Yearly archive for 2000

Quigley e as armas

Olavo de Carvalho

17 de fevereiro de 2000

O presidente Clinton já declarou que a substância de sua política se inspira nas lições de seu professor de História em Harvard, Carroll Quigley. Que é que um jornalista, um cientista político ou um simples cidadão acordado faz quando ouve isso? Ele compreende imediatamente que aquilo que se passa na cabeça do chefe da nação mais poderosa do mundo vai provavelmente acabar se passando com o mundo. Então, supondo-se que ele deseje saber o que vai acontecer com o mundo, ele vai até uma livraria, compra os livros de Quigley e lê.

No Brasil, até hoje, nenhuma daquelas pessoas maravilhosas que vivem nos dizendo para onde vai o mundo deu até hoje o menor sinal de saber quem é Quigley e muito menos o que ele pensa. Nenhum teórico do PT, nenhum acadêmico da USP, nenhum desses comentaristas iluminados que aparecem na TV e nos jornais dizendo que Clinton isto, Clinton aquilo, se interessou em saber quais são e de onde vêm as idéias de Clinton.

A inteligência brasileira é hoje dirigida por usurpadores, farsantes e, na melhor das hipóteses, cegos guias de cegos. Por isto mesmo são tantos, entre eles, os que apóiam a campanha do desarmamento civil. Se tivessem lido Quigley, compreenderiam imediatamente aonde Clinton quer chegar com essa campanha, tão afoitamente endossada pelo nosso próprio presidente. Pois não é possível que Clinton, poucos meses após ter confessado a origem de suas idéias, ignorasse justamente a fonte daquela que inspira uma tomada de posição tão decisiva para o futuro da liberdade do mundo. Essa origem encontra-se na página 34 de Tragedy and Hope. A History of the World in Our Time (New York, MacMillan, 1966), a obra principal de Carrol Quigley. Transcrevo:

“Quando as armas são baratas de comprar e tão fáceis de usar que qualquer um pode usá-las após um curto período de treinamento, os exércitos geralmente se compõem de massas de soldados amadores. A Era de Péricles na Grécia clássica e o século XIX na Civilização Ocidental foram épocas de ‘armas de amador’ e de cidadãos-soldados. Mas o século XIX foi precedido de uma época em que as armas eram caras e requeriam longo período de treinamento. Períodos de ‘armas de especialista’ são geralmente períodos de exércitos pequenos de soldados profissionais (usualmente mercenários). Num período de ‘armas de especialista”, a minoria que possui essas armas pode geralmente forçar à obediência a maioria que não as tem; portanto um período de ‘armas de especialista’ tende a dar surgimento a um período de domínio pelas minorias e de governo autoritário. Mas um período de ‘armas de amador’ é um período no qual todos os homens são mais ou menos iguais em poder militar, uma maioria pode forçar a minoria a se submeter, e então tende a surgir um governo de maioria ou mesmo democrático. O período medieval, no qual a melhor arma era geralmente um cavaleiro montado (claramente uma arma de especialista), foi um período de domínio da minoria e governo autoritário. Mesmo quando o cavaleiro medieval foi tornado obsoleto pela invenção da pólvora e o aparecimento das armas de fogo, estas novas armas eram tão caras e tão difíceis de usar (até 1800), que o domínio da minoria e o governo autoritário continuaram a existir… Mas, depois de 1800, as armas se tornaram mais baratas e fáceis de manejar. Por volta de 1940 um Colt custava 27 dólares e um mosquete Springfield não mais que isso, e estas eram armas tão boas quanto qualquer outra que se podia adquirir naquele tempo. Assim, exércitos de massa de cidadãos, equipados com essas armas baratas e fáceis de usar, começaram a substituir os exércitos profissionais, a partir de 1800 na Europa e mesmo antes disso na América. Ao mesmo tempo, o governo democrático começou a substituir os governos autoritários.”

Não é possível ser mais claro do que isso. A democracia não apenas requer a proliferação de armas entre os cidadãos, mas é um produto dela. Clinton aprendeu isso com Quigley e sabe que tomar as armas do povo é extinguir a democracia. Quando ele atingir esse resultado e houver choro e ranger de dentes, que ninguém, portanto, o acuse de imprevidência. Ele previu, desejou e fez.

Vocações e equívocos

Olavo de Carvalho

Bravo!, fevereiro de 2000

Se você escreve, ou pinta, ou faz sermões na igreja, ou toca música, ou monta a cavalo, ou tira fotos, ou faz qualquer outra coisa que pareça interessante, já deve ter ouvido mil vezes a pergunta: “Você faz isso por dinheiro ou por prazer?” Tão infinitamente repetível é essa fórmula, que ela deve revelar algum traço profundo e permanente do modo brasileiro de ver as coisas – um lugar-comum ou topos da nossa retórica diária.

Ora, todo lugar-comum é um recorte que enfatiza certos aspectos da realidade para momentaneamente dar a impressão de que os outros não existem. Logo, para compreendê-lo é preciso perguntar, antes de tudo, o que é que ele omite.

O que está omitido na pergunta acima é a possibilidade de que alguém se dedique de todo o coração a alguma coisa sem ser por necessidade econômica nem por prazer – ou, pior ainda, que continue se dedicando a ela como se fosse a coisa mais importante do mundo mesmo quando ela só dá prejuízo e dor de cabeça. O que está omitido nessa pergunta — e no modo brasileiro de ver as coisas — é aquilo que se chama vocação.

Vocação vem do verbo latino vocovocare, que quer dizer “chamar”. Quem faz algo por vocação sente que é chamado a isso pela voz de uma entidade superior — Deus, a humanidade, a História, ou, como diria Viktor Frankl, o sentido da vida.

Considerações de lucro ou prazer ficam fora ou só entram como elementos subordinados, que por si não determinam decisões nem fundamentam avaliações.

No mundo protestante, germânico, há toda uma cultura e uma mística da vocação, e a busca da vocação autêntica é mesmo o tema do principal romance alemão, o Wilhelm Meister de Goethe. Nos países católicos a importância religiosa da vocação, consolidada na ética escolástica do “dever de estado” (por exemplo, o dever dos pais de família, dos comerciantes, dos militares etc.), foi perdendo relevo depois do Renascimento, cavando-se um abismo cada vez mais fundo entre o sacerdócio e as atividades “mundanas”, esvaziadas de sentido na medida em que só o primeiro é considerado vocacional em sentido eminente. No Brasil, para agravar as coisas, a população foi constituída sobretudo de três espécies de pessoas: portugueses que vinham na esperança de enriquecer e não conseguiam voltar, negros apanhados à força e índios que não tinham nada a ver com a história e de repente se viam mal integrados numa sociedade que não compreendiam. É fácil perceber daí o imediatismo materialista dos primeiros (o qual, quando frustrado, se transforma em inveja e azedume que tudo deprecia, e que com tanta facilidade se disfarça em indignação moralista contra a corrupção e as “injustiças sociais”), e mais ainda a total desorientação vocacional do segundo e do terceiro grupos, brutalmente amputados do sentido da vida e por isto mesmo facilmente inclinados a sentir-se marginalizados mesmo quando já não o são mais.

Um pouco da ética da vocação existe ainda entre nós graças à influência dos imigrantes, especialmente alemães, árabes e judeus, mas existe de modo tácito, implícito, jamais consagrado como valor consciente da nossa cultura e muito menos valorizado pelas escolas e pelos governos.

A realização superior do homem na vocação é então substituída pela mera busca do emprego, visto apenas como meio de subsistência e sem nenhuma importância própria no que diz respeito ao conteúdo. A adaptação conformista a um emprego medíocre e sem futuro é considerado o máximo do realismo, a perfeição da maturidade humana. Tudo o mais é depreciado (e por isto mesmo hipervalorizado e ansiosamente desejado) como “diversão”. Assim, entre o trabalho forçado e a diversão obsessiva (da qual o Carnaval é a amostra mais significativa), acumula-se na alma do brasileiro a inveja e uma surda revolta contra todos os que levem uma vida grande, brilhante e significativa, sobre os quais, mesmo quando são pobres, paira a suspeita de serem usurpadores e ladrões, pelo menos ladrões da sorte. Daí a famosa observação de Tom Jobim: “No Brasil, o sucesso é um insulto pessoal.” Sim, nesse meio não se compreende outra lealdade senão o companheirismo dos fracassados, em torno de uma mesa de bar, despejando cerveja na goela e maledicência no mundo. Este é um país de gente que está no caminho errado, fazendo o que não quer, buscando alívio em entrenenimentos pueris e desprezíveis, quando não francamente deprimentes.

Nossa ciência social, atada com cabresto maxista e cega às realidades psicológicas mais óbvias da nossa vida diária, jamais se deu conta da imensa tragédia vocacional brasileira que condena milhões de pessoas a viver presas como animaizinhos, entre a dor inevitável e o prazer impossível.

É que a explosiva acumulação de paixões infames, inevitável nessa situação, é o caldo de cultura ideal para a germinação dos ressentimentos políticos. E uma ciência social rebaixada a instrumento auxiliar da demagogia não há de querer lançar luz justamente sobre aquela treva confusa da qual a demagogia se alimenta.

Inteligentes e burros

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 3 de fevereiro de 2000

Há quatro décadas o chamado “debate nacional” consiste exclusivamente no confronto de privatistas e estatistas. Quem os ouve tem a impressão de que todo o problema do Brasil é escolher entre esses dois partidos. Isso mostra apenas incapacidade de aprender com a experiência: privatismo e estatismo já se revezaram no poder mil vezes, e nenhum deles jamais conseguiu qualquer resultado positivo exceto à custa de oportunas concessões ao outro. Quando se apegam às respectivas ortodoxias, só conseguem é meter os pés pelas mãos: entre a política de reserva de mercado que atrasou em dez anos a informática brasileira e as privatizações desastradas do governo FHC, o diabo até hoje hesita em dizer de qual gostou mais.

Quem é que não percebe que, dessas duas políticas, às vezes a razão está com uma, às vezes com a outra, conforme as circunstâncias do momento, e que portanto não há entre elas verdadeiro confronto ou debate, apenas uma simulação de hostilidade, sempre pronta – felizmente – a fazer o contrário do que prega?

Sufocado pelo Estado no tempo do Império, o capitalismo brasileiro floresceu sob a proteção do mesmo Estado, na década de 30. Depois, quem ajudou mais os capitalistas do que o governo JK, eleito por uma aliança de estatistas históricos? E quem ampliou mais a economia estatal do que o regime militar criado, em teoria, para defender a iniciativa privada?

Todo mundo sabe que, uma vez no poder, o governante brasileiro não faz o que sua teoria manda, mas o que as circunstâncias permitem – e, quando chega aonde quer, é pelo caminho que não quis. Esse pragmatismo começou com d. João VI e pode parecer escandaloso aos estrangeiros, mas tem a seu favor dois argumentos definitivos: ele existe e funciona, enquanto as teorias ortodoxas só existem como hipóteses que seus próprios defensores são os primeiros a abandonar quando trocam a cátedra universitária por uma pasta ministerial.

Mas, se é assim, por que prosseguimos numa discussão que é puro teatro? O espantoso não é que os brasileiros combinem pragmaticamente estatismo e privatismo. Isso é apenas sabedoria instintiva. O espantoso é que continuem a raciocinar, em teoria, como se aqueles dois elementos cuja mistura tem dado certo na prática fossem coisas heterogêneas e imescláveis por natureza.

O que isso mostra é que temos mais inteligência prática do que teórica. Sabemos resolver os problemas quando se apresentam, mas, quando nos metemos a explicar o que fizemos ou o que vamos fazer, fazemos a maior meleca mental, apelamos a estereótipos abstratos que não têm nada a ver com a realidade e, no fim, de tanto discutir bobagem, acabamos por inibir e paralisar a própria inteligência prática que vinha funcionando tão bem!

Essa disparidade está aliás imbricada na própria constituição psíquica da Nação brasileira. Poucos povos do mundo podem competir com o nosso em agilidade, em destreza para superar, pelo improviso, os obstáculos econômicos mais temíveis. Por opressiva que se torne a situação, o povo, como ele próprio diz, sempre “se vira”. Notem a sutileza da expressão: virar-se é mudar de caminho, é tentar, é experimentar outra coisa, é esquecer as idéias fixas e deixar-se conduzir pelo senso de oportunidade. Em comparação com isso, a nossa classe intelectual, com seu discurso rígido e estereotípico, parece um bando de velhotas reumáticas, amedrontadas e mesquinhas, imobilizadas em suas cadeiras de rodas e amaldiçoando em linguagem pedante um mundo que não compreendem. Quem diria que pessoas sem instrução pudessem ser tão inteligentes e pessoas instruídas pudessem ser tão burras?

Querem um exemplo? O florescimento da “economia informal”, que na década de 80 chegou a responder por metade do nosso PNB, foi um prodígio de inventividade popular – talvez o mais pujante surto de puro capitalismo liberal que já se viu neste mundo. Diante desse fenômeno, os teóricos liberais permanecem alheios e indiferentes: só têm olhos para a Malásia, a Indonésia, a Cochinchina do capitalismo utópico. E os esquerdistas, então! Já se viu coisa mais alienada do que oferecer uma perspectiva socialista a um povo que acaba de descobrir que tem o gênio dos negócios? Nossos intelectuais estão sempre com a cabeça no mundo da lua, raciocinando por esquemas aprendidos por incapacidade de fazer abstrações a partir da experiência real. E ainda querem que o povo leia seus livros, porca miséria!

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