Monthly archive for julho 2001

O Panopticon de Olívio Dutra

Carlos Alberto Reis Lima
Médico
dr.lima1@terra.com.br

28 de julho de 2001

No anel periférico se é totalmente visto, sem jamais ver; na torre central vê-se tudo sem jamais ser visto”

Michel Foucault, lembrando Jeremy Bentham

O Rio Grande do Sul assiste com um misto de incompreensão, medo e estupefação a uma série de constatações acerca da segurança pública. As últimas notícias veiculadas pela imprensa (jornal Zero Hora e RBS em 25/7/01) dão conta do estado de desinformação da população por falta de estatísticas oficiais por parte do governo do Estado sobre crimes perpetrados no Rio Grande do Sul nos últimos anos. A ausência de dados estatísticos que sonegam à sociedade o mísero direito de saber como, onde, quando, e de quem se proteger, faz aumentar o clima de insegurança e temor dos cidadãos. Não se conformando apenas com o discurso da “generosidade”, e da “solidariedade”, que não sai da boca do governador, a população estremece.

A imprensa já bate em alguns pontos sensíveis e vulneráveis ao revelar o discurso escapista do Secretário da Segurança e da Justiça, José Paulo Bisol, o qual protela a informação de dados estatísticos ao público sobre a criminalidade. De fato, em repetidas vezes o secretário desconversa com esta querela de estatísticas habilmente fugindo das intenções malignas que não provêm apenas da sua mente, mas que fazem parte da estratégia de poder que se arma no estado do Rio Grande do Sul e já se “espraia” para todo o país.

O motivo crucial que está por trás desta aparente demora na divulgação de dados da polícia é que ela é inconfessável, e assim ela é porque a estratégia leninista que inspira TODAS AS AÇÕES deste governo é ela mesma, inconfessável. Ela é típica das ações revolucionárias das antigas polícias secretas de Lênin a Stalin, continuando-se na odiosa polícia revolucionária Cuba, onde um em cada quatro habitantes é um informante do estado totalitário do ditador Fidel Castro. Ela é típica dos arcana imperi que fazem do segredo dos seus atos e da ocultação das informações a sua característica. Conforme Norberto Bobbio, representar é apresentar ao público. Quem se omite em informar não está representando o povo e sim ocultando uma vontade inconfessável. O segredo só é a alma do negócio na vida privada. Esta era a estratégia da Tcheká, a primeira polícia secreta de Lênin que existiu de 1917 a 1922, sendo substituída pelos “Órgãos” (OGPU), pela NKVD, MGB, e a tristemente célebre KGB. Todas elas omitiam informações a um povo já escravo. Aliás, era o próprio Estado que omitia tudo, que distorcia tudo, que via em cada esquina de Moscou um inimigo contra-revolucionário. Esta paranóia estatal se estendia a tudo e contra todos. Na defesa intransigente e patológica do socialismo sacrificavam o próprio povo. Vivia o infeliz povo russo sob o tacão de um Estado Policial.

O Brasil ainda não é este Estado, mas aqui no Sul já se deram os primeiros passos, e eles começam assim: omissão de dados, o que contraria e ignora lei de 1999 que expressamente obriga o governante a publicar em Diário Oficial as estatísticas de criminalidade; atenção policial crescente para dentro dos lares e famílias e para longe das ruas; tratamento privilegiado de criminosos, que são mostrados à sociedade como “vítimas” da situação econômica; a ausência de policiamento; e a intencional alteração das estruturas de eficiência do trabalho policial – matérias eminentemente técnicas que estão recebendo tratamento ideológico marxista-leninista. Daí ser inconcebível que um político socialista seja o  ocupante do cargo em questão, e que “pensa” movido pelo fiel cumprimento do manual revolucionário de Lênin, cujo político-policial favorito era o herói sanguinário Felix Dzjerdzinski,  chefe da igualmente sanguinária Tchecá.

O papel patético, para dizer o mínimo, do secretário Bisol, que está mais para Madre Tereza de Calcutá do que para um agente público que luta contra o crime, um exemplo de escandaloso desvio de função, ainda o impede de se igualar a Felix Dzjerdzinski. Bisol jamais sujaria as próprias mãos. Além disso, temos alguns meses até a vitória final da barbárie e isto nos separa das masmorras, da censura brutal e dos campos (GULAGs) da ditadura socialista.

E todo o resto decorre. Não admira que o jornal oficial Pravda (A Verdade(!) ), órgão máximo da imprensa comunista de Lênin a Gorbachov, só publicasse a “verdade” do órgão máximo do Partido, e deixasse de publicar tudo o mais. Mas se a nossa imprensa reluta em afrontar o monstro leninista, talvez imaginando que assim o faz por respeitar a legítima escolha popular, não faria mal em publicar ela mesma outras sábias palavras de Norberto Bobbio:

“… O poder autoritário não apenas esconde para não fazer saber quem é,e onde está, mas tende também a esconder suas reais intenções no momento em que as suas decisões  devem tornar-se públicas.”

Amaral Ferrador, RS, 28 de julho de 2001

O homem-relógio

Olavo de Carvalho

O Globo, 28 de julho de 2001

Os livros de divulgação científica para a juventude falam sempre com desprezo do “antropomorfismo” das idéias antigas acerca do cosmos. Nada mais ingênuo, parece, do que vislumbrar intenções humanas — ou divinas — nas plantas, nas pedras, nos ventos e nas galáxias. Sentado no pináculo da evolução científica, qualquer garoto de escola, baseado na autoridade de livros que nunca leu, ri das gerações que o antecederam desde o começo do mundo.

Mas o fato é que por trás de toda concepção científica do universo há sempre um esquema imaginativo subentendido, e enquanto esquema imaginativo da totalidade da natureza o antropomorfismo é infinitamente menos ingênuo do que todos aqueles que o sucederam desde o Renascimento até hoje.

Descartes e Newton concebiam o universo como um relógio. Nenhum índio seria cretino o bastante para acreditar numa coisa dessas. Mesmo um indiozinho pequenininho já sabe que a natureza é astuta e imprevisível. A hipótese de aprisioná-la numas quantas fórmulas repetíveis lhe pareceria puro charlatanismo, e ele não precisaria de mais de uns segundos para rejeitá-la in limine . Já a nossa cultíssima civilização precisou de três séculos para despertar da ilusão mecanicista. Precisamos de Planck e Heisenberg para nos provar algo que qualquer indiozinho de 6 anos nos teria contado antes deles. Não nego que a prova, em si, vale alguma coisa. Mas quantos a conhecem? Kant estava erradíssimo ao conceber a autonomia de julgamento como a fina flor da civilização moderna. O homo urbanus , na sua esmagadora maioria, acredita em Planck e Heisenberg só por ouvir dizer: não tem a independência de juízo com que o indiozinho acredita em seus próprios olhos.

O mecanicismo se impôs porque dava aos homens uma demencial ilusão de poder. “Saber é prever, prever para poder”, proclamava Comte. Se a realidade era uma máquina, bastava saber apertar os botões certos para obter os resultados desejados. Daí à “física social” e à economia planejada, foi um piscar de olhos. Uns 150 milhões de seres humanos pereceram vítimas desse experimento científico. E tudo começou com um relógio.

É verdade que a falsa imagem do conjunto, simplificando o raciocínio, permitiu que certos detalhes fossem calculados com mais precisão. Descartes conhecia os pormenores da refração óptica bem melhor que o indiozinho. Mas isto não tornava menos idiota o seu esquema geral do cosmos, nem menos devastadoras as conseqüências de uma ciência de pormenores erguida sobre um esquema imaginativo pueril.

Nada do que se diga da importância vital dos esquemas imaginativos no conhecimento será exagero. Não podemos conhecer, pela observação científica, a totalidade do real. Mas todos temos dela alguma expectativa que se traduz em imagens. É sobre estas imagens que se constrói o edifício do conhecimento racional. Toda a psicologia, de Aristóteles a Piaget, mostra que a inteligência racional não opera diretamente sobre os dados dos sentidos, mas sobre as imagens, os “fantasmas”, diziam os gregos, depositados na memória. A imaginação é a ponte entre o sensível e o inteligível. Imaginatio mediatrix , dizia o grande Hugo de S. Vítor: a imaginação é mediadora.

Por isso, todo conhecimento, toda civilização se ergue sobre um fundo imaginário. A tremenda estabilidade, a sanidade inabalável de tantas culturas primitivas dotadas de nada mais que um mínimo de saber científico deveu-se justamente à adequação entre seus esquemas imaginativos e a realidade da sua experiência vivida. Envoltos em mitos e lendas, esses homens antigos podiam nada saber de quarks e buracos negros, mas tinham um pressentimento certeiro do lugar da existência humana no cosmos e sabiam traduzi-lo em atos e palavras dotados de sentido. Há infinitamente mais sentido em falar com as plantas do que em imaginar-se engrenagem de um relógio. A concepção antropomórfica da planta é incomparavelmente mais inteligente e mais digna do que a concepção relogiomórfica do homem. Achar que uma planta é uma pessoa pode inibir um homem de matar a planta. Mas se você acha que as pessoas são relógios, nada mais lógico do que matá-las porque se recusam a funcionar como relógios. Robespierre, Lenin e Hitler nada fizeram senão tirar as conseqüências das premissas lançadas por Descartes e Newton. Viktor Frankl dizia isso: se o homem é apenas um produto industrial, não há nada de mais em jogar alguns fora no controle de qualidade. Cada vez mais acho que ele tinha razão. Auschwitz e o Gulag não são propriamente filhos da ciência, mas são filhos do esquema imaginativo imbecil e inumano que a ciência moderna criou ad hoc para poder se desenvolver.

É altamente duvidoso que mesmo os mais extraordinários progressos da técnica valham tamanha mutilação da imagem do mundo, mesmo porque nada prova que a amputação fosse estritamente necessária, que a ciência que temos, ou mesmo outra melhor, não poderia ter-se desenvolvido sem isso.

Hoje o mecanicismo está desmoralizado, morto, esquecido. Mas a imagem medieval do cosmos vivente e dotado de sentido cujo lugar ele usurpou no imaginário do homem ocidental e que já não era certamente um puro antropomorfismo, mas uma concepção muito mais fina e elaborada -— continua sepultada e proibida. E as ondas de ocultismo e bruxaria, que de tempos em tempos inundam o mundo tecnológico, não são senão o protesto neurótico de um impulso legítimo que, reprimido, ressurge sob a forma de doença. A imaginação do homem ocidental não foi sufocada pelo puro materialismo, mas por uma parceria de materialismo e ocultismo. Quando Edmund Husserl, no começo do século XX, advertiu para uma crise de racionalidade nas ciências, ele tocou no problema decisivo da nossa civilização: até que ponto um saber científico que se erigiu sobre um esquema imaginativo falso e mutilador pode conservar a dignidade de ciência em vez de tornar-se uma mitologia de segunda mão?

 

Fora do universo

Olavo de Carvalho

Época, 28 de julho de 2001

A inteligência brasileira vive num espaço separado

Nada mais característico da miséria intelectual brasileira que a reserva de mercado concedida a certos autores e a certas correntes de pensamento na economia geral das atenções universitárias. Foucault, Derrida, Lacan, Deleuze, Freud, Nietzsche, Marx, Gramsci e Heidegger estão entre os privilegiadíssimos. Devem essa posição – grosso modo, é claro – a seu prestígio de críticos radicais da civilização do Ocidente. O lado pitoresco da coisa é que tanta atenção aos críticos coexista com um total desinteresse pelo objeto criticado. É normal um intelectual brasileiro confiar piamente no diagnóstico nietzschiano da mente de Sócrates sem ter a menor vontade de saber o que o próprio Sócrates fez ou disse. Não conheço um único intelectual público que tenha concedido algum tempo ao estudo de Aristóteles, mas conheço centenas que asseguram que Aristóteles foi superado não sei onde ou quando. Quando digo que a física de Aristóteles estava mais avançada que o mecanicismo renascentista, porque antecipava o indeterminismo de Heisenberg, olham-me com aquela cara de quem viu um ET. E assim por diante. Os dados, a realidade, a consistência da civilização não interessam. Só o que interessa é sua crítica. No fim, “pensamento crítico” vira isso: confiar na opinião de terceiros, dispensando-se de um exame pessoal do assunto.

Se o assunto é cristianismo, então, a fantasia vai parar longe. Com a maior seriedade, catedráticos nos asseguram que a Igreja tem “uma concepção dualista de alma e corpo” ou que ela prega “uma ética de altruísmo”. A primeira dessas doutrinas é puro Descartes, a segunda uma criação de Auguste Comte, feita para desbancar o conceito cristão de caridade.

Entre o ambiente cultural brasileiro e a realidade histórica da civilização ergueu-se um muro de preconceitos, frases feitas, indiferença e esquecimento.

Mais assustador que a ignorância do passado, porém, é o desinteresse pelo presente. Quantas vezes, diante de públicos universitários supostamente interessados em filosofia, constatei que nunca tinham ouvido falar de Eric Voegelin, de Xavier Zubiri, de Bernard Lonergan, certamente os filósofos mais criativos da segunda metade do século XX!

Haviam parado em Derrida.

Um coágulo de marxismo-estruturalismo-psicanálise-desconstrucionismo havia obstruído definitivamente seus condutos cerebrais.

O tratamento de choque de Alan Sokal não surtiu efeito nesta parte do mundo. Imposturas Intelectuais foi bastante lido, mas só é conclusivo para quem tenha formação científica bastante para sentir a gravidade de seus argumentos. Como esse não é o caso da maioria de nosso público universitário, o livro fica com a fama de ter sido apenas uma pegadinha engenhosa.

Recomendo então dois remédios de mais fácil assimilação. O primeiro é Thinkers of the New Left, de Roger Scruton, a demonstração inequívoca da menoridade mental dos tótens acadêmicos ainda cultuados no Brasil. O segundo é Mensonge, de Malcolm Bradbury, uma devastadora sátira do desconstrucionismo. Trata da vida e das obras de Henri Mensonge, philosophe inconnu que teria sido não somente o verdadeiro criador da celebrada doutrina da “inexistência do sujeito”, mas também… o primeiro a praticá-la. E tão coerente foi esse pensador que nunca foi visto em parte alguma e só deixou dois escritos, inéditos e jamais lidos por quem quer que fosse: “Moi?” e “La fornication comme acte culturel”.

Se você tem um filho na universidade, faça uma experiência: dê-lhe os livrinhos de Scruton e Bradbury. Se depois de os ler ele continuar desinteressado de conhecer o mundo “extra muros”, você pode ter certeza: ele fará uma brilhante carreira de intelectual acadêmico. É verdade que o salário não será grande coisa, mas sempre restará a esperança de que ele chegue ao cume da profissão: a Presidência da República.