Monthly archive for fevereiro 2001

Cavalos mortos

Olavo de Carvalho

O Globo, 17 de fevereiro de 2001

Se é certo que romances, contos e peças de teatro registram algo da psicologia dos povos, nós, brasileiros, deveríamos atentar seriamente para o seguinte fato: nenhuma literatura no mundo é tão abundante de tipos insinceros e fingidos como a nossa. Praticamente a galeria inteira dos personagens de Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Arthur Azevedo, Marques Rebelo, Nelson Rodrigues e tantos outros é constituída de pequenos farsantes, fracos e sem caráter, nos quais a mentira existencial se tornou como que uma segunda natureza.

Não se trata de mentirosos conscientes, maquiavélicos, demoníacos. Não temos um Iago nem um Verkhovenski Jr. (o maligno revolucionário de “Os demônios” de Dostoiévski). São antes personalidades de pés de barro, erigidas em cima de uma falsa consciência, de um desvio do foco de atenção. Deslizam instintivamente para fora da realidade, como que por medo de se conhecer, de topar de repente com a imagem da sua própria miséria interior. Tímidas e esquivas, revestem-se incessantemente de máscaras verbais cujo comércio preenche nove décimos da sua vida de vigília. O décimo restante – quando chega à consciência – é angústia secreta, reprimida, que não ousa dizer seu nome.

Na tipologia de Lukács, que distingue entre os personagens que sofrem porque sua consciência é mais ampla que a do meio em que vivem e os que não conseguem abarcar a complexidade do meio, a literatura brasileira criou um terceiro tipo: aquele cuja consciência não está nem acima nem abaixo da realidade, mas ao lado dela, num mundo à parte todo feito de ficções retóricas e afetação histriônica. Em qualquer outra sociedade conhecida, um tipo assim estaria condenado ao isolamento. Seria um excêntrico. No Brasil, ao contrário, ele é o tipo dominante: o fingimento é geral, a fuga da realidade tornou-se instrumento de adaptação social. Mas adaptação, no caso, não significa eficiência, e sim acomodação e cumplicidade com o engano geral, produtor da geral ineficiência e do fracasso crônico, do qual em seguida se busca alívio em novas encenações, seja de revolta, seja de otimismo. Na medida em que se amolda à sociedade brasileira, a alma se afasta da realidade – e vice-versa. Ter a cabeça no mundo da lua, dar às coisas sistematicamente nomes falsos, viver num estado de permanente desconexão entre as percepções e o pensamento é o estado normal do brasileiro. O homem realista, sincero consigo próprio, direto e eficaz nas palavras e ações, é que se torna um tipo isolado, esquisito, alguém que se deve evitar a todo preço e a propósito do qual circulam cochichos à distância.

Meu amigo Andrei Pleshu, filósofo romeno, resumia: “No Brasil, ninguém tem a obrigação de ser normal.” Se fosse só isso, estaria bem. Esse é o Brasil tolerante, bonachão, que prefere o desleixo moral ao risco da severidade injusta. Mas há no fundo dele um Brasil temível, o Brasil do caos obrigatório, que rejeita a ordem, a clareza e a verdade como se fossem pecados capitais. O Brasil onde ser normal não é só desnecessário: é proibido. O Brasil onde você pode dizer que dois mais dois são cinco, sete ou nove e meio, mas, se diz que são quatro, sente nos olhares em torno o fogo do rancor ou o gelo do desprezo. Sobretudo se insiste que pode provar.

Sem ter em conta esses dados, ninguém entende uma só discussão pública no Brasil. Porque, quando um brasileiro reclama de alguma coisa, não é que ela o incomode de fato. Não é nem mesmo que ela exista. É apenas que ele gostaria de que ela existisse e fosse má, para pôr em evidência a bondade daquele que a condena. Tudo o que ele quer é dar uma impressão que, no fundo, tem pouco a ver com a coisa da qual fala. Tem a ver apenas com ele próprio, com sua necessidade de afeto, de aplauso, de aprovação. O assunto é mero pretexto para ele lançar, de maneira sutil e elegante, um apelo que em linguagem direta e franca o exporia ao ridículo.

Esse ardil psicológico funda-se em convenções provisórias, criadas de improviso pela mídia e pelo diz-que-diz, que apontam à execração do público umas tantas coisas das quais é bom falar mal. Pouco importa o que sejam. O que importa é que sua condenação forma um “topos”, um lugar-comum: um lugar no qual as pessoas se reúnem para sentir-se bem mediante discursos contra o mal.

O sujeito não sabe, por exemplo, o que são transgênicos. Mas ele viu de relance, num jornal, que é coisa ruim. Melhor que coisa ruim: é coisa de má reputação. Falando contra ela, o cidadão sente-se igual a todo mundo, rompe por instantes o isolamento que o humilha.

Essa solidariedade no fingimento é a base do convívio brasileiro, o pilar de geléia sobre o qual se constroem uma cultura e milhões de vidas. Em outros lugares as pessoas em geral discutem coisas que existem, e só as discutem porque perceberam que existem. Aqui as discussões partem de simples nomes e sinais, imediatamente associados a valores, ao ruim e ao bom, a despeito da completa ausência das coisas consideradas.

Não se lê, por exemplo, um só livro de história que não condene a “história oficial” – a história que celebra as grandezas da pátria e omite as misérias da luta de classes, do racismo, da opressão dos índios e da vil exploração machista. Em vão buscamos um exemplar da dita cuja. Não há cursos, nem livros, nem institutos de história oficial. Por toda parte, nas obras escritas, nas escolas de crianças e nas academias de gente velha, só se fala da miséria da luta de classes, do racismo, de índios oprimidos e da vil exploração machista. Há quatro décadas a história militante que se opunha à história oficial já se tornou hegemônica e ocupou o espaço todo. Se há alguma história oficial, é ela própria. Mas, sem uma história oficial para combater, ela perderia todo o encanto da rebeldia convencional, pondo à mostra os cabelos brancos que assinalam sua identidade de neo-oficialismo consagrado — balofo, repetitivo e caquético como qualquer academismo.

Direi então que ela açoita um cavalo morto? Não é bem isso. Ela própria é um cavalo morto. Um cavalo morto que, para não admitir que está morto, escoiceia outro cavalo morto. Todo o “debate brasileiro” é uma troca de coices num cemitério de cavalos.

Sugerencia a los colegas

Olavo de Carvalho

Época, 17 de febrero de 2001

¿Por qué nadie entrevista a Ladislav Bittman, el ex-espía checo que lo sabe todo sobre 1964?

Millones de niños brasileños, en las escuelas públicas, son adiestrados para repetir que el golpe militar de 1964 fue obra de Estados Unidos, como parte de un proyecto de endurecimiento general de la política exterior yanqui en América Latina.

¿Saben quién inventó esa historia y la difundió por la prensa de este país? Fue el servicio secreto de Checoslovaquia, que en aquel tiempo subvencionaba a numerosos periodistas y periódicos brasileños.

El jefe del servicio checo de desinformación, Ladislav Bittman, en persona, vino a inspeccionar las fases finales del ingenioso plan que se llamaba “Operación Thomas Mann”. Ese nombre no aludía al novelista, sino al entonces secretario-adjunto de Estado, Thomas A. Mann, que debía pasar como responsable de una “nueva política exterior” de incentivo a los golpes de Estado.

La sinvergonzonería fue realizada a través de la distribución anónima de documentos falsificados, que la prensa y los políticos brasileños, sin la menor comprobación, se tragaron como “pruebas” del intervencionismo americano. El primer paso fue dado en febrero de 1964: un documento con sello y sobre falsos de la Agencia de Información de EUA en Rio de Janeiro, que resumía los principios generales de la “nueva política”. La cosa llegó a los periódicos junto con una carta de un ficticio funcionario americano anónimo, que interpretaba, como en las películas, el papel de héroe oscuro que, juzgando que “el pueblo tiene derecho a saber”, divulgaba el secreto que sus jefes le habían mandado guardar.

El escándalo estalló con grandes titulares y los planes siniestros del Sr. Mann fueron denunciados en el Congreso. El embajador americano desmintió que tales planes existiesen, pero era tarde: toda la prensa y la intelectualidad izquierdistas de las Américas ya se habían movilizado para confirmar la patraña checa. La mentira penetró tan hondo que, tres décadas y media después, el nombre de Thomas A. Mann aún es citado como símbolo vivo del imperialismo intervencionista.

A esa primera falsificación le siguieron varias más, para darle credibilidad, entre ellas una lista de “agentes de la CIA” infiltrados en los medios diplomáticos, empresariales y políticos brasileños, que circuló por los periódicos como de autoría de un “Comité de Lucha Contra el Imperialismo Americano”, que nunca existió fuera de la cabeza de los agentes checos. En realidad, ha confesado Bittman, “no conocíamos ni un sólo agente de la CIA en acción en Brasil”. Pero el montaje más espectacular fue una carta de 15 de abril de 1964, con firma falsificada de J. Edgar Hoover, en la que el jefe del FBI felicitaba a su funcionario Thomas Brady por el éxito de cierta “operación”, que, por el contexto, cualquier lector identificaba inmediatamente con el golpe que había depuesto a João Goulart”.

Toda una bibliografía con pretensiones historiográficas, toda una visión de nuestro pasado y unas cuantas docenas de glorias académicas se han construido sobre esos documentos falsos. Bien, el fraude ya ha sido desenmascarado por uno de sus propios autores, y no fue ayer o anteayer. Bittman contó todo en 1985, tras desertar del servicio secreto checo. Lo que pasa es que hasta hoy esa confesión sigue siendo desconocida por el público brasileño, bloqueada por la amalgama de pereza, ignorancia, interés y complicidad que ha transformado a muchos de nuestros periodistas e intelectuales en agentes de la desinformación checa mucho más diligentes de lo que fue el jefe mismo del servicio checo de desinformación. ¿Cuántos, en esos medios, no continúan actuando como si fuese mucho más ético transmitir a las futuras generaciones, a título de ciencia histórica, la mentira de la que el propio autor renegó hace 15 años?

Neurosis, decía un gran psicólogo que conocí, es una mentira olvidada en la que todavía crees. Redescubrir la verdad sobre 1964 es curar a Brasil. Entrevistar a Ladislav Bittman ya sería un buen comienzo.

O escândalo do ‘Código 12’

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 15 de fevereiro de 2001

A revelação de pretensas descobertas históricas, que envolveriam dois ex-presidentes da República numa trama sinistra para o assassinato de inimigos políticos, sugere, uma vez mais, que a USP não é propriamente uma universidade e sim uma gigantesca central de adestramento de propagandistas revolucionários, adornada, aqui e ali, de algumas escolas técnicas e científicas regularmente eficientes, destinadas a dar ao conjunto o mínimo indispensável de respeitabilidade acadêmica que justifique o consumo voraz de verbas estatais.

Segundo foi noticiado na TV, pesquisadores da USP teriam localizado, entre os papéis do antigo Dops, uma mensagem na qual o general João Batista de Figueiredo, então chefe do SNI, transmitia ao nosso embaixador em Portugal a ordem, emanada do presidente da República, General Ernesto Geisel, de aplicar um tal “Código 12” em cima de dois exilados, um deles o almirante Cândido Aragão. “Código 12”, segundo os criptógrafos uspianos, significa matar o sujeito e fingir causa acidental.

Não examinei os papéis, mas, qualquer que seja o seu teor, as conclusões factuais que se pretende tirar deles não resistem, por si, ao mínimo exame crítico.

Em primeiro lugar, o próprio nome cifrado da operação já é duvidoso. O que aparece nos documentos não é “Código 12”: é “Oyykl”. Para acompanhar o raciocínio uspiano, temos de aceitar que “Oyykl”, com o perdão da palavra, significa Código 12, e que Código 12 significa a porcaria acima mencionada. A sutileza criptográfica da mensagem já brada aos céus que nenhuma conclusão a respeito pode ser aceita “prima facie”, sem verificação por técnicos de fora de uma instituição que assumiu, como seu dever pedagógico primordial, sujar a reputação do regime militar e de tudo quanto a ele esteja associado mesmo remotamente.

Uma corporação acadêmica que não se inibe de discriminar seu próprio reitor, vetando o estudo de livros dele como fez com Miguel Reale, e que chega ao cúmulo de dificultar, durante décadas, o acesso de seus alunos de ciências sociais às idéias do único dos nossos sociólogos que tem envergadura universal — Gilberto Freyre –, não deve ser chamada de preconceituosa, porque o termo é doce demais. Ela é simplesmente sectária. Que os arquivos do Dops, em vez de ser colocados sob a guarda de uma comissão mista supra-ideológica, sejam entregues a essa suspeitíssima instituição, para que os utilize como matéria-prima de shows publicitários a pretexto de ciência histórica, já é algo, para o meu gosto, demasiado chocante.

Mas ainda há, nas conclusões uspianas, muitas aberrações a ser explicadas, se explicação tiverem. Por exemplo: nada, no mundo, pode justificar que o chefe de um serviço secreto, ao efetivar a secreta execução de uma secretíssima operação ilegal, o faça… por vias diplomáticas! Por que raios um oficial militar, que tem sob suas ordens diretas profissionais habilitados para missões de guerrilha, sabotagem e quantas mais truculências o adestramento de combate inclua, no momento de passar à ação transmite a ordem, não a eles, mas a um funcionário civil? Seria o embaixador um agente mais qualificado do que os militares para convocar e acionar os executores da ordem homicida? A coisa é tão estúpida que raia o impensável.

Menos ainda haverá explicação razoável para o fato de que, ao enviar à embaixada de Lisboa o memorando assassino em vez de remetê-lo a destinatário mais apropriado, o chefe da conspiração urdida em altos círculos federais ainda fizesse tirar cópias do sigiloso documento para uma repartição estadual paulista…

Porém o mais inverossímil da trama é a vítima. Por que, em pleno processo de abertura democrática, o governo se comprometeria numa arriscada operação para mandar matar, no exterior, um inimigo esquecido, aposentado, política e militarmente inócuo? Já em 1964 a agressividade do almirante Aragão contra o novo regime revelara ser apenas um blefe, quando sua ameaça de invadir o Palácio das Laranjeiras com um batalhão de fuzileiros navais se desfez como por mágica ante a simples reação verbal enérgica do governador Carlos Lacerda. Se, à frente de tropas armadas, tudo o que ele conseguiu fazer foi sair da história para entrar no esquecimento, que milagre poderia tornar tão temível, onze anos depois, esse velho balão furado?

Não, um plano governamental para transmutar um almirante de opereta em mártir da causa esquerdista seria insensato demais, contraproducente demais, suicida demais para que pudéssemos acreditar nele à primeira vista, confiados na pura autoridade de meninos uspianos, ansiosos para acrescentar a contribuição da sua criatividade pessoal ao filme de Bela Lugosi em que a máquina esquerdista de desinformação vem transformando a história – digamos que o seja – do período militar.

Por fim, resta o fato de que as vítimas, após a data fatídica, continuaram passando bem e ignorando por completo a sua morte anunciada…

Tudo isso prova, no mínimo, que a acusação é duvidosa e sua divulgação afoita. Se nem mesmo uma simples denúncia jornalística se exime do dever de ser inspecionada “pelos dois lados” antes de estampar-se em manchete, por que uma revelação histórica que se arroga foros de seriedade acadêmica deveria ser alardeada pela TV antes de submeter-se à inspeção de historiadores profissionais alheios ou antagônicos à fé ideológica de seus autores?