Yearly archive for 1999

Poesia e filosofia

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

20 de janeiro de 1999

Excerto do § 1 do Prólogo da obra em preparação, O Olho do Sol: Ensaio sobre a Inteligência. Como certas discussões havidas em classe na última rodada do Seminário de Filosofia mencionassem este texto, do qual a maioria dos alunos não possuia cópia, decidi colocá-lo aqui à disposição de todos os visitantes desta homepage. O Olho do Sol é um calhamaço, a esta altura com seiscentas páginas e ainda bem longe de sua conclusão, onde reúno, ordeno e explico melhor (espero) as coisas que vim lecionando nos últimos anos sobre teoria do conhecimento. — O. de C.

Habituado a expor minhas idéias oralmente, retomando-as e redesenhando-as desde ângulos diversos conforme as exigências dos tempos e das circunstâncias, dando-lhes assim a vida que os conceitos só adquirem quando encarnados nas formas das situações concretas, sinto-me inibido e atemorizado ante a perspectiva de fixá-las em livro, onde já não poderão mover-se e terão de estar, imobilizadas e solenes como pássaros de bronze na forma acidental do instante em que as atinja, em pleno vôo, o disparo fatídico de um ponto final — o equivalente ortográfico de um buraco de bala no meio da testa.

Pouco platônico em temperamento e convicções, compartilhei sempre da desconfiança do mestre ante a filosofia escrita. Não que me creia portador de verdades sublimes e voláteis, rebeldes à fixação, intransponíveis ao papel. É que o esforço de transpor ao escrito uma intuição filosófica repõe sempre em pauta a questão das relações entre poesia e filosofia, e esta questão não é das mais cômodas.

Uma opinião corrente diz que a poesia transmite as impressões na sua imediatez, enquanto a filosofia opera sobre elas uma reflexão; uma estaria para a outra como o direto está para o indireto, como a experiência viva está para a opinião posteriormente elaborada, como a imagem vista com os olhos está para o reflexo num espelho mental.

Isso para mim é rematada bobagem, inconseqüente verbalização de uma impossibilidade pura e simples. Sem poder justificar-se, explica-se, em parte, como manifestação da simpatia maior que o povo sente pelo poeta, companheiro que o ajuda a exprimir suas impressões numa linguagem que, se não é a sua própria, é embelezamento dela e sua musicalização; e como expressão da estranheza popular ante o filósofo, tipo exótico e distante, que fala em código, e que não pode abandonar completamente sua criptografia para tentar ser comunicativo sem fazer-se um pouco — ou muito — poeta, voltando as costas perigosamente às duras regras da sua confraria, ou então, mais perigosamente ainda, sem fazer-se retórico, orador e homem político.

Na verdade, a quota de atividade reflexiva que se requer não é menor em poesia do que em filosofia, pela simples razão de que o verso não é a experiência, mas a expressão verbal dela, obediente, como toda expressão, a um código de conversões; e o código não se compõe de fatos e dados — a carne da experiência —, mas de rimas e métricas e regras de gramática e estilos epocais e usos semânticos consagrados e compromissos de escola e mil e uma outras exigências que se arraigam na convenção, na ciência e no hábito, não diretamente nos fatos. Estas exigências são o molde em que se recorta a vestimenta que vai recobrir e tornar socialmente reconhecível e moeda corrente a experiência, intransmissível na nudez direta da sua carne, que é uma e a mesma que a carne do corpo, impenetrável a outro corpo.

Que sem molde não há comunicação, que a adaptação ao molde é a parte racional e reflexiva da criação literária, ninguém duvida. Que os moldes esgotam sua possibilidade de conter novas experiências e têm de ser renovados de tempos em tempos, a história das revoluções formais em literatura o confirma. Que, a cada nova revolução, a ampliação da faixa do dizível se faz ao preço de uma perda temporária da comunicabilidade até que o novo molde se consagre no uso comum, é coisa que a prática demonstra. O que não se percebe com igual freqüência é que as coisas se passam de maneira exatamente igual em filosofia, onde as novas intuições devem se adaptar aos processos consagrados de formalização e demonstração, ou então inventar novos; que esta parte raciocinante e reflexiva, que o leigo toma como se fosse a essência mesma da filosofia, não é senão a sua vestimenta decente e o preço de sua conservação como atividade socialmente viável; e que o molde da vestimenta, exatamente como as convenções de escola em poesia, podem em certos momentos oprimir e sufocar a intuição filosófica e até mesmo, com a arrogância do ignorante togado, dá-la por inexistente ou extrafilosófica.

O ponto de partida para a resolução do problema das relações entre poesia e filosofia está na seguinte observação, que é de senso comum: a participação do povo nas impressões do poeta, ou de qualquer outro artista, não é direta e física: é imaginativa. Não nos apaixonamos por Beatriz, que nunca vimos, mas por seu análogo que o poeta imaginou em palavras; nem padecemos na carne os horrores da Casa dos Mortos, mas apenas, na mente, o pesadelo que seu relato verbal nos sugere; pesadelo que, como tal, é mais tolerável que qualquer sofrimento físico — motivo pelo qual fugimos dos horrores do cárcere, mas buscamos a leitura que os evoca e transfigura. Não faríamos isto se fossem ambos uma só e mesma coisa, ou mais ou menos a mesma coisa, hipótese doida que está implícita na opinião corrente mencionada acima.

O poeta, o que faz é produzir, da experiência interna ou externa, um análogo moldado, com maior ou menor felicidade, pelo cruzamento de uma dupla exigência: a máxima comunicabilidade no vocabulário geral, a máxima fidelidade — ou, o que dá na mesma, infidelidade genial e enriquecedora — às convenções e tradições de ofício.

Digo isso com duas ressalvas.

Primeira. Vocabulário geral não quer dizer, necessariamente, o vocabulário de uso corrente, pois o poeta pode usar termos raros; quer dizer apenas um vocabulário não especializado e não fixado em acepções-padrão; pois descobrir novas acepções pela combinação das palavras pode ser, embora nem sempre o seja, um dos requisitos incontornáveis para a comunicação de certas imaginações.

Segunda. Na maior parte dos casos, e quando não se pervertem em modismos ou tradicionalismos idolátricos, as regras — sempre in fieri — da comunidade de ofício visam justamente a exigir a máxima comunicabilidade no uso do vocabulário geral, mesmo eruditíssimo.

Feitas essas duas ressalvas, a comunicabilidade máxima da experiência imaginativa no vocabulário geral é, a rigor, a definição mesma da poesia, ao menos no que tem de representativo e referido à transmissão de um conhecimento.

O poeta, em suma, cria, através da força analogante das imagens e dos símbolos, uma área de experiência imaginativa comum, onde os indivíduos e mesmo as épocas podem se encontrar, vencendo no imaginário as barreiras que separam fisicamente suas respectivas vivências reais. Assim fazendo, ele não apenas se comunica, mas intercomunica os outros homens. Daí a missão curativa, mágica e apaziguadora, que faz da poesia um dos pilares em que se assenta a possibilidade mesma da civilização: ela liberta os homens da noite animal, do terror primitivo que isola e paralisa. Ela reúne os membros da tribo em torno do fogo aconchegante e os faz participar de um universo comum que transcende as barreiras dos corpos e do tempo. Ela apazigua, reanima e torna possível, aos que eram animais assustados, pensar e agir.

Que faz, em contrapartida, o filósofo? A primeira coisa que faz é voltar as costas à comunidade, para ir perguntar, à experiência, não o que ela pode dizer ao mesmo tempo a todos os homens reunidos em torno da fogueira, mas sim apenas aquilo que ela deve acabar por dizer, se tudo der certo, àqueles poucos que continuarem a contemplá-la detidamente até que ela se abra e mostre seu conteúdo inteligível.

Seu diálogo não é com a tribo. É com o ser.

Por isso mesmo, enquanto a História registra desde o início dos tempos a função de alto prestígio público que os poetas exerceram como magos, hierofantes, profetas, sacerdotes e guias de povos, os primeiros filósofos já surgiram na condição de esquisitões mais ou menos incompreensíveis ao vulgo, de aristocratas que se isolavam numa solidão altaneira, como Heráclito, ou, como Sócrates, de rebeldes que entravam em conflito aberto com as crenças populares.

A pergunta filosófica por excelência é Quid?, “Quê?”. Que é o homem? Que é a morte? Que é o bem? Que é a felicidade? A “reflexão” não entra aí em dose maior ou menor que na poesia, ou melhor, a presença do elemento reflexivo numa e noutra é igualmente acidental e instrumental. Não há reflexão que nos possa dizer o que é uma coisa. As essências, ou qüididades, revelam-se no ato intuitivo que contempla a presença de um objeto, cujo conteúdo noético o filósofo não faz senão reproduzir com a máxima fidelidade e exatidão possíveis. Sua atividade é, tanto quanto a do poeta, um traslado da experiência, interior ou exterior. Todo juízo definitório, quando seu objeto é um ente e não uma simples possibilidade lógica inventada — e às vezes mesmo neste caso — é sempre a pura formalização lógica de um conteúdo intuído, que a memória fixa e o discurso interior descreve. E a formalização lógica é, como bem viu Etienne Souriau, nada mais que estilização do discurso interior, do verbum mentis, tal como as artes do poeta são a estilização da linguagem corrente.

É só numa fase posterior, quando se defronta na polis com os retóricos e sofistas, portadores de um falso conhecimento, que a filosofia se torna dialética e, por meio dela, reflexão e diálogo; mas diálogo que visa a restaurar apenas, por cima da rede das ilusões do discurso corrente, a intuição primeira das essências auto-evidentes. E tanto quanto não pode revelar essências, a reflexão — exceto na acepção de rememoração descritiva — não pode levar ao conhecimento dos princípios e axiomas. Aristóteles define a dialética precisamente como o confronto das hipóteses contraditórias que, remontando através de exclusões e negações, leva a uma súbita percepção intuitiva dos princípios subjacentes às várias opiniões em disputa. A dialética é um encaminhamento e aquecimento da inteligência para o despertar da intuição.

Em seguida, trata-se de descrever o mais precisamente possível essa intuição, atendendo, de um lado, à realidade dos dados e, de outro, às convenções de vocabulário e às exigências técnicas da exposição lógica ou dialética, consagradas pelo uso na comunidade de ofício.

Essa atividade é, em tudo e por tudo, similar à do poeta. Mas então qual a diferença?

A diferença é que o poeta tem de transformar o intuído, o mais imediatamente possível, em moeda corrente; tem de lançar desde logo o conteúdo noético de uma experiência que pode ser fortemente individual, na água corrente do vocabulário comum, para fazer dela uma posse de todos os homens na linguagem do seu tempo e do seu meio.

A experiência, para ele, é o momento fraco e provisório de uma atividade cujo momento forte e definitivo é a forma concreta da obra pronta.

Ele não pode deter-se indefinidamente na crítica e repetição de sua experiência, para obter mais clareza, para integrá-la mais profundamente na estrutura do seu ser pessoal, para distingui-la nas adjacentes e circunvizinhas, para fazer dela, progressivamente, parte de experiências cada vez mais amplas, para adquirir sobre ela a certeza de que ela não revelou só um aspecto passageiro e acidental mas a natureza mesma do seu ser — atos que são, precisamente, as ocupações precípuas do filósofo.

Pois, se ele se detiver para enriquecer a tal ponto sua experiência interior, já não poderá mais elaborá-la no vocabulário comum para torná-la imediatamente transmissível a todos os homens; será obrigado a registrá-la, se sobrar tempo, em abreviaturas criptográficas que ou o aprisionarão na total incomunicabilidade, ou então terão de conformar-se aos modos de criptografia mais ou menos padronizados da confraria dos contempladores renitentes, isto é, dos filósofos; e terá se tornado um filósofo ele mesmo. Perdendo em expressividade e comunicabilidade, terá ganho em riqueza interior dos registros que porém só poderão ser transmitidos a quem refaça o mesmo itinerário interior que é o treinamento e faina essencial dos filósofos, happy few por fatalidade constitutiva e não por acidente.

Por isso, dizer de uma poesia que é obra só para poetas e técnicos em poesia é apontar um vício redibitório, uma falha intolerável; já a filosofia é, em princípio, coisa para filósofos, e só raramente para o povo inteiro — exceto quando à vocação do filósofo se soma a do artista, ou do pedagogo, ou do orador e homem político, o que certamente é acidental e não exigível. Por isso é que Aristóteles, elíptico, abstruso e enigmático em seu modo de expressão, continua a ser maior filósofo que o cristalino Descartes ou o elegantíssimo Bergson. A comunicação, a forma concreta da obra escrita, é em filosofia o momento acidental e menor de uma atividade que consiste, fundamentalmente, em conhecer e não em transmitir.

Sendo registro e expressão de intuições profundas e valiosas, tanto a poesia quanto a filosofia têm algo a ver com a sabedoria. Mas vai aí a diferença freqüentemente intransponível que medeia entre o registro exato e a comunicação eficiente. O primeiro pode ser pessoal e incomunicável, ou comunicável só a quem possua a chave dos códigos e a recordação de similar experiência interior. Já uma expressão que não expressa, uma comunicação que não comunica, não é absolutamente nada.

A diferença, aí, é de direção. Na poesia, a sabedoria dirige-se aos homens, dizendo-lhes o quanto é possível dizer a ouvintes mesmo passivos, mal dispostos a um esforço pessoal e que nem de longe pensariam em tornar-se eles mesmos poetas ou conhecedores profundos dos mistérios do ofício. É sabedoria que, corporificada em símbolos, se dirige menos à mente corrompida dos homens, do que ao seu corpo, através da magia dos sons e das formas visíveis. Daí que ela possa agir mesmo sobre os homens que não a compreendem bem. Porque ela é corpo e obedece ao conselho do poeta:

deixa o teu corpo entender-se com outro corpo,
porque os corpos se entendem, mas as almas não.
 

A poesia é assim a sabedoria que bate à porta dos homens, e os obriga a assimilar até mesmo algo do que não desejariam compreender, passando por cima de suas mentes indiferentes e dialogando diretamente com o ouvido, com o olho, com os batimentos do coração, com os pés que, involuntariamente, marcam o compasso da música.

A filosofia, em contrapartida, não busca ninguém. Ela é, por essência, a busca de uma sabedoria que se furta, que exige, e que cobra do recém-chegado um preço alto. Mas cobra-o em troca de uma revelação que já não será mais alusiva e simbólica como na poesia, mas literal e direta. Tão literal e direta que, dela, o filósofo não poderá comunicar senão uma parte pequena, e às vezes nada.

Se a filosofia é o amor à sabedoria, ocupação de amantes dispostos a pagar com a vida o preço da sua conquista, a poesia é, em contrapartida, o amor que a sabedoria tem até mesmo pelos homens que não a amam, e que, desatentos e dispersos, não podem escapar de receber ao menos um pouco dela, forçados a isto pelo corpo, que não escapa ao fascínio da harmonia e do ritmo.

A filosofia é a busca da sabedoria, a poesia é a sabedoria em busca dos homens. Isto é tudo, e não há mais diferença alguma. São como as duas colunas do templo, o Rigor e a Misericórdia — aquilo que a sabedoria exige, aquilo que a sabedoria concede. Por esta razão não podem nem se desentender de todo, nem identificar-se por completo. Nem pode a filosofia deixar de ser uma poesia que se recolheu ao estado de experiência interior, nem pode a poesia deixar de ser uma filosofia in nuce.

Pela mesma razão a filosofia, ao contrário da poesia, não está nunca totalmente na obra, e sim metade no filósofo mesmo: o portador do saber é o homem, não o livro. O livro, o tratado, a aula, nunca é senão a condensação do saber nuns quantos princípios gerais e sua exemplificação numas quantas amostras; e o saber, o verdadeiro saber, se abriga naquele núcleo vivo de inteligência que permanece no fundo da alma do autor após encerrado o livro, e que saberá dar a esses princípios outras e ilimitadas encarnações e aplicações diversas, imprevisíveis, surpreendentes ou mesmo paradoxais, conforme a variedade inabarcável das situações da existência. Só em Sto. Tomás residiu a sabedoria de Sto. Tomás. Nós outros não podemos ser senão tomistas, o que é um Sto. Tomás fixado e diminuído, compactado por desidratação.

Não nego totalmente, no entanto, a possibilidade de colocar em livro o essencial do que um homem sabe e vê. Apenas julgo que não se pode despejar inteiramente o conteúdo dessa visão pessoal em teses explícitas, porque as teses são apenas o resíduo cristalizado de uma decantação interior que, longe de constituir a mera preparação para o advento das teses, constitui antes o exercício mesmo da filosofia. Ora, esse exercício, que se dá no tempo e que tem por sujeito um indivíduo humano real — ainda que possuindo por outro lado o alcance universal de um símbolo — , não é representável senão sob forma artística. O filósofo, se pretende ser compreendido, deve portanto levar ao papel não somente o conteúdo explícito das teses a que chegou, guarnecidas ou não de demonstrações extensivas e exemplos, mas também algo da atmosfera interior em que nasceram e se desenvolveram; atmosfera esta que não pode se reconstituir senão por meio da narração, do drama e da poesia. Mas não se trata, por outro lado, de escrever romances, dramas ou poemas que traduzam alegoricamente nossas idéias — pois a arte literária, por si, não pode escapar a seu compromisso com a linguagem metafórica e declarar explicitamente as teses filosóficas a que adere, declaração que tornaria um adorno supérfluo a narrativa ou poema que a acompanha, rodeia ou antecede. Muito menos teria cabimento argumentar literariamente, substituindo à força das demonstrações o encanto das imagens, sugerindo em vez de afirmar, seduzindo em vez de provar. O livro filosófico, em suma, tem de possuir a um tempo, articuladas e distintas numa límpida harmonia, a nitidez e a demonstrabilidade da tese científica, a sugestividade envolvente da obra poética, sem cair nem no esquematismo impessoal da primeira, nem na névoa plurissensa da segunda. Espremida entre estas exigências contrárias, a redação de um livro de filosofia — pelo menos a quem esteja consciente delas — pode apresentar dificuldades temíveis, motivo pelo qual tenho preferido antes falar do que escrever, embora o exercício da escrita não me seja nem um pouco repelente. Sublinha ainda mais esta preferência o fato de que o professor entre seus alunos tem ali a atmosfera presente e viva, sem precisar imitá-la por artifício verbal.

É praticamente impossível, aliás, que a produção escrita de um filósofo, caso deseje atender aos requisitos do bom estilo, acompanhe a rigor a evolução de sua doutrina e de seu ensinamento. Aos poetas, aos romancistas, acontece esgotarem na obra escrita o melhor de sua inspiração; acontece mesmo ultrapassarem, no tanto que escrevem, os limites dela, e começarem a se repetir, a patinar em falso, a rebuscar o efeito numa ânsia estéril e vã. O essencial do artista vai em um ou dois livros; o resto de sua obra escrita é desnível, é queda. Isto é assim porque a inspiração poética é essencialmente a de um acordo feliz entre a intenção projetada e a forma verbal concreta; e se este acordo só se realiza em certos momentos, o restante da obra escrita é esboço ou comentário, não obra. Já a inspiração filosófica é, em essência, a de uma forma eidética não associada intrinsecamente a nenhuma expressão verbal determinada. Intrinsecamente, digo eu: acidentalmente essa associação pode existir, pode ocorrer que determinadas seções de sua filosofia ocorram a um filósofo já incorporadas numa expressão verbal feliz, ou mesmo genial e excelsa; porém estas não têm de ser necessariamente as partes melhores nem as mais importantes da sua filosofia. Em nenhum momento o gênio verbal de Platão alcança o esplendor do Fedro; porém, quê valem as concepções filosóficas do Fedro comparadas à profundidade insondável, à altitude quase divina de certos trechos das Leis ou do Timeu, no entanto dificilmente notáveis na expressão literária? E mesmo quando a forma verbal é perfeita e encarna a idéia sem excedê-la nem deixar nada faltando, isto não resulta necessariamente em beleza literária, em fluidez da leitura, em clareza plástica da expressão. A mais perfeita obra-prima de análise filosófica dos últimos três séculos é provavelmente De l’Habitude, de Félix Ravaisson: trinta páginas que vão subindo da biologia à psicologia, da psicologia à teoria do conhecimento e à metafísica sem um salto, sem uma falha, sem uma vacilação. No entanto, são tantas ali as inarmonias sonoras, as frases tortuosas, que, por critérios estritamente literários, o texto passaria por obscuro e mal feito; e sua perfeição consiste em que qualquer tentativa de retocá-lo literariamente resultaria em confundir as conexões de conceitos, em rebaixar o nível de abstração, em diminuir o valor da prova. O único filósofo, em toda a história do pensamento, que declarou ter exaurido na obra escrita o quanto queria dizer foi Henri Bergson; e é uma obra maravilhosamente escrita, límpida e musical em tudo. Mas é que o universo filosófico de Bergson é reconhecidamente pobre, unitemático — um tema com certo número de variações, que o autor teve a sabedoria de parar quando iam atingindo o ponto de saturação. Coisa semelhante diga-se de Croce. Ademais, a limpidez literária, em Bergson (não em Croce), é conseguida às vezes à custa de uma nebulosidade conceptual, que se denuncia quando o leitor, varando a cortina verbal, acossa o filósofo em demanda de suas provas derradeiras. Leibniz é, de modo geral, um prosador sóbrio e elegante, mesmo nos rascunhos. Mas a quase universal má interpretação de suas idéias deveu-se ao fato de que se tornaram conhecidas principalmente através de suas obras melhor escritas — a Teodicéia e os Novos Ensaios sobre o Conhecimento —, sem exame das páginas menos artísticas do Discurso de Metafísica, da Monadologia e dos inúmeros Opúsculos e Cartas, onde o filósofo, dirigindo-se a um círculo eleito de sábios, se permitia aquela brevidade que Horácio dizia ser oposta à clareza. Quem escreve mais forte e eloqüente que Nietzsche? No entanto o melhor de seus intérpretes, Eugen Fink, tentando reduzir seus textos à expressão coerente de um sistema, encontrou neles não um, mas cinco sistemas filosóficos mutuamente contraditórios. E quem foi mais confundido e mal interpretado que o maior prosador espanhol desde Cervantes? José Ortega y Gasset, um homem a quem as palavras obedeciam como recrutas ao capitão, um artista capaz de dar às idéias mais abstratas uma clareza plástica que quase as faz saltar da página para incorporar-se em massas tridimensionais que agem e falam, um pedagogo nato para quem la claridad es la cortesía del filósofo — esse é no entanto o pensador que menos encontrou leitores compreensivos. Resvalavam pelo declive lustroso de suas metáforas, queixava-se ele, e iam parar longe do seu pensamento. Finalmente, é preciso considerar que, dos três pais-fundadores da filosofia Ocidental, Sócrates, Platão e Aristóteles, o primeiro não escreveu nada e, quanto aos outros dois, de um se conhecem somente os escritos literariamente acabados, faltando as aulas e cursos; e do outro só as aulas e cursos, sem os escritos publicados em vida do autor. Esta dupla e inversa lacuna tem, como a abstinência autoral de Sócrates, o valor de um símbolo: as relações entre filosofia e expressão literária serão eternamente ambíguas; jamais a clareza da intuição filosófica coincidirá plena ou permanentemente com a nitidez da sua materialização verbal; e só por uma exceção notável os melhores momentos do filósofo coincidirão em superposição perfeita com os melhores momentos do autor.

Daí que, na obra de um filósofo, dificilmente haja textos menores, merecidamente ditos tais, dispensáveis no todo para o conhecimento de sua doutrina, como na obra dos poetas, ao contrário, há sempre dois ou três cumes que brilham sozinhos sem qualquer amparo em textos secundários, e que brilhariam talvez mais se o restante da sua obra escrita se perdesse. Pois algo não se perdeu de The Waste Land quando se publicaram seus rascunhos com os trechos cortados pela mão de Pound? Quanto mais claro e fulgurante, no conjunto, não se tornou no entanto o pensamento de Aristóteles quando se redescobriu em 1548 sua Poética desaparecida por quase dois milênios? E quanto não se mostrou mais consistente e firme o edifício do platonismo quando revisto à luz da reconstituição do ensinamento oral do mestre, empreendido mediante cotejo de depoimentos pelo historiador Giovanni Reale?

A obra de um poeta são seus poemas; principalmente seus poemas melhores. A obra de um filósofo não são seus escritos. Eles são apenas testemunho, sinal. A obra está no que se chama o filosofema, o sistema ideal de intuições e pensamentos que se oculta por trás dos textos, sistema que os textos refletem de maneira irregular e desigual, por vezes com partes faltantes, e que só pode ser contemplado por quem o reconstitua. Uma obra poética, para ser compreendida, basta que seja lida, bem lida. Ela posa inteira diante do leitor, pronta para ser contemplada em sua forma que, se é artística, é irretocável. Já uma obra filosófica tem de ser inteiramente reconstruída; executada, a bem dizer, como se executa uma composição musical com base na partitura, pois os escritos filosóficos não passam disto: partituras para executantes; e, ao executar, o artista elabora, retoca, altera e reconstrói — só então a obra aparece. Para servir de base a esta reconstrução, valem tanto os trechos que o filósofo tenha deixado prontos e elaborados em seus últimos detalhes, quanto aqueles que tenham ficado no esboço, no plano ou na mera manifestação de intenções. O conjunto desses materiais permanecerá sempre incompleto, sempre retocável, estará sempre aquém do filosofema, que é interior em sua origem e interior na sua reconstituição final.

Uma das conseqüências práticas disto é que no estudo dos filósofos os escritos menores, cartas, rascunhos, entrevistas, transcrições de aulas, mostrem um interesse que vai muito além daquele estritamente biográfico que escritos semelhantes têm para o estudo dos poetas e romancistas. É que são parte intrínseca da obra, e não, como no caso destes, apenas preparação e ensaio da obra possível. Em decorrência, também não é importante que o filósofo deixe escritas de próprio punho suas idéias ou que elas venham num estilo literário pessoal e próprio. Sócrates só é conhecido pelo que seus discípulos anotaram do que falou. A Estética e as Lições sobre a História da Filosofia de Hegel são quase que por inteiro anotações de alunos. E como conheceríamos mal o pensamento de Husserl se não fosse por obras como Experiência e Juízo, inteiramente redigida por seu discípulo Fink em linguagem pessoal e característica! Qualquer texto, escrito por quem quer que seja, que um filósofo aprove como expressão adequada de seu pensamento — ou que, mesmo sem essa aprovação explícita, possa ter o valor de um testemunho fidedigno — deve ser considerado parte integrante de sua Obra, na medida em que ajudam a perfazer o filosofema em que ela consiste essencialmente.

Mas o filosofema, por sua vez, não se perfaz somente num sistema ideal de teses abstratas, e sim também nas atitudes pessoais concretas com que o filósofo lhes deu interpretação vivente ante as situações da existência: a altivez de Sócrates ante a morte é a exemplificação concreta da moral socrática, que entenderíamos diversamente, de maneira mais figurada e menos estrita, caso seu autor houvesse mostrado fraqueza ante os carrascos. Estamos aqui, novamente, nos antípodas da história literária, onde os detalhes biográficos devem ser abstraídos para dar lugar a uma interpretação direta dos textos. É que é diverso o nível de responsabilidade que o artista e o filósofo ( ou o místico, ou o homem de ciência ) devem ter ante o que escrevem. Um poeta ou romancista, por definição, não tem de acreditar no que escreve, exceto no instante em que escreve. Findo o êxtase criador, bem pode tomar tudo aquilo por uma alucinação, um jogo, um minuto de prazer desligado da corrente da vida, e ir cuidar da “vida real” enquanto continua recebendo os aplausos e os proventos do momento que passou. Por isto é que damos ainda atenção à poesia de Rimbaud, mesmo sabendo que ele a renegou para tornar-se contrabandista de armas, atividade das mais úteis e práticas no reino deste mundo. Mas o que seria do místico que, passado o arrebatamento da visão de Deus, negasse a sua fé, ou do filósofo que, dissipado o instante da intuição da verdade, não tratasse de lhe ser fiel em seus atos e palavras subseqüentes? Não seriam tais atitudes imediatamente alegadas pelos adversários da sua religião ou da sua filosofia como provas implícitas da falsidade destas? Seriam, no mínimo, traições. Num filósofo ou num místico, escandaliza-nos até mesmo um pequeno deslize de conduta, um ligeiro desvio em relação à sua moral explícita, um momento de distração que o afaste da verdade proclamada. Mais ainda: o fato do desvio, devidamente encaixado pelos pósteros na seqüência evolutiva da biografia interior do filósofo, será usado como base para reinterpretações inteiras de seu pensamento: há um Heidegger anterior e um posterior à revelação de seu namoro nazista, como há um Sartre anterior e um posterior a seus vexames de maio de 68, um Lukács anterior e um posterior às genuflexões ante Stalin.

Isso não quer dizer, é claro, que o filósofo tenha de brilhar na perfeição de uma coerência moral em bloco e sem pecado. Não. Ele pode pecar. Mas não deve mentir, racionalizando a posteriori seus pecados para encaixá-los à força na coerência do sistema, nem entorpecer-se no abandono do seu dever de integridade, procedendo como um poeta que pode escrever uma coisa num dia e no dia seguinte esquecê-la por completo como se tivesse amanhecido outro. A filosofia não é a elaboração de uma obra, mas a criação incessante de uma consciência, que, como o próprio nome diz – cum + scientia – consiste em saber que sabe, e saber que sabe que sabe, e, enfim, carregar a sua cruz.

Também não quer dizer que a biografia possa ou deva ser a chave principal que nos abra a compreensão do pensamento de um filósofo. Ao contrário: onde quer que as lições orais ou escritas que nos legou o filósofo não bastem para evidenciar por si a unidade do intuito central que move o seu pensamento, é certamente porque essa unidade não existe, porque estamos diante dos rastros informes de um pensamento que se busca e não se encontra. E será vão empreendimento tentar encontrar, na biografia, a unidade que as palavras não revelam. Porque, se não se explicitou em palavras, o intuito não chegou a ser pensado em palavras, mas apenas talvez confusamente pressentido fragmentariamente em momentos esparsos, sem tomar forma na autoconsciência. Essa unidade que permanecesse meramente potencial seria uma filosofia em potência; mas uma filosofia em potência não é uma filosofia, pela simples razão de que a potência, não possuindo ainda a forma que a convertesse em ato, conservaria em si, como tudo o que é apenas germe e promessa, a possibilidade de desenvolver-se em direções múltiplas e contraditórias, ou seja, de gerar filosofias diversas e antagônicas. Mais ainda, a unidade vagamente pressentida, se não pôde se manifestar na forma do conceito, permaneceu condensada em símbolo. Matriz de filosofias possíveis, não é filosofia nenhuma. É, no pleno sentido da palavra, poesia. E a poesia, por mais que possa influenciar e inspirar os filósofos, não faz parte do projeto filosófico originário, que inclui por essência o intuito de explicitar o símbolo e operar, entre as possíveis intelecções que gere, a triagem do verdadeiro e do falso; entrando portanto a poesia na história da filosofia apenas como fator externo e eventual matéria da obra filosófica, matéria sem forma filosófica, sendo certo e verdadeiro que a essência está na forma e que tudo — desde a experiência mística e as ciências até a simples experiência da vida — pode servir de matéria à forma que, elevando-o ao nível do conceito explicitado e autoconsciente, fará dele filosofia e não outra coisa. É sumamente grave, portanto, que, não se encontrando na obra de um Nietzsche outra unidade senão biográfica e psicológica, se continue a tomá-lo como filósofo em vez de admitir que é poeta e nada mais, isto é, homem que não pretende que se tome em sentido unívoco suas palavras, pela simples razão de que ele próprio não sabe, e admite que não sabe, em qual dos múltiplos sentidos unívocos possíveis elas poderiam ser verdadeiras, e em quais falsas. É verdade que o próprio Nietzsche, aqui e ali, insiste na unidade de filosofia e biografia, mas o faz antevendo que ele próprio não poderá ser compreendido senão pela biografia, o que resulta em admitir o caráter simbólico, alusivo e plurissenso de suas próprias palavras e sua incapacidade de explicitá-las para julgá-las filosoficamente.

Não é portanto em sentido nietzscheano que deve ser entendido meu apelo à unidade de filosofia e biografia; pois, no sentido em que a entendo, a compreensão biográfica permanece elemento auxiliar e somente isto, na medida em que a síntese superior em que consiste a filosofia expressa é elemento de biografia espiritual que não se poderia em hipótese alguma reduzir, como o propõe Nietzsche, à biografia empírica e psicológica. O que digo é que o texto filosófico é necessariamente incompleto, necessitando sempre um pouco ser complementado pelos elementos biográficos, e não que a unidade e a chave de uma filosofia se encontrem sempre e só na psicologia de um indivíduo, o que seria mergulhar toda compreensão filosófica num radical imanentismo psicológico, omitindo o compromisso de universalidade que está na raiz mesma do filosofar e escondendo embaixo do tapete o fato de que quaisquer conceitos psicológicos, inclusive aqueles de que se serve Nietzsche, participam desse compromisso e se comeriam a si mesmos pelo rabo, perdendo toda validade e força explicativa, na hora em que se reduzissem a meras expressões das psiques individuais que os criaram.

Quanto à poesia, o que digo para diferenciá-la da filosofia é que, de todas as atividades criadoras do espírito, a artística e literária é a que exige menos compromisso pessoal com o seu conteúdo: o que a arte exige do artista é a devoção à obra, para criá-la; não a fidelidade a ela, depois de pronta. Daí que os sins e os nãos sucessivos numa obra poética ( e na vida do poeta ) não a invalidem, na medida em que às vezes podem dar até força à sugestividade e fecundidade do símbolo. Que se diria, em comparação, do cientista que, apresentada sua descoberta, tratasse de ignorá-la e de não responder por ela na seqüência de seus trabalhos? Ou do filósofo que, publicada sua teoria do conhecimento, nos desse em seguida uma metafísica totalmente desligada dela, e esperasse com isto obter aplausos por sua fecundidade criadora? Não: a relação do artista com a obra pronta é de total independência; a do filósofo, do cientista, do teólogo e do místico, é de responsabilidade e continuidade. O artista, ao publicar suas criações, liberta-se delas. O homem de pensamento carrega-as como a cruz do seu destino: seja para defendê-las, seja para renegá-las, terá de tê-las sempre ante os olhos, para firmar no passado os atos do presente. A vida infame de um poeta é resgatada por seus escritos; os atos infames de um filósofo são a condenação de sua obra escrita. E bem longe do meu pensamento andará o leitor que compreenda tudo isto como um simples apelo moralístico à coerência entre atos e obras; pois não digo que essa coerência deva existir, mas que ela existe necessariamente, para o bem ou para o mal, e que por isto os atos de um filósofo devem ser incorporados à sua filosofia como interpretações operantes que o pensador deu ao seu próprio pensamento ao traduzi-los da generalidade das idéias para a particularidade das situações; que, portanto, em filosofia os estudos biográficos não são externos e supervenientes como em literatura, mas parte integrante, ainda que auxiliar, da compreensão do filosofema; a vida do filósofo está para sua filosofia como a jurisprudência está para os códigos.

A razão profunda disso encontra-se na natureza mesma da filosofia, que, como ensinava o insigne Igino Petrone,

è una visione del mondo in termini d’intelligibilità ed è fondazione della possibilità dell’esperienza. È, quindi, di sua natura, una sintesi espirituale dell’esperienza, una ideale composizione e deduzione della medesima, una intuizione della natura intima delle cose e delle relazioni, ossia del loro nascimento ideale dalla virtù operosa dello spirito, una illuminazione impressa e derivata sui prodotti della consapevolezza dello spirito produttore, un ritorno dello spirito sulla sua interiorità produttiva“. (1) 

Sendo o locus por antonomásia do reencontro entre experiência e autoconsciência, como poderia a filosofia excluir de si os atos do filósofo, precisamente aqueles que emanam do espírito mesmo que os julga filosoficamente chamando-os de volta a si? Unificação interior da experiência, a filosofia nada exclui; e, não podendo dizer tudo, muito deixa subentendido o filósofo em suas atitudes humanas, legíveis a quem as saiba ler.

Por isso é que um verdadeiro ensino da filosofia só existe onde exista um filósofo vivo, surpreendido pelos discípulos no ato mesmo de criar sua filosofia. O filósofo in fieri é o verdadeiro portador da filosofia: os textos são apenas a prova de que uma filosofia aconteceu. O filósofo que apenas escrevesse, sem exercer um magistério direto, seria um personagem misterioso, enigmático, cujo pensamento permaneceria para sempre matéria de dúvida e reconstituição conjetural. Temos a certeza de compreender Platão em certos trechos porque sabemos como os ouviu de viva voz um Aristóteles, e conferimos nossa interpretação pela sua. Já num Descartes ou num Bacon, tão mais próximos de nós historicamente, descobrimos mil e uma ambigüidades que teriam certamente se dissipado se seus textos, em vez de irem direto para o público anônimo, primeiro fossem lidos e discutidos num círculo de discípulos; e se não fossem as Objeções e Respostas em que Descartes discute com seus correspondentes — substitutos ad hoc dos discípulos em classe –, provavelmente pouco entenderíamos do cartesianismo.

Ainda na mesma ordem de considerações, digo que, se os mais claros e menos ambíguos dentre os escritos filosóficos são os dos escolásticos, é porque são textos de ensino, que refletem na sua estrutura mesma o dia-a-dia do professor em classe. Mas, no modo de refleti-lo, vão muito além das virtudes do didatismo, da clareza e da ordenação lógica que esplendem à sua superfície. São, na sua estrutura profunda — estritamente homóloga, como bem o viu Erwin Panofsky, à das catedrais cuja arquitetura se cifrava nos seus mesmíssimos princípios organizadores — a imitação artística de uma imago mundi, na qual o esforço dialético do filósofo ( refletido por sua vez no diálogo em classe ) reproduzia, na intimidade microcósmica da consciência humana, o processo mesmo de ramificação da natureza desde os princípios supremos e simples até a complexidade sinfônica da manifestação física na sua inteireza; imago mundi, portanto, na qual o pensar e o existir, o ser e o devir, a consciência e o mundo, a linguagem e a natureza, ainda se encontravam unidos por um laço amoroso que a modernidade veio a romper, para lhe substituir, de um lado, o formalismo sufocante de um raciocínio inteiramente separado da experiência, de outro, a imagem mortuária de uma natureza totalmente objetivada, seja como ancilla tecnologiæ, seja como artigo de consumo para as classes médias ascendentes ávidas de signos convencionais de beleza. Daí vêm, ao mesmo tempo, a transparência que apresentam aos olhos de quem se transporte e se identifique em espírito à vivência religiosa e metafísica que os inspirou, e a opacidade de pedra com que resistem ao leitor que, vindo de fora, os tente julgar desde logo com olhos estranhos e imbuído de um falso sentimento de superioridade de sua própria época em relação àquela em que foram escritos; opacidade que se adensa mais ainda à medida que esse leitor, avançando passo a passo na decifração analítica dos seus pormenores silogísticos, vai se perdendo mais e mais na complexidade de uma selva cujo contorno global por fim lhe escapa inexoravelmente. Prodígios de clarificação, tornaram-se um muro de opacidades; dons da graça iluminante, tornaram-se maldição obscurecedora. E quando me pergunto o porquê do ódio que voltaram contra esses textos tantos filósofos modernos que não os conheceram senão muito superficialmente ou de segunda mão, não encontro outra resposta senão o tenebroso sentimento de exclusão eterna que a alma obscurecida do renegado experimenta ante tudo o que é do espírito e da luz.

Mas, se a luz que esplende nesses textos é da mesma natureza daquela que se filtra pelos vitrais das igrejas, é graças à unidade que a síntese gótico-escolástica conseguiu criar entre a imaginação, o sentimento e a e clarificação racional — unidade que se fundava por sua vez na coesão do edifício social da Europa medieval, ao mesmo tempo que constituía um dos fundamentos dele. Cada frase dos escritos escolásticos reflete esse contexto e apóia-se na complexa rede de pressupostos implícitos que ele contém, a começar pela fé cristã incorporada nos costumes de uma vida social amplamente ritualizada. É isto o que explica o poder da sua concisão, que para o leitor de hoje os torna obscuros e enigmáticos. Similar contexto falta totalmente nos dias de hoje, quando a cultura se fragmenta a olhos vistos e novos contextos imaginários e semânticos se formam e desfazem a cada dia, cristalizações provisórias que simulam por algum tempo uma comunidade de signos e sentimentos numa classe social, num grupo profissional, numa região determinada, para logo dissolver-se, como os que os antecederam, num oceano de ruidosa incomunicabilidade. Daí a necessidade, em que se encontra o homem que pretenda explicar-se a rigor, de refazer artificialmente o contexto, o ambiente humano e lingüistico, como o professor de um imaginário liceu erguido sobre areia movediça, o qual tivesse de ser reconstruído a cada novo período letivo. Daí as longas introduções de que faço preceder os meus livros, introduções que, aceitando o risco calculado de parecerem cair no confessionalismo mais direto, dão ao leitor uma idéia do preciso ponto do desenvolvimento ( ou, se preferirem, retrocesso ) intelectual e anímico do autor em que lhe surgiram tais ou quais perguntas, nunca como curiosidades de acadêmico, já que ele nem sequer faz parte desta profissão aliás distinta e nobre, mas sim como perturbadoras dúvidas pessoais. Sim, jamais escrevi sobre o que não me doesse, nem sobre o que doesse somente a mim. Com a exceção das mensagens divinas, de que não sou portador eleito, são as dores do mundo, na medida em que participamos delas com a inteireza de nossa alma, que constituem a única matéria digna do ofício de escrever e falar em público.

………………………………………………………………………………….[Continua]

Nota

(1) Igino Petrone, Il Diritto nel Mondo dello Spirito. Saggio Filosofico, Milano, Libreria Editrice Milanese, 1910, p., 3: “A filosofia é visão do mundo em termos de inteligibilidade e é fundação da possibilidade da experiência. É, portanto, por sua natureza, uma síntese espiritual da experiência, uma ideal composição e dedução da mesma, uma intuição da natureza íntima das coisas e das relações, ou seja, do seu nascimento ideal desde a virtude operosa do espírito, uma iluminação impressa e derivada sobre os produtos do autoconsciência do espírito produtor, um retorno do espírito sobre a sua interioridade produtiva.”

A História oficial de 1964

Olavo de Carvalho

O Globo, 19 de janeiro de 1999

Se houve na história da América Latina um episódio sui generis, foi a Revolução de Março (ou, se quiserem, o golpe de abril) de 1964. Numa década em que guerrilhas e atentados espoucavam por toda parte, seqüestros e bombas eram parte do cotidiano e a ascensão do comunismo parecia irresistível, o maior esquema revolucionário já montado pela esquerda neste continente foi desmantelado da noite para o dia e sem qualquer derramamento de sangue.

O fato é tanto mais inusitado quando se considera que os comunistas estavam fortemente encravados na administração federal, que o presidente da República apoiava ostensivamente a rebelião esquerdista no Exército e que em janeiro daquele ano Luís Carlos Prestes, após relatar à alta liderança soviética o estado de coisas no Brasil, voltara de Moscou com autorização para desencadear – por fim! – a guerra civil no campo. Mais ainda, a extrema direita civil, chefiada pelos governadores Adhemar de Barros, de São Paulo, e Carlos Lacerda, da Guanabara, tinha montado um imenso esquema paramilitar mais ou menos clandestino, que totalizava não menos de 30 mil homens armados de helicópteros, bazucas e metralhadoras e dispostos a opor à ousadia comunista uma reação violenta. Tudo estava, enfim, preparado para um formidável banho de sangue.

Na noite de 31 de março para 1o. de abril, uma mobilização militar meio improvisada bloqueou as ruas, pôs a liderança esquerdista para correr e instaurou um novo regime num país de dimensões continentais – sem que houvesse, na gigantesca operação, mais que duas vítimas: um estudante baleado na perna acidentalmente por um colega e o líder comunista Gregório Bezerra, severamente maltratado por um grupo de soldados no Recife. As lideranças esquerdistas, que até a véspera se gabavam de seu respaldo militar, fugiram em debandada para dentro das embaixadas, enquanto a extrema-direita civil, que acreditava ter chegado sua vez de mandar no país, foi cuidadosamente imobilizada pelo governo militar e acabou por desaparecer do cenário político.

Qualquer pessoa no pleno uso da razão percebe que houve aí um fenômeno estranhíssimo, que requer investigação. No entanto, a bibliografia sobre o período, sendo de natureza predominantemente revanchista e incriminatória, acaba por dissolver a originalidade do episódio numa sopa reducionista onde tudo se resume aos lugares-comuns da “violência” e da “repressão”, incumbidos de caracterizar magicamente uma etapa da história onde o sangue e a maldade apareceram bem menos do que seria normal esperar naquelas circunstâncias.

Os trezentos esquerdistas mortos após o endurecimento repressivo com que os militares responderam à reação terrorista da esquerda, em 1968, representam uma taxa de violência bem modesta para um país que ultrapassava a centena de milhões de habitantes, principalmente quando comparada aos 17 mil dissidentes assassinados pelo regime cubano numa população quinze vezes menor. Com mais nitidez ainda, na nossa escala demográfica, os dois mil prisioneiros políticos que chegaram a habitar os nossos cárceres foram rigorosamente um nada, em comparação com os cem mil que abarrotavam as cadeias daquela ilhota do Caribe. E é ridículo supor que, na época, a alternativa ao golpe militar fosse a normalidade democrática. Essa alternativa simplesmente não existia: a revolução destinada a implantar aqui um regime de tipo fidelista com o apoio do governo soviético e da Conferência Tricontinental de Havana já ia bem adiantada. Longe de se caracterizar pela crueldade repressiva, a resposta militar brasileira, seja em comparação com os demais golpes de direita na América Latina seja com a repressão cubana, se destacou pela brandura de sua conduta e por sua habilidade de contornar com o mínimo de violência uma das situações mais explosivas já verificadas na história deste continente.

No entanto, a historiografia oficial – repetida ad nauseampelos livros didáticos, pela TV e pelos jornais – consagrou uma visão invertida e caricatural dos acontecimentos, enfatizando até à demência os feitos singulares de violência e omitindo sistematicamente os números comparativos que mostrariam – sem abrandar, é claro, a sua feiúra moral – a sua perfeita inocuidade histórica.

Por uma coincidência das mais irônicas, foi a própria brandura do governo militar que permitiu a entronização da mentira esquerdista como história oficial. Inutilizada para qualquer ação armada, a esquerda se refugiou nas universidades, nos jornais e no movimento editorial, instalando aí sua principal trincheira. O governo, influenciado pela teoria golberiniana da “panela de pressão”, que afirmava a necessidade de uma válvula de escape para o ressentimento esquerdista, jamais fez o mínimo esforço para desafiar a hegemonia da esquerda nos meios intelectuais, considerados militarmente inofensivos numa época em que o governo ainda não tomara conhecimento da estratégia gramsciana e não imaginava ações esquerdistas senão de natureza inssurrecional, leninista. Deixados à vontade no seu feudo intelectual, os derrotados de 1964 obtiveram assim uma vingança literária, monopolizando a indústria das interpretações do fato consumado. E, quando a ditadura se desfez por mero cansaço, a esquerda, intoxicada de Gramsci, já tinha tomado consciência das vantagens políticas da hegemonia cultural, e apegou-se com redobrada sanha ao seu monopólio do passado histórico. É por isso que a literatura sobre o regime militar, em vez de se tornar mais serena e objetiva com a passagem dos anos, tanto mais assume o tom de polêmica e denúncia quanto mais os fatos se tornam distantes e os personagens desaparecem nas brumas do tempo.

Mais irônico ainda é que o ódio não se atenue nem mesmo hoje em dia, quando a esquerda, levada pelas mudanças do cenário mundial, já vem se transformando rapidamente naquilo mesmo que os militares brasileiros desejavam que ela fosse: uma esquerda socialdemocrática parlamentar, à européia, desprovida de ambições revolucionárias de estilo cubano. O discurso da esquerda atual coincide, em gênero, número e grau, com o tipo de oposição que, na época, era não somente consentido como incentivado pelos militares, que viam na militância socialdemocrática uma alternativa saudável para a violência revolucionária.

Durante toda a história da esquerda mundial, os comunistas votaram a seus concorrentes, os socialdemocratas, um ódio muito mais profundo do que aos liberais e capitalistas. Mas o tempo deu ao “renegado Kautsky” a vitória sobre a truculência leninista. E, se os nossos militares tudo fizeram justamente para apressar essa vitória, por que continuar a considerá-los fantasmas de um passado tenebroso, em vez de reconhecer neles os precursores de um tempo que é melhor para todos, inclusive para as esquerdas?

Para completar, muita gente na própria esquerda já admitiu não apenas o caráter maligno e suicidário da reação guerrilheira, mas a contribuição positiva do regime militar à consolidação de uma economia voltada predominantemente para o mercado interno – uma condição básica da soberania nacional. Tendo em vista o preço modesto que esta nação pagou, em vidas humanas, para a eliminação daquele mal e a conquista deste bem, não estaria na hora de repensar a Revolução de 1964 e remover a pesada crosta de sloganspejorativos que ainda encobre a sua realidade histórica?

De Bobbio a Bernanos

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 7 de janeiro de 1999

Este século começou com a proclamação quase universal do fim das democracias e, após uma sucessão de experiências ditatoriais com um saldo de quase 200 milhões de mortos, termina com o universal reconhecimento de que o melhor é a gente ir tratando de gostar da democracia mesmo.

Pela primeira vez na história dos tempos modernos a parte falante da Humanidade parece ter entrado num acordo. Embora ainda haja ditaduras aqui e ali, a idéia de ditadura perdeu toda respeitabilidade intelectual, e acredita-se, com platônico otimismo, que aquilo que desaparece do céu das idéias deve também desaparecer deste baixo mundo mais cedo ou mais tarde. E, embora ninguém atribua às atuais democracias a virtude da perfeição, há um consenso geral que Norberto Bobbio resumiu com uma sentença lapidar: “A única solução para os males da democracia é mais democracia.”

Mas será essa a fórmula de um consenso ou a fórmula de um problema?

Em primeiro lugar, que é “mais democracia”? Um liberal acha que é menos intervenção do Estado na economia; um social-democrata acha que é mais proteção do Estado aos pobres e desamparados. Assim, não apenas se reedita o velho confronto de capitalismo e socialismo, ambos com o nome de democracia, mas se chega no fim a um beco sem saída, porque para realizar a primeira alternativa é preciso ampliar o controle estatal da vida privada (no mínimo para que o Estado desprovido de seu fardo econômico adquira novas funções que legitimem sua existência), e para realizar a segunda é preciso aumentar os impostos e inflar a burocracia estatal até paralisar a economia e tornar os pobres ainda mais desamparados.

Em segundo lugar, há boas razões para duvidar que “mais democracia” seja ainda democracia. A democracia não é como um pão, que cresce sem perder a homogeneidade: à medida que ela se expande, sua natureza vai mudando até converter-se no seu contrário. O exemplo mais característico – mas não o único, certamente – é o que se passa com a “democratização da cultura”. Num primeiro momento, democratizar a cultura é distribuir generosamente às massas os chamados “bens culturais”, antes reservados, segundo se diz, a uma elite. Num segundo momento, exige-se que as massas tenham também o direito de decidir o que é e o que não é um bem cultural. Aí a situação se inverte: oferecer às massas os bens de elite já não é praticar a democracia: é lançar à cara do povo um insulto paternalista. As camadas populares, afirma-se, têm direito à “sua própria cultura”, na qual a música rap pode ser, eventualmente, preferível a Bach. A intelectualidade entrega-se então a toda sorte de teorizações destinadas a provar que os bens superiores antes cobiçados pela massa não têm, no fim das contas, mais valor do que tudo o que a massa já possuía antes de conquistá-los. E, quando enfim a antiga diferença entre cultura de elite e cultura de massas parece restabelecida sob o novo e reconfortante pretexto da relatividade, os intelectuais ficam mais revoltados ainda, ao descobrir que todos os bens, equalizados pelo universal relativismo, se transformaram em puras mercadorias sem valor próprio: Bach tornou-se fundo musical para anúncios de calcinhas e o rap, com a venda de discos, gerou uma nova elite de milionários, cínicos e prepotentes como a elite mais antiga jamais teria ousado ser. Idêntico processo repete-se nos domínios da educação, da moral e até mesmo da economia, onde cada nova leva de beneficiários do progresso se apega a seus novos privilégios com uma avareza e uma violência desconhecida das elites mais velhas: o fascismo surgiu entre as novas classes médias criadas pela democracia capitalista, e a Nomenklatura soviética, a mais ciumenta das classes dominantes que já existiu neste mundo, nasceu da ascensão de soldados e operários na hierarquia do Partido.

Em terceiro lugar, vem talvez o perigo mais grave: um consenso em favor da democracia só é promissor em aparência, porque a democracia, por definição, consiste em prescindir de todo consenso. Democracia não é concórdia: é uma maneira inteligente de administrar a discórdia. E o clamor universal por “mais democracia”, na medida mesma em que se afirma como um consenso, já dá sinais de não poder suportar nenhuma voz discordante.

Assim, há razões para temer que, se o século 20 começou pedindo ditaduras e terminou por exigir a democracia, o novo século acabe por seguir o trajeto precisamente inverso. Afinal, dizia Bernanos, a democracia não é o oposto da ditadura: é a causa dela.

Veja todos os arquivos por ano