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Neutralidade e ortodoxia

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 17 de setembro de 1998

As novas diretrizes para a educação primária, emanadas do MEC em elegantes volumezinhos coloridos sob o imponente rótulo Parâmetros Curriculares Nacionais , sugerem que, em matéria de instrução sexual, os professores devem assumir uma atitude de neutralidade moral verdadeiramente weberiana. Sem dizer uma palavra contra ou a favor, devem descrever diante da classe, com sublime indiferença científica, “as orientações sexuais existentes”, para que as criancinhas, livres de pressões autoritárias, “façam suas próprias opções”. Não sei o que é aí mais comovente: o respeito devoto pela liberdade dos infantes ou o rigor da isenção científica que inspira as diretrizes do ministério. Pergunto-me, apenas, quais e quantas seriam as orientações sexuais que viriam a merecer inclusão no currículo – um ponto de magna importância pedagógica sobre o qual o MEC nada nos informa. À luz da neutralidade axiológica e do rigor científico, porém, não haveria a menor justificativa para reduzi-las às três mais vulgares (hetero, homo e bi), excluindo as variedades minoritárias como o sadomasoquismo, a pedofilia, a coprofilia e a bestialidade (termo pejorativo que busca cobrir de preconceituosa infâmia a prática do amor com vacas, jumentas e outras dignas criaturas do reino animal). A exclusão dessas práticas, além de ser cientificamente indefensável, resultaria numa autoritária limitação do leque de opções que a educação deve oferecer aos pimpolhos, que afinal são, porca miséria!, o futuro da Pátria. Diante da omissão dos livretos, e para não alimentar na opinião pública suspeitas de que haja nas concepções sexológicas do ministério algum resíduo de moralismo preconceituoso, o ministro Paulo Renato faria bem em divulgar a lista completa e explícita das opções sexuais atualmente reconhecidas pela ciência, sem esquecer, é claro, aquelas jamais vistas e só conhecidas em estado de hipóteses. Somente assim a tranqüilidade voltará a reinar no seio e demais partes erógenas da família brasileira.

Mas, em contraste com a neutralidade e frieza que devem imperar na escolha dos objetos de desejo, o MEC não julga que idêntica objetividade científica deva prevalecer em outros domínios do conhecimento, como por exemplo a História e as ciências sociais. Aqui, não apenas é desnecessário examinar com imparcialidade as várias escolas, estilos e teorias explicativas, mas, bem ao contrário, a escolha pode ser dada por pressuposta sem que seja preciso sequer informar às crianças que houve alguma escolha. A interpretação marxista da História deve ser ensinada não como uma teoria entre outras, mas como a única teoria possível, a ortodoxia suprema jamais contestada. É o que se vê em vários textos aprovados pelo ministério para o ensino dessas disciplinas, como por exemplo a Nova História Crítica, de Mário Schmidt, para o 2.º grau (Editora Nova Geração), Iniciação à Sociologia , de Nelson Dacio Tomazzi, e outros (Atual Editora), Estudando as Paisagens , de Oswaldo Piffer, para a 7.ª série (Ibep) e dezenas de outras obras do mesmo teor. Nessas cartilhas sacramentadas pelo aval mequiano, o predomínio absoluto dos fatores econômicos, a luta de classes, a conveniência de uma aliança operário-camponesa para liquidar os malditos capitalistas, bem como outros itens do cardápio marxista tradicional, não são ensinados como opiniões de uma determinada corrente ideológica contestadíssima por muitas outras, mas como verdades universais primeiras e últimas que jamais foram ou serão objeto de dúvida.

Nos casos em que não tenha sido possível evitar toda menção a escolas e teorias divergentes, como por exemplo as de Weber e Pareto, Ortega e Croce, Jouvenel e Voegelin, estas são cuidadosamente reduzidas a meros instrumentos de dominação ideológica a serviço da execrável classe capitalista, de modo a que, neutralizadas pela vacina marxista, não possam fazer mal às mentes juvenis dando-lhes a impressão de que nesses campos do conhecimento exista algo a discutir.

Educada desde pequena na linha justa do materialismo dialético, a alma infantil é assim poupada de dúvidas e perplexidades intelectuais, podendo resguardar o melhor das suas energias para dedicá-las a questões mais puramente teóricas e científicas, como por exemplo a da escolha de um objeto de desejo erótico numa gama de opções que abrange imparcialmente loiras, morenas, estivadores, soldados da PM, cães, bebês, chicotes e vibradores.

THE NEO-FASCIST RISE

translated by Pedro Sette Câmara

 

Ever since the fall of the USSR, the agenda of the world’s left has been restricted to the demands of homosexuals, pro-abortion militants, feminists, pedophiles and black racists such as Louis Farrakhan. Such demands may look modest next to the overtly promethean revolutionary goals of the old communist movement, but the truth is that the more concessions these groups obtain from an infinitely compliant society, their cries become more enraged, their ambitions wider, their exigencies more profound and frightful. In the end, the new left wishes to turn humanity upside down, to an extent which if Marx himself were to be faced with the audacity of these proposals, he would turn away horrified as a conservative catholic.

Homosexuals, as an example, who began moaning for the right of not being arrested for the private practice of sodomy between adults, now groan in defense of nothing else than pedophilia, demanding that it is not only tolerated by the rest, but taught in schools. There is, in the USA, a “Man-Boy Love Association”, and nobody dares to accuse its members of being apologists of crime. Everybody knows that whoever does it will be running the risk of getting beaten, arrested, or at least smashed under the feet of the homosexual media lobby, which is probably the most terrible defamatory machine that humanity has known since the end of the activities of the Komintern and of the Propaganda Department of the III Reich.

Black activists began claiming the opportunity to have equal access to the rights and benefits of Western Civilization which the whites had. Now that they have obtained it, they demand that this Civilization be overtly condemned at schools, and that everybody praises African cultures which despised human life and which took arms to preserve slavery when England began to restrain the trade of black slaves. And today the oppressive control of the black pride is so authoritarian that, in the USA, namely the land of the free press, no great newspaper dared to publish one statistic from the Justice Department – which was freely imparted in other parts of the world – showing that the rate of murders of whites by blacks has been growing immensely, either in proportion or in absolute figures, since the advent of the civil rights laws of the Johnson government; laws which, thanks to the perverse inclination of the human heart, specially when worked up by Machiavellian opportunists, ended up producing among its beneficiaries rather resentment than gratitude.

Ecologists, who began by screaming alerts in favour of the endangered species, now demand from the government the prohibition to kill even species which are in ceaseless quantitative growth – like the coyotes whose apocalyptic breeding is threatening the flocks of lambs in the North-American state of Utah to extinction. At the same pace, films of ecological ideology, which began as Arcadian idylls of cows and lions, now portray as a supreme moral standard the bloody destruction of mankind by wolves and leopards – the latter having risen to the condition of vindicating angels acting in the service of some justice divinity from the dark, the technopop counterfeit of the Biblical Jehovah.

As to the feminists, who began demanding simply the right to vote, nothing is more revealing about the nature of their present ambitions than this statement by one of Lorena Bobbit’s friends: “Cutting off her husband’s penis and calling an ambulance to help him just after that, Lorena has become a symbol of the ideal woman of our time.” Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

Any adult who, aware of the grotesque absurdity of these right-claiming discourses, restricts himself to laughing at them as mere harmless extravagancies, is only laughing at his own sons’ disgrace, who will be condemned to live in a world where these delirious fancies will be the Law and will have at their side the massive police force of the State to enforce them. A preview of the moral criteria which will guide the life of the future State was already given by President Clinton, who, having granted refuge to all homosexuals who may feel bothered in their native countries, denied the very same right to the Chinese mothers who refuse to abort their babies and to the Chinese doctors who refuse to perform the abortions imposed by the government: our children will live under the guard of a State in which the fantasies of the most frivolous eroticism will be protected by the Law and moral conscience will be repressed as a straying of behaviour.

At this point, every laugh is no more than the superficial expression of something that is, actually, a deep convulsion of fear. Everywhere, relying on a more and more ferocious and insane rhetoric of hate, and on the more and more devastating and global support of the world’s great assets and on millionaire media, along with the complicity of more and more cynical authorities, these movements spread an atmosphere of fear and obsessive self-repression, where the mere thought of being unpleasant to them is enough to fill a person’s mind with the most ominous presentiments.

This atmosphere is unmistakably fascist, and its spread becomes easier as it bases itself more and more on a falsely alarmist discourse directed at the threat of the rebirth of right-wing nationalist regimes which were extinguished fifty years ago – a rebirth that is more strongly denounced as imminent the more one can be sure that the present conditions of global economy make it totally impossible: the dead horse is flogged so that the kick of the living horse be accepted as a demonstration of tenderness.

O texto sem mundo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 3 de setembro de 1998

Um homem que decidisse dilapidar sua fortuna em champagne, cruzeiros marítimos e corridas de cavalos estaria fazendo alguma coisa inequivocamente estúpida por meios inequivocamente elegantes. Esse exemplo ilustra a idéia de que a elegância dos meios nada tem a ver com o valor dos fins. Aplicada às teorias hermenêuticas em voga no nosso meio universitário, ela nos ensina que uma teoria perfeitamente idiota pode ser exposta por meio de raciocínios sumamente elegantes que lhe dêem ares de alta sabedoria.

Muitas dessas teorias, aquelas que vão do estruturalismo ao desconstrucionismo, baseiam-se no pressuposto de que o conhecimento objetivo de um texto consiste em enfocá-lo “em si mesmo”, como objeto a ser descrito e analisado, sem nenhuma referência a significados exteriores.

Mas, para provar que é possível explicar um texto “em si mesmo” e sem referência a nenhum objeto exterior, seria preciso, primeiro, demonstrar que esse texto efetivamente não remete a um objeto exterior, que ele é efetivamente um universo fechado, completo e auto-explicável. Caso contrário, a hipótese da clausura textual seria ela mesma um texto cerrado que não se referiria a objeto algum, isto é, que nem de longe poderia ter algo a ver com o texto que diz analisar.

Seria preciso esclarecer, em seguida, se o autor do texto percebeu ou não estar escrevendo a respeito de nada ou se ele, ao contrário, tinha a ilusão de estar se referindo a alguma coisa, isto é, estava radicalmente enganado quanto à índole do seu próprio escrito, a qual só será revelada por nós. Nesta última hipótese, seria preciso dar algum fundamento razoável à nossa pretensão de conhecer o nexo interior de um texto mais do que foi preciso para produzi-lo.

Seria preciso, ademais, demonstrar como veio a ser possível que nossa explicação, por sua vez, não constituísse um todo fechado, que ela, na medida em que tem por objeto um outro texto, escapasse miraculosamente à lei da clausura textual que ela mesma proclama.

Como essas condições jamais se realizam nem mesmo hipoteticamente, por impossibilidade absoluta de concebê-las de modo simultâneo sem autocontradição lógica, os adeptos da teoria do texto fechado recorreram ao expediente de alegar que um texto se refere a outro texto que se refere a outro texto e assim por diante indefinidamente, de modo que o conjunto dos textos só fala de si mesmo sem jamais chegar a se referir a um objeto verdadeiramente exterior. Concedendo que o texto não é um todo fechado, asseguram que o mundo textual no seu conjunto o é.

Mas isso não melhora em nada a situação, porque um texto não é outro texto, e restaria explicar como um texto pode ter por objeto outro texto sem a mediação de algo que não é texto, como por exemplo os olhos do leitor, o papel ou, no caso da leitura em voz alta, o ar. Afinal, textos não lêem textos.

Evidentemente o clausurista fanático poderia objetar que essa mediação é apenas a condição exterior da existência dos textos e nada tem a ver com o seu significado, mas, esta afirmação por sua vez, distinguindo entre o que é texto e o que não é, fala de algo que não é texto. Ela escapa, portanto, à regra que proclama. Então, ou admitimos que essa afirmação não é texto, embora possa ser feita por escrito, ou admitimos que pelo menos um texto, isto é, aquele mesmo que o nosso clausurista acaba de escrever, escapa à lei universal da clausura textual – o que nos coloca na desagradável contingência de ter de justificar teoreticamente essa mágica exceção.

Não resta, enfim, para explicar o prestígio hipnótico dessas teorias, senão a hipótese de que a impossibilidade mesma de perceber aí algum sentido razoável contribua para fixar nelas, como num quebra-cabeças indefinidamente auto-renovável, a atenção do leitor. Como a busca de solução ao que não tem solução é um movimento masturbatório que excita o desejo e a fantasia em progressão geométrica à medida que aumenta a intensidade da dedicação, e vice-versa, logo o leitor entra num estado alterado que, com um pouco de boa vontade, será tomado por sinal de inteligência. E como, enfim, esse estado é compartilhado por milhares de pessoas dedicadas por ofício universitário a esse gênero de práticas, acaba por se formar entre elas algo como um campo semântico especial, semelhante ao dos drogados ou ao dos aficionados de UFOs, que pela interconfirmação de cacoetes verbais lhes dá o sentimento de saber do que estão falando – como se fosse possível, na sua teoria, falar de alguma coisa.

Uma boa parte da nossa atividade universitária no domínio das ciências humanas consiste precisamente disso e de nada mais.

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