longo e tocante discurso, consegue persuadir a assembléia a aceitar o risco da guerra, para não infringir as leis não-escritas.

A tragédia grega era um acontecimento cívico, não apenas um espetáculo teatral. Era um empreendimento promovido pelo governo para a educação dos cidadãos. Nessa tragédia e em muitas outras, qual é a mensagem transmitida? A idéia de que um país é obrigado às vezes a se colocar em risco para não infringir as leis não-escritas. Ou seja, esse governo argumentava contra si mesmo, contra seu interesse, e educava as pessoas assim. É claro que o momento da história em que aparece a tragédia grega é um momento excepcionalmente luminoso na história da consciência humana. Há inúmeras tragédias gregas onde se concede razão ao inimigo da pátria, o troiano. Toda a educação recebida na escola, os discursos políticos etc., induziam as pessoas ao patriotismo e a tragédia entrava como elemento compensador, para que as pessoas não tomassem em sentido absoluto os valores do patriotismo, porque esses valores eram relativizados por valores mais altos. Então, quando existe uma comunidade política capaz desse nível de consciência, é evidentemente um momento luminoso da história. E o milagre grego de que falamos não pode, evidentemente, ser encarado apenas em termos de realizações estéticas ou científicas, mas sobretudo como um momento culminante na história da consciência humana.

Existem muitos outros momentos de consciência exemplar na história. Um é a história que se passa com o genro de Maomé, Ali. Um excelente orador, cujos discursos estão entre os mais belos da literatura universal, Ali foi um fracasso total como político, mas um grande guerreiro. Conta-se que, numa das batalhas, ele encurralou um inimigo, conseguiu desarmá-lo e encostou a espada em sua garganta. O inimigo então o xingou; ele ficou perplexo, colocou a espada na bainha e foi embora. Em seguida, o inimigo diz: ” você está com a espada na minha garganta, me derrotou, e só porque o xingo… venci você com um xingamento?” Ele diz: ” não, não é isso, é que fiquei com raiva de você, e se o matasse, eu não seria mais um guerreiro, seria um assassino, porque o teria matado por raiva pessoal e não tenho nada contra você. Isso aqui é guerra..” Esta ética guerreira durou séculos. Até o século XIX ainda havia amostras de um espírito de luta cavalheiresco que predominava na guerra.

Há outro episódio famoso que se passa entre príncipes muçulmanos e espanhóis. Uma batalha estava prestes a ocorrer em determinado lugar e os muçulmanos erraram o caminho. Em vez de parar no lugar da batalha, foram parar no castelo do príncipe espanhol que iria combatê-los. Só que o castelo estava vazio, só estavam lá a rainha e suas aias, mucamas e crianças. Conta-se que a rainha saiu do castelo e passou-lhes um sabão: “não têm vergonha de encurralar mulheres e crianças assim?” Eles pediram desculpas e foram embora.

Se comparamos isso com o panorama do século XX, onde vemos, não massas de população, mas elites intelectuais capazes de se fecharem completamente à metade da realidade, para encarar somente a metade que lhes interessa, então, de fato, nossa comunidade política está infinitamente abaixo do nível de consciência daquelas comunidades.

Imaginem o que aconteceria hoje em qualquer país do mundo. O que aconteceria com o sujeito que dissesse que não ocupou a cidade porque só havia mulheres e crianças? Iria para a corte marcial. Seu dever militar se sobrepõe ostensivamente às normas não-escritas, as quais não são sequer levadas em consideração. Elas simplesmente não existem mais. O que há hoje, não é só um fenômeno de imoralidade, mas um fenômeno de baixo nível de consciência, porque o indivíduo acredita que aquele interesse militar imediato é real e que a norma não-escrita é irreal. Ele infringe a norma não-escrita, porque acredita que ela não existe, que é apenas invenção, produto cultural, crença. Só conhece a norma não-escrita, por referência escrita ou oral, ouviu falar que existe, mas não tem experiência pessoal dela. Não há nem a situação do indivíduo que, através da educação, chegou a perceber que essas normas não-escritas efetivamente existem.

Dike é a idéia grega justiça cósmica; é uma experiência que se pode fazer, não uma invenção cultural; uma experiência que requer certo nível de maturidade. Então, quando Aristóteles enfatiza que somente o homem maduro pode guiar a comunidade, está se referindo aos homens que conseguiram absorver um certo número de experiências decisivas, que colocam a sua alma um pouquinho acima do nível de consciência de sua comunidade. Não quer dizer que precisem ser santos ou profetas ou heróis, mas são simplesmente pessoas que têm uma amplitude anímica um pouco mais vasta, porque chegaram a ter certas vivências. Quando não temos isso e, não obstante, temos uma formação universitária, um diploma, e as julgamos as situações evidentemente pelas experiências que temos. No começo do século XX, houve uma série de antropólogos que saíram pelo mundo fazendo recenseamentos dos usos e costumes dos vários lugares. Quando notaram que aquilo que era proibido num lugar era obrigatório no outro, tiraram a conclusão de que todas as normas eram culturalmente relativas. Isto foi especialmente divulgado no mundo por Margareth Mead e Jules Benedict. Eles fizeram um sucesso tão grande que, hoje em dia, essa convicção do relativismo antropológico é tida como um dogma: todas as morais são culturalmente relativas. É no mínimo curioso que nunca ninguém tenha feito a seguinte pergunta: me aponte uma sociedade onde o homicídio seja legítimo? Ou, me aponte uma sociedade onde o casamento seja proibido. Ou, me aponte uma sociedade onde qualquer forma de conhecimento seja proibido. Simplesmente não existem tais sociedades. Isso quer dizer que, por baixo da variação acidental de normas aqui ou ali, existe uma infinidade de normas universais que nunca foram contestadas por civilização ou cultura alguma. A lista das regras e normas permanente é infinitamente maior do que a das normas variáveis. Então isso quer dizer que esses antropólogos, baseados em sua pequena experiência acidental de ter conhecido uma ou duas comunidades, generalizaram para a espécie humana, de modo que a visão total da humanidade fica reduzida ao tamanhinho da amplitude de consciência de dois ou três antropólogos, que viram meia dúzia de coisas. Nas ciências humanas, isso se tornou norma no século XX: o indivíduo proclama que tudo o que ele não viu não existe e tudo o que está fora de seu círculo de experiência só pode existir como invenção, como crença ou como criação cultural e portanto não tem importância nenhuma.

Uma educação baseada nisso seria uma deseducação, porque ela está de cara bloqueando a possibilidade de certas experiências.

A humanidade toda deixou documentos de pessoas que conversaram com Deus. Eles não existiram? São milhões e milhões de documentos, falei com Deus e obtive tal resposta. Falar com Deus e obter tal resposta é uma experiência. É algo que acontece ou não acontece. Não é uma teoria evidentemente, é um fato, ou ele é fictício ou ele é real. Algum antropólogo de alguma universidade já convidou alguém para fazer essa experiência e ver o que acontece? Alguém ensinou a você: para falar com Deus é assim e assado, a coisa tem uma lógica, requer um certo tempo, tem um vai-e-vem, tem um feedback? Não, porque eles também não sabem. Dizem que houve pessoas que acreditaram em Deus, Deus é uma crença e nada sabemos a respeito. Como nada sabemos a respeito? E esses depoimentos todos? Vamos fazer de conta que nada disso existiu? Toda essa gente estava no mundo da lua e você foi o primeiro que descobriu a realidade? Construíram-se civilizações, legislações, sociedades, vidas humanas, tudo em cima disso, e era ficção? Prefiro apostar na hipótese contrária de que esse pessoal todo sabia do que estava falando. Ou seja, algo nos aconteceu e se não temos o mínimo acesso a esse tipo de vivência então nada sabemos a respeito, e não é uma atitude científica rotular de crença o que você não sabe o que é.

Durante quanto tempo você é capaz de manter um fio de raciocínio dentro de si, sem se dispersar completamente? Vamos chamar de raciocínio, o encadeamento de silogismos – premissa maior, premissa menor, conclusão. Quantos silogismos em linha você é capaz de fazer dentro de si, sem se dispersar e perder o fio da meada? Um, dois e olhe lá. Isto quer dizer que a dispersão é o seu estado habitual. Compare-se, por exemplo, a um praticante de uma mística ascética qualquer, que aprende a se concentrar numa palavra ou um nome que designa uma qualidade divina durante, digamos, dezesseis horas seguidas; que aprende a afastar qualquer outro pensamento de sua mente. Você acha realmente que a visão que o homem disperso tem pode ser idêntica à do homem concentrado? É claro que não. Isto quer dizer que, em outras épocas, houve homens muito concentrados, capazes de limpidez de pensamento, de auto-consciência – e logo explico o que quero dizer com essa auto-consciência – e que tiveram acesso a certas experiências e deixaram testemunhos delas, e esses documentos são preciosos. Mais tarde, aparece um sujeito sem concentração nenhuma, uma alma totalmente dispersa, totalmente fragmentada, com auto-conhecimento precaríssimo, dizendo que tudo são crenças. Ora, faça-me o favor!, isto é a anti-educação. Se queremos entender esses documentos, temos que criar a condição psicológica para refazer as experiências que estão subentendidas neles.

Alguém já ouviu falar da prece perpétua? É uma técnica da igreja ortodoxa. Existe um livro extraordinário sobre isso chamado “Relatos de um peregrino russo” – uma abreviatura de milhares de escritos dos místicos ortodoxos ao longo do tempo. O peregrino russo é um homem simples que um dia ouve na missa o padre dizer a sentença de Jesus: orai sem cessar. Ele diz: ” como orai sem cessar? Ninguém pode orar sem cessar, a gente reza e depois vai fazer outra coisa.” Sai então procurando, pergunta para um, pergunta para outro, até que encontra um monge que diz: ” você vai rezar junto com o ritmo de sua respiração, vai dizer Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim; e vai dizer isso com plena intenção; você só quer uma coisa na vida: que Jesus tenha pena de você. Vai esquecer todo o resto e vai fazer isso, vinte e quatro horas por dia, pelo resto de sua vida.” Talvez, se conseguir prestar atenção na piedade divina, com um pouco dessa concentração, acabe percebendo que ela existe. Agora, pelo simples fato de ter lido sobre esse negócio de piedade divina, você diz que isso é crença? Mas, como? Você conhece a coisa, sabe do fenômeno que está sendo falado, ou sabe somente as palavras?

Assim como esta prática existem milhares no mundo – budistas, judaicas, islâmicas, hinduístas e outras. Tudo isto é totalmente desconhecido do ensino moderno. O ensino se tornou uma arte de falar sobre coisas que se desconhece completamente. Não estou me referindo ao ensino religioso. Se pedir ao padre, ao rabino, ou ao aiatolá, ele vai ensinar a você algumas coisas da religião dele, o formulário de crenças dele, e vai dizer que todas as outras não interessam. Ele também já não está falando de experiências, está falando de uma crença determinada. Não é disso que estou falando. Estou falando de realidades e não de formulários de dogmas que dizem que isso está certo e aquilo está errado. Do mesmo modo, as experiências subjacentes à filosofia de Platão ou à filosofia de Aristóteles também são condições indispensáveis para que você as compreenda. Quando Platão falava na Academia, ou Aristóteles no Liceu, eram literalmente homens maduros falando com outros homens maduros. Não era uma discussão entre almas dispersas.

Todos aqui já sentiram, por exemplo, acessos de tristeza ou de desespero que não sabiam de onde vieram. Todo mundo já teve isso. Ora, se existe algo na sua própria alma que você não sabe de onde veio, existe um conteúdo que é estranho a você. Ou seja, a sua alma é tão conhecida sua, quanto uma cidade onde acaba de desembarcar pela primeira vez; você está perdido dentro de você. Sua alma é o instrumento pelo qual você conhece o mundo, mas se ela própria é tão desconhecida assim, quantos metros espera avançar no caminho do conhecimento, antes de ter limpado as lentes com que vai olhar este mundo? Uma certa limpidez da alma, portanto, um certo conhecimento do indivíduo por ele mesmo, de modo que ele saiba de onde vêm suas emoções, de onde vêm seus desejos e o que o compõe efetivamente por dentro, são condições sine qua non da verdadeira educação. Não existe a educação sem o efetivo auto-conhecimento. Mas, se num curso de filosofia universitário, você levantar este problema, dirão: “se quer auto-conhecimento, que vá procurar um padre ou um psicanalista, que nós estamos aqui para estudar filosofia.” Que raio de filosofia é esta que não se preocupa nem em saber se a alma do sujeito está habilitada para aquilo? Que raio de ensino é este que não cumpre a condição da maturidade que o próprio Aristóteles e o próprio Platão colocam como condição básica para o estudo da filosofia? Isto quer dizer que, ao longo dos tempos, a noção de educação foi sendo perdida. Ela é conservada apenas em núcleos muito limitados; há grupos de pessoas que sabem e continuam cultivando aquilo, como sempre. Mas o ensino de massas, público e privado, não está dando às pessoas senão um grosseiro simulacro de educação. Não cabe a mim julgá-lo ou modificá-lo; não sou ministro da educação, nem quero ser. Se me pedissem um projeto de educação nacional, me esconderia debaixo da cama e pedir socorro à minha mãe. Esse problema está acima da minha capacidade, como está acima da capacidade do ministro da educação ou de qualquer outro que ocupe o lugar dele.

A educação requer sobretudo essa situação: há o professor e os alunos. Querem um plano de educação para vocês? Esse, eu sou capaz de inventar, dentro de um universo operacional abarcável. O professor conhece seus alunos, sabe até onde pode levá-los e sabe o que pode fazer, isto é o máximo. A idéia de um plano de educação que abarque toda uma nação, isto para não falar em toda a humanidade, como faz a ONU hoje, é evidentemente simulacro, não existe. Os planos atuais de educação que estão sendo impostos no mundo inteiro pela ONU, que é para a formação do cidadãozinho perfeito da Nova Ordem Mundial, foram inventados na década de cinqüenta por um sujeito chamado Robert Muller, que era discípulo de uma pseudo-esoterista chamada Alice Bailey, uma mulher completamente maluca, da doutrina dos raios cósmicos, que conversava com extra-terrestres; esse cara pega as obras de Alice Bailey, adapta para a formação de um plano educacional mundial e este plano está sendo implantado. Evidentemente isto é uma caricatura grotesca. Quando falo dessas coisas, estou falando de mística verdadeira, coisas que foram acumuladas ao longo de cinco mil anos de judaísmo, dois mil anos de cristianismo, mil e quinhentos anos de islamismo, quase dez mil anos de hinduísmo, não de uma doida americana que conversou com extra-terrestres. Então, o sujeito que aprendeu com esta visionária de extra-terrestres pode fazer um plano para educar o mundo e eu, que aprendi coisa melhor, só tenho um plano para educar vocês. É porque sei o que é educação e esse sujeito evidentemente não sabe. Sei quanto é complexa a educação, o quanto ela requer de contato direto e comprometimento total do professor com seus alunos, porque se trata não apenas de transmitir certos conhecimentos, mas de elevar o indivíduo para a possibilidade de certas experiências interiores, que darão poder à sua inteligência e poder à sua capacidade cognitiva. Educar é transmitir um poder. E esse poder, não posso injetar em você; posso dizer mais ou menos onde ele está e você pode procurar, posso dizer como você pode abrir a caixa e pegar o que é seu. É a partir desse enriquecimento da experiência interior e a partir da idéia de concentração, de continuidade da consciência, que o indivíduo se abre à possibilidade de compreensão desses documentos deixados ao longo das eras. Informar simplesmente a existência disso já é fazer alguma coisa. Mas, além de informar, podemos de vez em quando dar alguma dica de como o indivíduo se torna capacitado para pegar esse legado.

Durante muito tempo, o ensino ocidental esteve consciente disso. Se lemos os escritos dos grandes educadores da idade média como Hugo de São Vitor, Santo Alberto Magno, vemos que o começo das universidades preservou ainda a consciência disso aqui. Por volta do século XV, mais ou menos, a universidade se torna objeto de disputa entre Vaticano e estados nacionais. A partir daí, as universidades vão se tornando, cada vez mais, meios para fins que não são os de seus estudantes. Ainda pertenço à escola antiga: acredito que a finalidade da educação é o estudante, é o indivíduo humano, um cara real. O que ele vai fazer com isso depois simplesmente não é da minha conta. Acho um assinte a promessa de educação para o desenvolvimento, porque estará pressuposto que se vai educar o sujeito para fazer determinada coisa, e que essa coisa vai ter um resultado global x. Ou seja, programa-se a vida inteira do cara. Educação para a paz, educação para o desenvolvimento, educação para a cidadania, tudo isto, no fim das contas, é educar o indivíduo para uma finalidade que não é necessariamente a dele. Então isto não é educação, é programação. A finalidade da educação, tal como entendo e tal como foi entendida ao longo de todos os tempos, é a maturidade. O que o homem maduro vai fazer com o que ensinei é problema exclusivamente dele, ele vai exercer a maturidade dele, não a minha. Quando ele tiver um problema na mão a situação será outra, os dados serão outros e não existe nenhuma possibilidade de um professor antever tudo isso. Isso significa que, uma vez conquistada a maturidade, a finalidade da educação está terminada, acabou, seu educador tem que ir embora para casa. E você se transforma num educador, se quiser, ou vai fazer outra coisa, pois não é só na educação que homens maduros são necessários.

Mas essa total desatenção ao fenômeno da maturidade, aliada a uma atenção excessiva aos usos que a pessoa supostamente vai fazer da educação, faz com que praticamente toda a educação do século XX faça do aluno um meio e nunca a finalidade. Ou seja, a educação se torna serva da política, serva da economia, serva da guerra, serva de qualquer outra coisa e o aluno por sua vez se torna servo desse processo. Acho isso uma imoralidade. Não gostaria de praticar isso. A possibilidade de uma educação que não se encaixe nisso é evidentemente aberta, dentro do próprio sistema democrático, pela possibilidade da educação livre. É claro que a democracia, como qualquer outro regime, também programa as pessoas para serem servas de um plano já dado de antemão, mas ela tem uma vantagem: não cerca o indivíduo por todos os lados, deixa aberta algumas possibilidades. A democracia induz o indivíduo, mas não o obriga completamente. O problema é que geralmente as pessoas não sabem das possibilidades que a democracia deixa em aberto. Ou não sabem, ou as desprezam. As possibilidades de auto-educação e de educação livre são coisas preciosas que existem no regime democrático, das quais temos que tirar proveito de algum modo.

A idéia mesma de que essa proposta educacional se encaixasse de algum modo dentro do esquema educacional vigente é contraditória, afinal de contas o sistema educacional vigente tem a sua finalidade também, a formação profissional e o adestramento das pessoas para a mecânica da democracia. Mas é claro que a educação de massas – pública ou privada – visa a formar massas e não indivíduos, o que quer dizer que se trocarmos todos os alunos, não faz diferença alguma. Mas na educação verdadeira, cada indivíduo é precioso. E, até por isso, pode existir na educação efetiva o fenômeno do aborto pedagógico. Eu mesmo já tive uma boa coleção de abortos pedagógicos, em que vi que, num determinado momento, o florescimento da consciência é totalmente obstaculizado pelo meio. O meio coloca no indivíduo certos conflitos que, ou o paralisam, ou o fazem até recuar. O meio social no qual estamos trabalhando não é inteiramente hostil à educação: deixa uma certa margem em aberto. Mas a capacidade de desestímulo que o meio brasileiro tem para a educação é absolutamente fantástica. A curiosidade é desestimulada e o simples fato de o sujeito querer saber alguma coisa não é considerado normal;

Outro dia estava conversando com meu irmão sobre como, quando pequeno, ele gostava de fazer rádios de pilha. Gostava de eletrotécnica. Inventou isso sozinho, da cabeça dele, foi tentar fazer e aprendeu. E todas as pessoas em torno achavam aquilo muito esquisito e diziam: “por que você está mexendo com isso? Tem que se preparar para ganhar dinheiro.”Em muitos meios, não necessariamente nos mais pobres, é assim até hoje.

Vamos pensar na idéia de que o máximo de realismo que se pode ter na vida é pensar apenas em ganhar dinheiro. Ótimo, você se dedica a algo apenas para ganhar dinheiro. Vamos supor que você fabrique copos, mas não porque goste e sim para ganhar dinheiro. No dia seguinte pega o dinheiro que ganhou com os copos e vai comprar água mineral. Mas acontece que o sujeito que abriu a mina e engarrafou a água também fez para ganhar dinheiro. E com o que ganhou, também vai comprar uma outra coisa que só foi feita para dar dinheiro. Então se você compra um sapato, este foi feito para quê? Não para fazer sapato, mas para ganhar dinheiro, o sapato não é finalidade, a finalidade é o dinheiro. Enfim, todas as ações do processo produtivo são exclusivamente meios, e não há uma única coisa que se possa comprar, que valha a pena ser comprada. Ninguém fez nada para que aquilo valesse. A idéia de que a atitude realista e madura na vida é pensar apenas no dinheiro esquece que é necessário que exista algo que se possa comprar com o dinheiro. Que se este algo nunca é a finalidade, é sempre secundário, é sempre sacrificado ao dinheiro. Se eu fizer um objeto ou outro, de um jeito ou de outro, e ganhar a mesma coisa que se fizesse um determinado bem feito, então para que fazer este bem feito? Você faz o seu produto mal feito, ganha seu dinheiro e vai todo contente comprar outro produto que também é mal feito. Isto é uma radical incompreensão do processo econômico. Mas isso é uma coisa que se vê no Brasil. Viajando pelo mundo, não vemos as pessoas agindo assim.

A visão negativa que temos do processo capitalista faz com que o pratiquemos de maneira negativa. Não gostamos dele e por isso o corrompemos. Se fosse socialismo, faríamos exatamente a mesma coisa.

Esse rebaixamento geral das expectativas, dos valores da vida, é um dado constante na sociedade brasileira e é um tremendo desestímulo. Faz com que haja no processo educacional muitos fenômenos de aborto, de indivíduos que vão se desenvolvendo até certo ponto e de repente têm uma crise, um pânico. Uma crise muito comum é a do indivíduo que percebe que, quando está percebendo algo, sabendo algo que os outros não sabem ou não percebem, cria-se uma dificuldade de comunicação. Por exemplo, se você é muito apegado a seu grupo de amigos de juventude, não pode se educar, porque ou você os educa a todos juntos ou vai amadurecer mais do que eles e eles vão se tornar uns chatos para você e não vão gostar mais de você. A educação tem esse preço, aquele que sabe não é facilmente compreendido pelo que não sabe. Muitas pessoas, quando constatam isso, recuam ou caem no seu processo educacional e se castram espiritualmente, para não perder amizades ou apoio familiar, que evidentemente não valem a pena.

Mas é essencial entender, para encerrar, que a definição de educação liberal é a preparação da alma para a maturidade. O homem maduro é o único que está capacitado a fazer o bem para o meio em que está. Porque o bem também tem que ser conhecido. O discernimento entre o bem e o mal não vem pronto; não adianta ter um formulário, os dez mandamentos ou ter o código civil e penal. Isto não resolve muito. O bem e o mal são uma questão de percepção, que tem que ser afinada para cada nova situação que você vive, porque costumam aparecer mesclados. Jesus disse: na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que deveríeis amar. Este é todo o problema da educação, desenvolver no indivíduo, mediante experiências culturais acumuladas, a capacidade de discernimento para que ele saiba em cada momento o que deve amar e o que deve odiar. Ninguém pode dar essa fórmula de antemão, mas a possibilidade do conhecimento existe e está consolidada em milhões de documentos. Uma educação bem conduzida pode levar o indivíduo à maturidade do verdadeiro julgamento autônomo.

Notas

1. Diretora do programa Drug Watch International.
2. Aliás, a idéia corrente, abundantemente repetida por jornalistas e intelectuais brasileiros, de que o ensino na época fosse limitado aos nobres, é talvez a mais idiota que alguém já meteu na cabeça, porque o característico da nobreza durante toda a idade média era precisamente não estudar. O estudo era considerado uma ocupação imprópria para os nobres e só própria a dois tipos de pessoas: aqueles que se dirigiam ao clero e as mulheres. Portanto as mulheres eram privilegiadas no ensino medieval. Aproximadamente 60% ou 70% do público escolar eram compostos de mulheres.
Este é um detalhe que qualquer estudioso da idade média sabe, mas que você nunca vê mencionado em parte alguma. É como se houvesse um escotoma, um ponto preto que impede as pessoas de saberem disso. Esse detalhe por si basta para derrubar toda uma visão da história, que é aquela visão de que a história transcorre de um estado de escravidão, dominação e autoritarismo para um estado de maior liberdade e democracia. Esta visão está subentendida em praticamente tudo o que se discute nesse país e em metade do mundo. E é evidente que basta um pouquinho de estudo efetivo da história para ver que as coisas realmente nunca se passaram assim. Na verdade, idéias como as modernas ditaduras e os modernos autoritarismos são coisas que, na antiguidade e na idade média, nem passariam pela cabeça de um governante. A hipótese, por exemplo, de haver um cadastro eletrônico onde estão todos registrados, onde se pode acompanhar a conduta de cada um, saber quanto o sujeito gastou, onde ele esteve e, em caso de dúvida, poder usar tudo contra ele, é uma idéia que se fosse dada a Gengis Kahn, ele acharia monstruosa. Ou seja, Gengis Kahn não pretendia ter tanto poder assim, poder que hoje em dia qualquer governante ditatorial, e até democrático, tem sobre as pessoas.
A História, portanto, ao contrário do que diz o famoso clichê, tem seguido no sentido de um crescimento da autoridade. A autoridade vai conquistando meios de ação sobre os indivíduos de que nunca antes dispôs e, ao mesmo tempo, surgem mecanismos compensadores como a liberdade de imprensa e o ensino universal. Mas, elas por elas, o autoritarismo tem ganhado a corrida.3. Mortimer Adler é autor do livro “Como ler um livro” (pegar referências).
4. Ora, não termos o direito de fazer alguma coisa não significa que não a façamos. Na prática, a mistura de procedimentos legítimos e ilegítimos é um fato do nosso dia-a-dia. A maneira mais prática e fácil de fazer prevalecer sua tese, é fazer como fizeram no debate mencionado por Mina Seinfeld, em que você desaparece com a tese do adversário e a sua, por ser a única existente, acaba prevalecendo.
 

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