Yearly archive for 1998

Identidade e univocidade

Apostila do Seminário de Filosofia

Rascunho para uma aula do Seminário de Filosofia

15 de junho de 1998

Este rascunho faz parte da obra em preparo, O Olho do Sol, onde compõe, na massa das 700 páginas redigidas até agora, a primeira seção do capítulo “Da metafísica dogmática à metafísica crítica – e vice-versa”. Será usado brevemente como base para a exposição oral no Seminário de Filosofia e por isto é divulgado aqui para notificação dos alunos. – O. de C.

1. Definições

1. Metafísica é a ciência das necessidades supremas que abarcam e subordinam todas as outras.

2. Necessidade (de nec cedo = não ceder) é ter de ser, não poder não ser. Necessidade é impossibilidade do contrário.

3. Metafísica crítica é a parte dessa ciência que aborda os problemas e as dificuldades que se apresentam ao investigador na busca das necessidades supremas.

4. Metafísica dogmática é a discriminação e afirmação das necessidades supremas, bem como o desdobramento de suas consequências imediatas para os diversos setores do conhecimento humano.

5. Incumbe à metafísica o estudo da possibilidade como tal e da impossibilidade como tal, bem como das diversas gradações e modos da possibilidade, que encaradas quantitativamente se chamarão probabilidades.

2. Axiomas

1. Proposição auto-evidente é aquela cuja contraditória não pode ser formulada numa proposição logicamente unívoca.

2. As proposições metafísicas puras, isto é, aquelas que expressam necessidades supremas, devem ser todas auto-evidentes.

3. Toda prova funda-se em princípios auto-evidentes.

4. Um princípio é auto-evidente ou não é. Não se pode simplesmente “tomar como” auto-evidente um princípio que não o seja. Dito de outro modo: não pode haver princípio hipoteticamente auto-evidente (embora possa, naturalmente, haver princípios hipoteticamente verdadeiros).

5. As condições psicológicas que permitem captar a evidência de um princípio podem variar de homem para homem, portanto o sentimento de certeza nada tem a ver com a auto-evidência.

3. Primeiro enunciado do princípio metafísico supremo, ou Princípio da Integridade.

1. Todo sujeito de uma proposição, na medida em que possa ser também sujeito de uma ação ou objeto de uma ação realizada por outro sujeito também capaz de ser objeto de ação, é um.

Os sujeitos ditos meramente lógico-formais, ou ideais, não são objetos de ação, nem mesmo da “ação” de ser pensados; pois o que se pensa é o seu conceito apenas, ou o termo que o designa, e não o objeto como tal.

Sujeito impossível é aquele cuja definição implica sua inexistência, não apenas de maneira lógica, mas auto-evidente; isto é, um sujeito é impossível quando a afirmação de sua existência não pode ser logicamente unívoca.

2. Logo, todo sujeito é íntegro, e tudo quanto se oponha real ou hipoteticamente à sua integridade exige, real ou hipoteticamente, a sua supressão.

3. A supressão tem duas formas: 1ª negação, 2ª, redução.

4. A negação pode ser terminante ou condicional. Negação terminante é aquela que priva o sujeito, real ou hipoteticamente, da possibilidade de ser sujeito de ação ou paixão. Negação condicional é aquela que, real ou hipoteticamente, priva o ser de ser sujeito de algumas ações ou paixões (determinadas ou indeterminadas).

5. A redução tem duas formas: 1ª redução a seus elementos, ou redução analítica; 2ª, redução a outro sujeito, ou redução sintética.

6. Sujeito absolutamente necessário é aquele cuja definição mesma exclua, de maneira auto-evidente, sua redução analítica ou sintética. Dito de outro modo: é aquele cuja redução analítica ou sintética não possa ser enunciada numa proposição logicamente unívoca.

4. Das proposições auto-evidentes

1. O princípio de identidade A = A é auto-evidente, não porque tal nos pareça ou porque tenhamos um sentimento de certeza de que é auto-evidente, mas porque sua contraditória, A ¹ A, tem duplo sentido: se A ¹ A, o sujeito da proposição não é igual ao seu predicado, mas, sendo a proposição reversível — o predicado tornando-se sujeito, e o sujeito predicado —, temos então dois sujeitos diferentes, que são ambos sujeitos da mesma proposição: A1 ¹ A2. Logo, a sentença A ¹ A não é unívoca e não pode ser unívoca, donde se patenteia que A = A é auto-evidente.

2. A objeção tola de que essa demonstração por sua vez dá por pressuposto o princípio de identidade cai ante a verificação de que a objeção também o dá por pressuposto. O propósito aliás não é aqui “demonstrar” o princípio de identidade mas sim demonstrar a impossibilidade de sua negação unívoca. Se na antiga lógica se dizia que uma proposição auto-evidente nem requer nem admite provas, era isto o que no fundo se queria dizer, sem chegar a dizê-lo, talvez por não havê-lo percebido claramente: Não há nada a objetar ao princípio de identidade, a não ser proposições de duplo sentido, isto é, sem sentido.

3. Portanto, se não há demonstração lógica de um princípio auto-evidente, há, sim, da impossibilidade da sua contraditória. Isto aplica-se a todos os princípios lógicos e metafísicos.

5. Que o Princípio da Integridade é auto-evidente

1. Ação é mudança de estado no tempo e/ou no espaço.

2. Adoto provisoriamente a definição do tempo como forma das sucessões e do espaço como forma da simultaneidade, a que voltarei mais adiante.

3. Estado é etapa de mudança.

4. Só há três tipos de mudança: a mudança de estado ou as duas reduções.

5. A mudança de estado subentende a permanência do sujeito.

6. A redução analítica subentende que as partes pertencem a um mesmo sujeito.

7. A redução sintética real subentende que aquele em que o sujeito foi absorvido não fosse ele.

8. A redução sintética hipotética ou subentende a possibilidade da redução sintética real ou é impossível.

9. Logo, todo sujeito que é objeto de ação (isto é, sujeito de paixão) é um e o mesmo, não muitos ou outro.

10. A ação consiste em mudar um outro ou mudar-se a si mesmo, ou ainda em mudar ao outro mudando-se também a si mesmo.

11. As três hipóteses subentendem a unidade e mesmidade do sujeito, conforme já demonstrado nos itens de 1 a 9. Se o sujeito que muda o outro não muda de estado, fica o mesmo. Se muda de estado, é o mesmo em outro estado. Logo, o sujeito de qualquer ação é um e o mesmo.

12. Estas proposições são não apenas logicamente certas mas auto-evidentes: suas contraditórias não são unívocas. Vejamos: A1 muda para o estado A2. Se o sujeito no estado A2 não é o mesmo A do estado anterior, então não foi A1 o sujeito de mudança; se, inversamente, o estado A2 não se refere ao mesmo sujeito A, então A2 não é predicado da proposição referente à mudança de A1. É impossível decidir se a negação da continuidade de A de A1 para A2 diz que não houve a mudança ou que o sujeito foi outro. A negação é portanto ambígua, ou equívoca. Não tem sentido. Logo, a unidade do sujeito da mudança (sujeito da ação ou da paixão) é auto-evidente.

6. Que não há auto-evidência hipotética

1. Para que uma evidência fosse hipotética, seria necessário que sua contraditória pudesse ser admitida como hipotética também.

2. Mas a contraditória de uma evidência é ambígua, logo sua formulação não conteria somente a negação da evidência e sim também sua afirmação.

3. Logo, a evidência não pode ser hipotética. Ou uma proposição é evidente, ou não é. O critério da impossibilidade da contraditória unívoca resolverá todas as dúvidas que se apresentarem.

7. Que o auto-evidente é necessariamente verdadeiro

1. Não podendo ser hipoteticamente verdadeiro, o auto-evidente só pode ser taxativamente verdadeiro.

2. Não tem sentido formular uma sentença como “x é hipoteticamente taxativamente verdadeiro”, que recairia nas objeções do item 2 do § 6.

3. Logo, não há alternativa senão aceitar a verdade da evidência.

4. A mente, no entanto, pode-se recusar a fazê-lo. Por que o homem pode recusar a evidência? Porque ele pode se recusar a inteligir. Porque o exercício da inteligência, no homem, é livre e não necessário, já que, se fosse necessário, o homem inteligiria tudo necessariamente, coisa que se vê, por experiência, que não acontece, mas que a definição mesma do homem, adiante, nos esclarecerá em seu sentido metafísico mais profundo.

5. A recusa da evidência pode ter significado moral e psicológico, mas intelectualmente nada significa e cai fora da esfera de interesse da metafísica.

8. Outro exemplo de proposição auto-evidente

1. “Eu estou aqui”: Esta proposição é auto-evidente sempre que proferida por um sujeito a respeito de si mesmo, não é tautológica e é unívoca.

2. Sua contraditória, “Eu não estou aqui” significa “Não sou eu quem está aqui”, ou “Este lugar não é aqui”? Sendo impossível decidir, a proposição é ambígua, e portanto “Eu estou aqui” é auto-evidente.

9. Que a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente e necessariamente verdadeira

1. Um ser absolutamente necessário existe necessariamente, diz a prova de Sto. Anselmo.

2. A objeção de Kant é que o ser assim definido é definido por nós, portanto sua exitência é hipotética, fundando-se na suposição — feita por nós — de que o ser nela definido é absolutamente necessário.

2. A contraditória é “Um ser absolutamente necessário não existe necessariamente” ou “Um ser absolutamente necessario necessariamente inexiste?” Sendo impossível decidir, é proposição equívoca e não tem sentido.

3. Logo, a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente.

4. Não havendo auto-evidência hipotética (7:1-5), a prova de Sto. Anselmo é necessariamente verdadeira.

10. Que não existem auto-evidências lógicas puramente formais, isto é, que não sejam também ontológicas

1. Verdade puramente formal é aquela que se verifica necessariamente no campo das relações lógicas, não porém necessariamente no campo da experiência. É, portanto, uma proposição hipotética.

2. Não existindo auto-evidências hipotéticas, nenhuma proposição auto-evidente é puramente formal.

11. O domínio da Lógica

1. Toda proposição lógica funda-se em última análise em princípios auto-evidentes. Por que então o domínio do lógico não coincide inteiramente com o do verdadeiro? É porque o conjunto das consequências logicamente necessárias, podendo partir de qualquer premissa e não de premissas auto-evidentes, não é auto-evidente, apenas logicamente consistente.

2. Identifica-se, portanto, com a extensão do que necessariamente possível, não necessariamente verdadeiro. Ou seja: é impossível que uma consequência lógica deduzida de princípios auto-evidentes seja impossível, mas nem todo o possível é necessário.

3. A lógica distingue-se pois da metafísica na medida em que esta afirma positivamente o necessário, ao passo que aquela apenas afirma apenas a possibilidade necessária.

4. A possibilidade necessária funda-se no necessário enquanto tal e não é um domínio independente, de vez que o “necessário hipotético” só existe a título de hipótese impossível. Ora, a lógica sem fundamento metafísico só poderia fundar-se no necessário hipotético e, portanto, ela própria só existe como hipótese impossível. A fragmentação das lógicas modernas deve-se precisamente à impossibilidade de reduzir as hipóteses impossíveis à unidade do necessário.
[Continua]

Apêndice: uma discussão no Fórum Sapientia

Reproduzo a seguir uma mensagem enviada ao fórum desta homepage pelo participante que adotou o pseudônimo de Villiers de L’Isle-Adam e a resposta que lhe dei. Essa mensagem foi que motivou a publicação do texto acima nesta homepage e a decisão de expor o assunto na próxima aula do Seminário de Filosofia. – O. de C.

Mensagem de Villiers

Prezados amigos,

Tenciono discutir, no presente tópico, algumas questões relativas ao célebre ‘princípio da não-contradição’ formulado por Aristóteles; para tanto, pretendo expor à consideração dos senhores um artigo sobre o supracitado tema, de lavra do notável lógico, matemático e filósofo polonês Jan Lukasiewicz (1878-1956), um dos expoentes, ao lado de Kazimierz Twardowski (1866-1938) e Stanislaw Lesniewski (1886-1939), da renomada escola de lógica que se formou nas universidades de Lvov e Varsóvia. O estudo de Lukasiewicz, “O Zasadzie Sprecznosci u Arystotelesa: Studium Krytyczne”, foi publicado originalmente 1910, podendo, no entanto, ser encontrado no número XXIV da Review of Metaphysics, traduzido por Michael V. Wedin sob o título “On the Principle of Contradiction in Aristotle: A Critical Study”.

Aristóteles, no Livro IV da Metafísica, apresenta o princípio da não-contradição de três maneiras distintas, que serão denominadas por Lukasiewicz como formulações ‘ontológica’, ‘lógica’ e ‘psicológica’. O esforço analítico do lógico polonês, todavia, irá se concentrar sobretudo nas formulações ontológica e lógica. Para o Estagirita, elas são equivalentes, tendo-se em mente que uma proposição, para ser verdadeira, deve estar conforme à realidade objetiva. As formulações ontológica e lógica seriam, portanto, verdadeiras pela circunstância de o mundo ser, metafisicamente, tal como é. Devemos ainda ressaltar que o princípio da não-contradição é, na perspectiva de Aristóteles, uma lei final, indemonstrável. Exigir uma demonstração, uma fundamentação última do ‘princípio’, seria incidir num retrocesso que não poderia deixar de ser infinito, incidir numa exigência que, pela própria natureza da questão em pauta, não poderia ser satisfeita. E, se existe algo que pode ser conhecido sem provas, que haveria de mais ajustado a essa espécie de conhecimento do que a lei da não-contradição, um princípio do qual é impossível duvidar ao pensarmos?

Com o propósito, todavia, de evidenciar a necessidade do princípio da não-contradição, o Estagirita propõe uma série de argumentos que, refutando a possibilidade da contradição na ordem do Discurso, procuram justificar o princípio. Lukasiewicz denomina tais argumentos como “demonstrações elênticas e apagógicas”, muito embora Aristóteles, deve-se sublinhar, jamais tenha pensado neste conjunto de deduções em termos de demonstrações ‘positivas’ do princípio. Parece evidente, a meu juízo, que o objetivo da estratégia de Aristóteles é o de comprovar que, admitindo-se a contradição, destrói-se o Discurso, rompe-se a possibilidade de comunicação racional, uma vez que os símbolos deixam de atuar como símbolos, não mais podendo refletir a Realidade no Discurso. Além disso, Aristóteles procura evidenciar, especialmente nas demonstrações apagógicas, as conseqüências absurdas a que somos levados quando negamos o princípio da não-contradição.

Não sendo razoável, e nem tampouco desejável, reproduzir aqui todos os passos da minuciosa análise de Lukasiewicz, gostaria de examinar, no entanto, as considerações mais relevantes que o lógico polonês extraiu de seu percurso argumentativo.

Em primeiro lugar, Lukasiewicz constata que o princípio da não-contradição não pode ser demonstrado com base em sua evidência; com efeito, a ‘evidência’ em si mesma não constitui critério seguro de verdade. Também resultaria inconseqüente, por outro lado, a tentativa de se derivar o Princípio a partir de nossa estrutura psíquica, uma vez que leis psicológicas apenas são suscetíveis de comprovação através do método experimental, e este não nos autoriza sequer a formular a Lei da não-contradição como princípio válido em primeira aproximação. Uma terceira possibilidade seria, então, procurar deduzir o Princípio da definição de ‘negação’ ou de ‘falsidade’. Se “A não é B” exprime, por exemplo, simplesmente a falsidade de “A é B”, para natural concluir que essa definição acarreta o Princípio. Contudo, nos diz Lukasiewicz, isto não ocorre na realidade: mesmo que aceitemos como correta a definição precedente de falsidade, nada impede que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras; apenas se impõe, como conseqüência, que a proposição “A é B” é simultaneamente falsa e verdadeira. A Lei da não-contradição envolve a noção de conjunção, e não decorre unicamente da definição de falsidade (ou negação). O lógico polonês nos chama a atenção para outra definição de ‘verdade’ e ‘falsidade’ que, de uma certa maneira, parece ser mais fecunda que a tradicional: a proposição “A é B” é verdadeira se corresponde a algo objetivo; falsa, em caso contrário. Similarmente, “A não é B” é uma proposição verdadeira se representa vínculo objetivo; falsa, caso tal fato não se dê. Levando-se em consideração tais critérios, nada impede ‘a priori’ que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras, desde que representem situações objetivas.

Lukasiewicz também observa que qualquer defesa do princípio da não-contradição deve, necessariamente, levar em conta o fato de que existem ‘objetos contraditórios’, como, por exemplo, o Círculo Quadrado de Meinong. Para tais objetos, claro está que o Princípio não é válido. Obviamente o lógico polonês não pressupõe que Aristóteles pudesse ter trabalhado com base em tais considerações, que fazem parte de um acervo de estudos que começou a se desenvolver apenas a partir de meados do século XIX, no esteio do florescimento da lógica simbólica. Entretanto, isso não nos impede de salientar a relevância intrínseca da observação de Lukasiewicz: a existência de ‘objetos contraditórios’ foi confirmada pelos desdobramentos recentes da lógica, particularmente pela Teoria dos sistemas formais inconsistentes. Podemos hoje atestar a existência de teorias lógico-matemáticas onde aparecem objetos contraditórios e que, por conseguinte, derrogam o princípio da não-contradição. Tendo em vista tais perspectivas, o Princípio não se mostra tão absoluto e intocável quanto poderia parecer à primeira vista. Aliás, Lukasiewicz afirma que, mesmo para Aristóteles, o princípio da não-contradição não poderia ser uma lei suprema, ao menos na acepção de que constitui pressuposição necessária de todos os demais axiomas lógicos. Citando célebre passagem de Aristóteles nos Analíticos Posteriores (An. Post. A, 11, 77a 10-22), o lógico polonês assevera que o seguinte silogismo seria válido, de acordo com os postulados do Estagirita:

B é A (e também não é não-A)
C, que é não-C, é B e não-B
_________________________

C é A (e não é também não-A)
O silogismo anterior é, portanto, válido, embora a lei da não-contradição seja violada. Meus parcos conhecimentos de silogística não me permitem verificar se, de facto, o silogismo proposto por Lukasiewicz é válido ou não no quadro da lógica aristotélica; no entanto, se o lógico polonês estiver correto, será imperativo aceitarmos a existência de leis válidas de raciocínio que independem do princípio da não-contradição.

A questão central a que agora chegamos pode ser apresentada da seguinte forma: existem ‘objetos’ em relação aos quais estamos certos da vigência do princípio da não-contradição? Em sua análise, Lukasiewicz irá destinguir três tipos de objetos: 1) os objetos reais; 2) as “abstrações construtivas”, livres criações do intelecto, como, por exemplo, os objetos da matemática clássica; 3) as “abstrações reconstrutivas”, que são conceitos elaborados para representar coisas reais.

No tocante às abstrações construtivas, paradoxos como o que Bertrand Russell (1872-1970) descobriu em 1901, ao considerar a questão do Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo, indicam que, na maioria dos casos, jamais teremos certeza de que não irão violar o princípio da não-contradição. No que concerne às abstrações reconstrutivas, que bem espelham o realidade objetiva, e aos objetos reais, eles parecem estar protegidos da contradição. Com efeito, parece haver certeza de que não existem contradições diretamente perceptíveis na Realidade, pois as negações correlacionadas a juízos de percepção não são elas mesmas perceptíveis, pelo menos em nossa experiência cotidiana. No atual estágio de nosso conhecimento, temos a tendência a admitir como correta a constatação de qualquer contradição ‘real’ só pode ser ‘mediata’, resultado de inferências. Por outro lado, no entanto, não podemos esquecer o fato de que, desde os primórdios da filosofia, é recorrente a tese de que o ‘movimento’ e a ‘mudança’ necessariamente envolvem contradições (a este respeito, podem ser mencionadas as aporias de Zenão de Eléia). Muito embora essas dificuldades lógicas tenham sido sempre eludidas por meio de esquemas teóricos, posto que decorrem de inferências, não parece haver nenhum prova definitiva de que não existam contradições no ‘mundo’ objetivo. Portanto, não existe, também, qualquer prova positiva e inequívoca de que o princípio da não-contradição possui plena vigência em relação aos objetos reais e abstrações reconstrutivas. Contudo, na medida em que podemos verificar que o Princípio é ‘útil’, devemos encará-lo apenas como suposição ou hipótese que norteia e confere forma à indagação científica, regulamentando certas teorizações do Real.

Para Lukasiewicz, pois, o princípio da não-contradição carece de qualquer dignidade lógica a priori; possui, não obstante, um valor ético e ‘prático’ sumamente importante. Como enfatiza o lógico polonês, se não aceitássemos a validade do Princípio para as atividades ‘práticas’, estaríamos sujeitos a toda sorte de problemas. Assim sendo, para a vida ordinária (atividades comunicativas, sociais, etc.), como Aristóteles já havia assinalado, o princípio da não-contradição constitui pressuposto fundamental. Todavia, é necessário sublinhar que imprescindibilidade prático-ética do Princípio é matéria totalmente distinta de sua validez lógico-teórica. A conclusão de Lukasiewicz a este respeito não deixa de ser assaz perturbadora: a necessidade de se reconhecer como ‘válida’ a lei da não-contradição é tão somente um sintoma da imperfeição ética e intelectual do Homem. O lógico polonês sustenta que Aristóteles percebeu a importância prático-ética do princípio da não-contradição, mesmo que tal constatação não tenha sido claramente formulada em sua obra. Numa época em que o declínio político da Grécia já era patente, o Estagirita tornou-se o fundador e principal promotor de um trabalho filosófico-científico sistemático e de grande rigor. É muito provável que o filósofo grego, especula Lukasiewicz, encarasse todo esse esforço intelectual como um instrumento poderoso para a futura grandeza de sua nação. A negação do Princípio, por conseguinte, deixaria livre o caminho para toda a sorte de falsidades e incertezas, abalando as então frágeis estruturas da investigação científica. Por esse motivo, observa o lógico polonês, Aristóteles voltou-se contra os oponentes do Princípio de modo fervoroso, com uma veemência de linguagem pouco habitual em sua obra. Numa analogia singular, Lukasiewicz nos diz que o filósofo grego combatia pelo princípio da não-contradição como se duelasse por bens pessoais.

Concluindo seu artigo, Lukasiewicz argumenta que Aristóteles, talvez justamente por ter percebido a fraqueza e a inconsistência de seus postulados, mas tendo plena consciência da importância ‘prática’ que ela envolvia, acabou por estabelecer o princípio da não-contradição como fronteira última que não poderia ser ultrapassada por um discurso racional.

Encerrando está já demasiado longa mensagem, devo dizer que, na qualidade de mero principiante no estudo de Aristóteles, não possuo os predicados necessários para asseverar a pertinência das posições de Jan Lukasiewicz a respeito da lógica aristotélica; se não posso afiançar, no entanto, a veracidade de suas críticas, gostaria de louvar, em primeiro lugar, a invulgar sutileza conceitual da engenharia analítica desenvolvida pela lógico polonês, bem como a criatividade e ousadia de suas proposições. Gostaria de ter a oportunidade de discutir estas idéias com estudiosos abalizados de Aristóteles, e gostaria, sobretudo, de saber como o professor Olavo de Carvalho, sendo um profundo conhecedor da filosofia aristotélica, avaliaria o pensamento de Lukasiewicz.
Cordialmente,

Villiers de L’Isle-Adam

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezado amigo,

Você e os demais participantes estão elevando este fórum ao nível do mais importante debate cultural brasileiro dos últimos anos, talvez o único importante, se por esta palavra se entende aquilo que toca em problemas essenciais e não aquilo que é tocado pelas graças da mídia iletrada.

Quanto às suas observações, não tenho em mãos no momento o famoso estudo de Lukasiewicz, nem posso dar a resposta extensiva que elas merecem. O que posso dizer por enquanto é que:

O princípio de identidade é de ordem metafísica e sua contestação, para valer, tem de ser metafisicamente válida. A de Lukasiewicz não é nem pretende ser. Ela pretende apenas demonstrar que na lógica construtivista podemos lidar com objetos contraditórios (coisa que Aristóteles não apenas não contesta, mas afirma resolutamente), e obviamente todos os objetos dessa lógica existem apenas como definições hipotéticas e não têm o mínimo alcance metafísico. A possibilidade de construir raciocínios contraditórios é a base mesma da dialética de Aristóteles, mas Aristóteles jamais cairia na esparrela de confundir a ratio arguendi com a ratio essendi. Quando Lukasiewicz afirma que “existem” objetos contraditórios, a palavra “existência” é aí usada para designar a mera possibilidade de uma coisa ser logicamente construída. É um erro tão primário que não mereceria atenção, se não fosse pela elegante linguagem lógica que o encobre.

Toda a argumentação de Lukasiewicz destinada a impugnar o princípio de identidade subentende a identidade das proposições e conceitos que a expressam. Este é o típico caso de uma regra geral que tenho adotado como critério para o exame crítico de teorias filosóficas: quando o fato mesmo de uma teoria ser enunciada desmente o conteúdo dessa teoria, a teoria pode ser descartada como simples caso de confusão mental. Quando Lukasiewicz afirma que as proposições “A é B” e “A não é B” podem coexistir logicamente, ele não apenas não distingue entre coexistência “in re” e “in verbis” (distinção que está fora do alcance do puro construtivismo), como também subententende como constantes e idênticas a si mesmas as definições de A e de B, pois, se lhes aplicasse o mesmo princípio da coexistência dos contraditórios que acaba de afirmar, não teria duas e sim quatro definições, e assim por diante indefinidamente, o que mostra que sua pretensa contestação do princípio de identidade dá por pressuposta a validade desse mesmo princípio, apenas mostrando que sua negação é pensável, porém pensável, precisamente, como autocontradição que se automultiplica indefinidamente.

Toda essa confusão nasce do mau hábito de cortar as ligações da lógica com a ontologia, obtendo uma lógica de pura invenção construtivista da qual se tiram, em seguida conclusões que pretendem ser ontologicamente válidas, introduzindo subrepticiamente no discurso termos como “existência”. Tudo isso é de uma burrice sem par, aliada a uma formidável malícia.

Dizer, por exemplo, que a noção de identidade envolve a noção de conjunção, é coisa válida em pura lógica construtivista, mas não em metafísica. Na identidade de um ser consigo mesmo não há conjunção nenhuma. A conjunção entra em jogo apenas na construção da proposição lógica que traduz essa identidade para o microcosmo verbal. Atribuir, retroativamente, à identidade do ser as qualidades formais da proposição que o designa é o mesmo que pentear, em vez dos próprios cabelos, a sua imagem no espelho.

É verdade que Lukasiewicz admite a distinção entre validade lógica e ontológica, mas, na medida em que ele admite também uma lógica não-ontológica que ao mesmo tempo possa servir de critério de veracidade nas ciências, essa admissão fica sem efeito, de modo que ele pode continuar a tirar impunemente conclusões ontológicas de puros formalismos construtivos. Enfim, é uma confusão dos diabos.

Os demais esclarecimentos que posso dar a respeito estão no texto sobre “Identidade e univocidade” – trecho do meu livro em preparo “O Olho do Sol” – que eu pretendia divulgar mais tarde, mas que esta discussão me sugere ser oportuno descarregar na minha homepage agora mesmo.
Um abração do

Olavo de Carvalho

Neuroses do Leste Europeu

por Andrei Pleshu

Ministro das Relações Exteriores da Romênia
Diretor do New Europe College de Bucareste

15 de junho de 1998

Tradução de Pedro Sette Câmara e Olavo de Carvalho

 

Andrei Pleshu

Andrei Pleshu é, no ambiente rígido e artificial da diplomacia mundial, algo como a presença solar de uma criança num asilo de velhos. A inteligência prodigiosa, a cultura, vivacidade, a sinceridade, o inesgotável senso de humor, o tom direto e franco com que diz o que ninguém diz, já fizeram desse representante de um país pequeno e marginal o centro natural de muitos encontros internacionais de ministros de Estado. Famoso e respeitado como intelectual desde antes de assumir o Ministério das Relações Exteriores, Pleshu é autor de livros onde a profundidade da meditação filosófica transparece através de um estilo acentuadamente poético de escrever. Nas conversações pessoais, esse homem volumoso com barba e voz de profeta passa com a maior naturalidade de uma discussão sobre a metafísica de Lucian Blaga às piadas brasileiras de papagaio, o único item que posso me gabar de ter acrescentado à sua erudição. A conferência “Algumas Neuroses do Leste” foi pronunciada em 15 de junho de 1998 no Stifteverband für die deutsche Wissenschaft em Wiesbaden e publicada no Romanian Journal of International Affairs, vol. IV, Special Issue 1, 1998. — O. de C.

Um dos passatempos prediletos dos intelectuais é a neurose. Por neurose entendo a capacidade de descobrir em qualquer situação um componente irritante, uma pitada de veneno. Todo intelectual verdadeiro tem a vocação para a insatisfação, o talento de sentir-se mal. Não faz sentido, agora, ficar perguntando se sempre foi assim. O que é certo é que é assim na era moderna. Nos antigos países comunistas, a neurose intelectual tem uma sintomatologia específica, da qual posso falar com alguma competência, não na condição de analista distanciado, mas de paciente crônico. O curioso é que a grande virada de 1989 intensificou as neuroses, em vez de curá-las. Antes, as frentes eram bem definidas: de um lado, o poder totalitário; de outro, o intelectual resistente. De um lado, os campos de concentração socialistas enquanto variante mundana do Inferno; de outro, o “mundo livre” enquanto variante mundana do Paraíso. Não havia nuances, e onde não há nuances a neurose está sob controle. Porém, desde 1989 vimo-nos sufocados sob uma multidão de nuances. As liberdades adquiridas anestesiam o sentimento de fatalidade, estimulando, ao contrário, a euforia do possível. O possível significa a oportunidade de escolher. E quando um intelectual tem de escolher alguma coisa, aí a neurose está por perto.

Primeiro, descobrimos que, se o universo totalitário tinha sido nosso grande infortúnio, nosso drama histórico, tínhamos pelo menos conseguido nos adaptar: ele era para nós uma face do destino e um fato da vida. Do nosso destino, da nossa vida diária. Em outras palavras, identificávamo-nos com aquilo que vivíamos, como você se identifica com a sua dor de dentes, com a sua insônia, com o seu instinto de sobrevivência. Isto é o que explica a existência de saudosistas, isto é, daqueles que falam da experiência da ditadura no mesmo tom em que nossos avós falam da guerra, da prisão ou da miséria: as más recordações misturavam-se suavemente com uma espécie de consciência heróica e com a satisfação de tê-las superado. Mais ainda, elas eram a substância e o pano-de-fundo da nossa juventude. Movíamo-nos à vontade num ambiente adstringente, que tonificava nosso sentimento vital. Então a resistência, mais ou menos eficiente, mais ou menos ilusória, era em si mesma uma volúpia. Em suma, você podia viver e enganar a si mesmo com a idéia de que tinha uma vida difícil mas interessante. No entanto, agora, depois da “grande mudança”, você é obrigado a descobrir o lado sombrio da liberdade (geralmente chamado “problemas de transição”). É o tédio que vem de não ser mais incomodado pela censura, de ter perdido o “inimigo” tradicional; o tédio que vem da banalidade das viagens, da multiplicação de tentações, de mistura com a falta de recursos — que vem, enfim, de todas aqueles inconvenientes que normalmente acompanham os sonhos que viram realidade. A normalização é soporífera. Decepcionante. O que Timothy Garton Ash chamava de “os benefícios da adversidade”, a utilidade da perseguição, cai no esquecimento. Em lugar dela, agora você tem de descobrir as inconveniências da escolha e da responsabilidade. Os intelectuais confrontam-se com um novo dilema que produz novas neuroses. Quê devem fazer? Aproveitar a liberdade para finalmente fazer o que cada um quer ou adiar a realização das vocações para poder apoiar o esforço geral de reconstrução? Obviamente, qualquer das decisões é logo sentida como lamentável. O intelectual que fica à margem desse processo é tomado de culpa moral, e aquele que decide participar descobre a promiscuidade da política e a precariedade do seu talento pragmático. Ambos passam a ter insônia. O demônio cívico entra em conflito com o demônio espiritual. Qualquer tentativa de reconciliá-los seria suspeita de ingenuidade ou vaidade. Em outras palavras: ao invocar a necessidade de uma moralização da política ou o dever dos intelectuais para com a sociedade, a gente acaba caindo, no primeiro caso, numa inadequação utópica; e, no segundo, numa ambição hipócrita sedenta dos álibis mais nobres para um apetite carreirista dos mais banais.

No que diz respeito ao novo mundo que se abre diante do ex-campo de concentração socialista, não há dúvidas de que está cheio de virtudes e possibilidades tentadoras, mas sua constituição é fundamentalmente diferente do que tínhamos em mente. É um mundo melhor, mas é diferente do que imaginávamos. E não é ou não parece ser “melhor” em todos os aspectos. De qualquer modo, a relação entre o nosso mundo, ainda tonto com cinco décadas de totalitarismo, e o mundo confortavelmente instalado da Europa Ocidental, um mundo para o qual a democracia, o papel da lei e a prosperidade estão presentes diariamente, ainda não se consolidou da melhor maneira. Para cada um desses dois mundos, o “outro” é um apinhado de banalidades, uma mistura de falsas representações — incluindo vários Wunschvorstellungen (1) —, preconceitos e ignorância. A situação nos recorda o começo de um texto de Unamuno que diz que, quando Pedro e Juán conversam, na realidade há pelo menos seis pessoas conversando: o Pedro real e o Juán real, a imagem que Pedro faz de si mesmo e a imagem que Juán faz de si mesmo, e a imagem que Pedro faz de Juán e a imagem que Juán faz de Pedro. É isto o que acontece quando a Europa Oriental e a Europa Ocidental se encaram. Somos propensos a achar que o Ocidente é a solução absoluta de todas as nossas frustrações, o róseo inventário do que precisamos: liberdade, segurança, justiça e bem-estar social. Eventualmente admitimos que a perfeição não existe, que mesmo no Ocidente há alguns problemas, mas, em geral, qualquer tentativa de diminuir ou questionar o sucesso capitalista nos irrita, por nos fazer lembrar a retórica agressiva e deformante da ideologia partidária que distorceu nosso raciocínio durante décadas inteiras. Neste contexto, é inevitável que o menor desapontamento nos atire para os extremos. Quando a Terra dos Sonhos perde um pouco sua cor, quando rugas aparecem no rosto do anjo, o sonhador fica furioso. O Ocidente torna-se uma coisa satânica — o primo rico e impiedoso, o desumano a uto-satisfeito, o culpado por excelência. Aquele que nos entregou aos comunistas em 1945, e que agora nos examina tão detalhadamente com sua lente de aumento, que nos submete a testes desonrosos e nos trata com condescendência.

Por sua vez, o Ocidente começou tendo pena de nós (no tempo em que éramos fornecedores de sofrimento e dissidências), depois passou, no fim de 1989, por um breve episódio de entusiasmo fraterno (éramos heróis, estávamos rompendo as correntes, fazendo revoluções de sangue ou de veludo) e terminou por mostrar um ar polidamente constrangido com a nossa melancolia, a nossa impotência e o nosso atraso. O Oriente é o primo pobre e fracassado, além de cheio de pretensões. Ele não chega a ser um alter ego que falhou, mas é antes um aborto inútil. Aquele que precisa de ajuda sempre acaba ganhando ares antipáticos. O cidadão dos países “desenvolvidos” descobre, com alguma apreensão, que para “normalizar” a situação na Europa Oriental ele tem de abdicar de uma parte da sua própria normalidade. Por que ele deveria fazer isto?

Indubitavelmente, tanto a utopia quanto o ressentimento, tanto a pena quanto a raiva são reações inadequadas, que provavelmente só contribuirão para falsear a verdade dos dois mundos e impedir sua reunificação harmoniosa. O que a História, depois de 1989, trouxe de novo a esta relação? Para tornar as coisas mais simples, eu diria que passamos da inexistência de passaportes para a inexistência de vistos. Antes, o “mundo livre” estava pronto para receber você, mas o seu mundo, o “campo de concentração socialista” não deixava você sair, ou, se deixava, o fazia de maneira difícil, sob condições aviltantes. Agora, o seu mundo deixa você sair quando quiser. Ganhamos um dos direitos humanos fundamentais: o direito de ir e vir. Mas temos problemas com o mundo livre que, de repente, hesita em nos receber. O imigrante da Europa Oriental é uma calamidade. Não quero que pensem que estou reclamando de alguma coisa ou que não entendo os argumentos das embaixadas e consulados ocidentais. Quero somente mostrar que, às vezes, a “grande mudança” pela qual passamos consiste, ao menos na superfície, na troca de um bloqueio antigo por um novo. Um pouco melhor – porque é somente nosso atestado de identidade que está sendo censurado e não a identidade mesma. Nossa liberdade não está sendo suprimida: está sendo “dosada”.

Existe, no entanto, uma variante positiva a estimular as relações entre Oriente e Ocidente: não a reticência consular, mas a corrida para a integração européia, o restabelecimento dos padrões comuns. Tendo sido deixados, graças à suspensão comunista, fora das tendências gerais, agora nos é oferecida a chance de recuperar o horizonte de entrada na grande família da qual fomos excluídos arbitrariamente, tanto no plano político quanto no econômico, mas da qual nunca fomos excluídos geograficamente, historicamente e culturalmente. O problema da nossa integração européia coloca duas grandes questões: “Em quanto tempo?” e “Segundo qual critério?”. O ritmo depende, em grande parte, de nós. Mas e o critério? A primeira questão está diretamente ligada à nossa capacidade vital. Nós provaremos, ou não, que podemos ser atuantes, que ainda temos energia para nos recompor. O único inconveniente é a constante ameaça de um ciclo vicioso: não podemos nos integrar a menos que sejamos ajudados e não podemos ser ajudados a menos que pareçamos integrados. O problema não deixa de ser, de certa forma, de natureza técnica. Mas a segunda questão — a do critério — é pura metafísica. Porque o critério de integração depende da imagem que temos do espaço no qual desejamos nos integrar. A questão que se coloca, portanto, é nem mais nem menos que: “Que é a Europa?”. Espero não atiçar sua curiosidade ao ponto de fazer vocês esperarem por uma resposta. Não sou capaz de dizer o que vem a ser a Europa e, na verdade, não quero tentar descobrir isso agora. Mas posso dizer qual é a cara dela para aqueles que querem entrar. Mais precisamente, o quê em sua face nos parece um “modelo”, um “objetivo”, e uma exigência definitiva.

Vista de fora, a Europa é, antes de tudo, um lugar onde se fala amplamente o inglês: o acesso a este lugar impõe ao candidato um screening, é desejável que o processo de integração tenha um follow-up e que este processo seja all-inclusive. O candidato é assistido por certas catch-up facilities, e por um programa de tipo know-how. Apesar disso, nesta gigantesca anglofonia, flutua também um prestigioso termo francês: acquis communautaire. Ele se refere àquilo que os países desenvolvidos têm em comum, o resultado de séculos de evolução econômica, social e política: a riqueza da comunidade, a quintessência do progresso humano, a fundação da civilização pós-moderna – algo que vai das leis e instituições até o tamanho ideal dos ovos e tomates. Este é o horizonte que deve ser visado por todos os países candidatos. Conseqüentemente, o candidato é confrontado com um grande número de exigências, incluindo algumas q ue têm uma importância privilegiada: ecologia, direitos humanos, respeito pelas minorias, suspensão da discriminação étnica e sexual. Uma vez desenhada, esta mirífica paisagem termina por criar os sonhos, as frustrações e perplexidades do contemplador “não-integrado”. Primeiro, ele tem um problema de velocidade: como “apreender” tantos esplendores num tempo tão curto, com um painel de instrumentos tão pequeno e com uma estrutura psíquica convalescente. O fato é que você é confrontado com dúzias de prioridades a cada segundo. Tudo é prioridade. Em outras palavras, você tem somente prioridades. Nestas circustâncias, você só consegue ficar paralisado e gaguejar. Você tem de resolver ao mesmo tempo os buracos nas ruas, o vácuo legislativo, a poluição da água, a inflação, a pobreza, os direitos dos ho mossexuais, a proibição da propaganda de cigarros, a renovação das prisões, o que fazer com o lixo público, com o confessionalismo estreito, com a discriminação das mulheres, com a crise médica, a precariedade dos serviços, a reforma da polícia, a limpeza dos trens, a socialização dos prisioneiros, a educação dos ciganos, o renomeação das ruas, o financiamento para o teatro, a proteção aos animais, a preparação de novos passaportes, a modernização dos banheiros, a privatização, a reestruturação, o reaquecimento da economia, a reforma moral, a renovação de pessoal, a redefinição do sistema de educação, a troca de embaixadores, a consolidação da sociedade civil, o estímulo às ONGs, a renovação de hospitais, os menores abandonados, os pacientes de AIDS, as novas redes de máfia e muitas outras coisas. Tudo é obrigatório, tudo é urgente. Nesta pressa que não tolera hierarquias, cronogramas pacientes ou atrasos, surge inevitavelmente um problema de mentalidade. Confundido pelas cercas que tem de pular, o homem comum desenvolve uma espécie de indigestão ideológica. Ele não entende mais o que se espera dele, e se sente ameaçado, incompreendido, brutalizado. A Europa adquire, em sua mente, as aterrorizantes dimensões de um Obersturmbandführer, e a integração européia se lhe apresenta como uma corrida exaustiva. Dizem-lhe que a discriminação é má e ele se sente discriminado. Dizem-lhe que a tolerância é boa e ele se sente julgado com intolerância. Ele começa a associar, neuroticamente, princípios e valores heterogêneos. A exigência geral aponta para o nivelamento dos critérios. Tudo é igualmente importante. Ser europeu equivale a adotar uma plumagem multicolorida na qual as idéias, o dinheiro, os hábitos íntimos, as convicções religiosas e a qualidade da cerveja estão no mesmo plano. Surgem inocentes e cômicos malentendidos.

Quando o Parlamento romeno começou a discutir a abolição das leis que criminalizavam o homossexualismo, muitos camponeses, padres e comerciantes pensaram que o que estava sendo proposto era a legalização, isto é, a obrigatoriedade do homossexualismo… De qualquer modo, é difícil explicar ao desnorteado cidadão da transição que a entrada na Europa está diretamente ligada às suas preferências sexuais, ou à sua posição em relação às opções eróticas dos outros. E mesmo o cidadão mais educado não está livre de certas confusões. Ele achava que estava livre de tabus, mas descobre que tem de assumir novos tabus. Vejamos um exemplo: antes de 1989, era proibido ao intelectual romeno ler Mircea Eliade, porque a censura comunista proibia qualquer leitura de natureza religiosa. Agora, há uma tendência a que Mircea Eliade caia de novo sob suspeita, ficando difícil de citar ou mesmo até de ler, porque desta vez são trazidas à tona as orientações de extrema-direita que ele teve em sua juventude. Por outro lado, países que condenam severamente a inércia comunista de alguns governos do leste europeu toleram, ou quase mesmo aprovam, a reabilitação ou pelo menos a “desculpabilização” de alguns compromissos tipicamente comunistas de alguns de seus cidadãos. Confrontados com as dificuldades do ajustamento, sendo que citamos somente aquelas mais à mão, o homem do leste europeu está sempre sob a ameaça de uma depressão crônica. O que é, afinal, a Europa? Como Hippias em um dos diálogos da juventude de Platão, ele procura, incerto, por uma definição que decorra daquilo que a Europa mesma oferece a ele. “O que é o belo?”, pergunta-se o herói platônico. O belo é uma bela garota, responde primeiramente Hippias, misturando o atributo individual com o conceito. É assim que o aspirante à Europa pode se enganar: ele pode tomar um exemplo como uma definição, dizendo, por exemplo, “A Europa é um país europeu, como a França, ou a Alemanha, ou a Itália”. Provocado por Sócrates, Hippias continua suas explorações: o belo é o esplendor da matéria, do ouro. Um passo além, o belo é a harmonização, a funcionalidade, o cumprimento de um destino, o bem ou aquilo que provoca prazer desinteressado . Provocado pela União Européia, nosso homem do leste pode, ele também, arriscar uma série crescente de definições: a Europa é o dinheiro único, o mercado comum, a estabilidade de um modo de viver, o equilíbrio de direitos e deveres, a comunhão nos mesmos valores. Ao fim do diálogo de tipo platônico, os interlocutores concordam que é muito difícil definir o belo. As coisas terminam de maneira incerta. Todos nos encontramos hoje numa incerteza parecida: é muito difícil definir a Europa. E, para alguns, o problema é ainda pior, porque eles têm de, na ausência de uma definição, encontrar um jeito de integrar-se.

Apesar de todas estas complicações, podemos esperar — e temos razões para fazê-lo — que, num dado momento, num futuro não tão próximo, mas não tão distante, seremos reintegrados aos poucos grandes “clubes” dos quais queremos fazer parte. Mas, psicologicamente falando, confrontamo-nos, mesmo diante deste horizonte de esperança, com certas dificuldades. Os países da Europa oriental têm uma má relação com o tempo. Temos problemas com o passado, particularmente com o passado recente, que são cinqüenta anos de ditadura comunista. Temos problemas com o presente: na tentativa de trocar um sistema por outro, defrontamo-nos com todas as inconveniências dos períodos de transição, como a instabilidade, o baixo padrão de vida, a confusão de valores, a mudança radical de mentalidades por sobre um fundo desencorajador de inércia administrativa e social. Sim, e o que é menos comum, temos uma má experiência do futuro. Durante anos, a retórica do estado totalitário tentou compensar a ausência de soluções imediatas com sua supera bundância de um futuro “dourado”, garantido ideologicamente mas, de fato, indefinido. Diziam-nos que o hoje era difícil, mas que o amanhã seria maravilhoso, que a glória da atual geração consistia em seu desejo de sacrificar-se pelas gerações futuras. Esforço, paciência e esperança incondicional eram exigidas de nós. Agora, toda vez que mencionamos a União Européia e a Aliança Euro-Atlântica, nossos desejos são mais uma vez jogados para o futuro. Se tentarmos, conseguiremos – dizem-nos – atingir nossos objetivos dentro dos limites de um calendário incerto, que vai do ano 2000 a 2015 ou 2020. Esforço, paciência e esperança incondicional são, mais uma vez, exigências para garantir a felicidade de nossos netos. Obviamente, desta vez falam conosco de boa-fé, e as promessas feitas são mais realistas. Mas é inevitável que todo discurso a respeito de um futuro melhor nos traga “lembranças” muito desagradáveis…

As neuroses que descrevi até aqui são complementadas, no meu caso, com mais uma ainda. Num país que tem de encarar novas provocações, num momento de explorações e de crise de identidade, vejo-me numa situação que jamais imaginara para mim mesmo: a de Ministro das Relações Exteriores. Eu asseguro a vocês que é mais do que estimulante tentar fazer uma boa política no estrangeiro tendo um fundo de política doméstica tão precário. Você está como um comerciante que tem de fazer lucro tentando vender mercadorias virtuais.

Mas além dessa experiência há outra que talvez pareça ainda mais interessante: é o que um intelectual recém-chegado do lado de fora ao centro da vida diplomática mundial aprende a respeito dela. Amador (ainda), mas verde (ainda). Verde exatamente porque, sendo um amador, não teve ainda tempo para ser contaminado pela rotina da profissão. As palavras-chave que eu traria para caracterizar, do meu ponto-de-vista, a diplomacia contemporânea são aceleração, codificação e banalização.

Aceleração. O dia de trabalho de um diplomata é organizado, especialmente quando ele está em missão, segundo um horário impressionante. Num único dia de visita oficial, um ministro estrangeiro se encontra com um presidente (ou um monarca), um primeiro-ministro, dois ou três membros do governo (incluindo o Ministro de Relações Exteriores do país visitado), representantes da imprensa e da comunidade dos seus conterrâneos que vivem no país visitado, um grupo parlamentar, empresários, personalidades da vida pública etc.. A isto, some-se um café-da-manhã a trabalho, um almoço protocolar, um jantar e, às vezes, uma conferência… Tal programa não é feito dentro dos limites da escala humana. Os ritmos do homem normal, sua performance mental, suas capacidades físicas, não podem se adaptar por um longo tempo e em condições ótimas a um esforço desse tipo. A única solução é o estereótipo: você se mantém repetindo tenazmente a mesma mensagem, o mesmo sorriso, os mesmos gestos. Você é a vítima de um delírio mecânico. Você cruza – cada vez com mais velocidade e recursos cada vez mais débeis – um corredor previsível e anônimo. Cada conferência internacional traz outras, cada encontro começando com um rito circular, no qual os assuntos, os termos e as decisões já vêm prontos. Numa palavra, tudo isto junto poderia ser chamado de “diplomacia fast-food“. Talleyrand não teria sobrevivido a uma mecânica assim senão escolhendo entre a veleidade e a melancolia.

Codificação. As codificações – como já sugeri – são o salutar corolário da aceleração. A economia de tempo e de energia é possível somente graças à troca da comunicação real por códigos e formalismos. O consenso, na verdade, precede o debate. A declaração final é o primeiro documento que você recebe no início da reunião. Você sabe o que vai dizer e é tudo preparado por experts que, além disso, têm a delicadeza de tomar notas do que você diz, ainda que sejam eles mesmos os autores do texto. (Apesar disso, eu próprio reclamo a paternidade do texto presente.) Você sabe – com raras exceções – como tudo vai terminar. Se algo ainda continua imprevisível de algum modo, são os comentários dos jornalistas no dia seguinte. Falando de codificação, não resisto a invocar a quantidade de organizações internacionais e organismos expressados num labirinto de iniciais sibílicas. De Gaulle era fascinado pelo mistério das iniciais da ONU (Qu’est-ce-que ce machin-lá?). Hoje, ele teria de falar em OSCE, BSEC, CEI, CEFTA, EAPC, MERCOSUR, PREPCOM, SFOR, TRACECA, UNPREDEP etc. A cada ano, o número de organizações e comissões internacionais aumenta. Todos os tipos de reuniões tomam a agenda dos círculos diplomáticos, o que não acarreta necessariamente um aumento de diálogo. Você freqüentemente vê as mesmas pessoas, sem jamais ter a chance de verdadeiramente conhecê-las. Os momentos de “contato” real são reduzidos aos mínimos interst ícios oferecidos pelo protocolo: o coquetel, o almoço oficial (se não for “de trabalho”), a “foto de família”. Mas ainda nestes momentos tudo é reduzido a uma impressão inefável, à concisa cordialidade de uma resposta, às solidariedades de um círculo restrito. De resto, o código é esmagador. Você é “importante” e uma nulidade ao mesmo tempo. Mais do que você mesmo, você é tudo o que for permitido pelo seu crachá, pelo cartãozinho que marca seu lugar na mesa de negociações. Mesmo a língua que você fala torna-se um simples sinal, uma sugestão de um código preferencial, com conseqüências políticas. Isto é particularmente válido para um país como a Romênia, que não pode optar, sem um cálculo preciso, a respeito da maneira de se expressar. Se você falar romeno, ninguém irá compreendê-lo e ninguém irá traduzi-lo. Se você falar inglês, os franceses dirão que estão surpresos de verem o representante de um país francófono cometer essa indelicadeza. Se você falar francês, os anglófonos irão considerá-lo fora de moda. E se você falar alemão, ninguém acreditará que você vem da Romênia. O dilema é aparentemente pequeno, mas, dentro do contexto, pode desempenhar um papel inesperado.

Banalização. Não era comum, antigamente, que os encontros internacionais fossem tão comuns na vida diplomática. Uma conferência internacional tinha tudo para se tornar “histórica”, exatamente porque só ocorria a grandes intervalos, na véspera de acontecimentos importantes. Hoje, os encontros ministeriais tornaram-se uma atividade quase diária. O diplomata não é mais um símbolo plenipotenciário, uma posição de solenidade. Ele é um alto oficial, absorvido por uma escravidão linear. A decisão pertence antes às instituições que ele representa (presidentes, primeiros-ministros, parlamentos, partidos), e sua implementação à equipe de técnicos que o acompanha. O coeficiente de rotina e o componente convencional da vida diplomática é que são preponderantes. E aquele que, por imprudência, temperamento ou “diletantismo”, sai do típico, aquele que contradiz a norma, ainda que seja por um pedaço de frase, imediatamente cria uma comoção pública cujos resultados são imprevisíveis. O interlocutor subitamente abre os olhos, nota você, e, se você tiver sorte, ele reconhece, em particular, que você trouxe um tom um pouco mais arejado para o debate. Se você tiver azar, será arquivado sob as r ubricas “exotismo”, ou “esquisitice do leste”. O risco é grande. A banalização da vida diplomática também tem raízes no fato de que os encontros internacionais são geralmente confiscados por problemas secundários. Toca-se somente em problemas de natureza mais ou menos técnica ou então as pessoas se limitam a produzir um cronograma. Assuntos essenciais ficam intocados. Nenhum dos encontros da União Européia a que estive presente discutiu a “identidade” européia, nem o que significa o “alargamento” do espaço de uma civilização, nem as possíveis modalidades de integração das diferenças. Existe uma conversa sobre cotas, porcentagens, correlações econômicas e monetárias, que é sem dúvida muito útil, mas são raras as referências à essência dos acontecimentos, à sua substância e, eu ousaria dizer, à visão a partir da qual as ações serão decididas. Retrucar-me-iam que a diplomacia não é, de forma alguma, um colóquio filosófico. É verdade. Mas também não é uma simples burocracia. Corremos o risco de pensar de maneira esquemática, de perder a imaginação, a idéia, o entusiasmo. Corremos o risco de criar uma segurança embotada, uma prosperidade grudenta e uma unidade amorfa.

Quê fazer? Se eu não fosse ministro no momento em que falo com vocês (eu não era quando fui convidado para fazer esta conferência), poderia arriscar um rascunho de resposta. Mas, como ministro, eu estou no lugar do paciente, e não do terapeuta. Sou parte da paisagem que acabei de descrever. E não é possível que eu não identifique nesta paisagem, por enquanto, a brecha salvadora. Prefiro propor a vocês uma paisagem paralela, aquele em que vivi antes de chegar à minha perspectiva atual. Nos antigos países comunistas, freqüentemente vivíamos de soluções paralelas: uma cultura paralela à oficial, um conjunto de normas subterrâneas paralelas, uma economia paralela. Tendo esta experiência em mente, eu agora penso na possibilidade de uma diplomacia paralela. Não temos de inventá-la. Ela existe. Estive nela em 1992 no Wissenschaftskolleg em Berlin, e mais tarde em alguns institutos de estudos avançados, em Wassenaar, em Budapeste ou em Viena. Tentei formar um instituto assim em Bucareste e aprecio imaginar que fui bem sucedido. Nestes institutos, que não adotam “documentos finais”, que não criam comissões de controle ou forças de intervenção, que não criam nem desfazem fronteiras no mundo, uma elite relaxada mas responsável, racional, sem qualquer abuso sistemático ou ideologia formalizada, trava um intenso diálogo a respeito do mundo e dos destinos do homem. Vindos de todos os lugares e de todas as áreas, os membros destes institutos possuem, além das capacidades de seu espírito e de sua especialização, duas virtudes que estão em falta entre os diplomatas: eles têm liberdade interior e tempo. Quando se encontram, um verdadeiro encontro acontece; quando falam uns com os outros, realmente se comunicam; quando brigam, nenhuma embaixada fecha. Nestes institutos, o debate ainda é uma instituição eficiente, e a pesquisa é coloquial, corajosa, e orientada não para conjunturas, mas para fundamentos. Eles têm o estilo de uma diplomacia de boa qualidade, sem os seus servilismos. Jean-Paul Sartre disse uma vez que uma boa revista se faz dançando. Eu diria que o que eu vivi no Wissenschaftskolleg zu Berlin era a euforia sóbria da dança. A diplomacia pode tomar esta euforia sóbria como um modelo. E a integração européia e planetária poderá se tornar uma boa oportunidade para que o mundo reaprenda a dançar.

Assessoria gratuita

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 11 de junho de 1998

A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis e o Grupo Gay da Bahia acabam de pedir ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) a punição, por crime de charlatanismo , dos psicólogos que participarem do III Encontro Cristão sobre Homossexualismo, marcado para hoje em Viçosa, MG.

O encontro, que reunirá terapeutas, pastores e missionários, é promovido pela Exodus , a maior rede mundial de ministérios cristãos de ex-homossexuais, e tem por objetivo oferecer uma alternativa de inspiração religiosa às pessoas que desejem retornar a uma conduta sexual compatível com a moral evangélica.

Segundo a denúncia que as entidades gays e lésbicas enviaram ao CFP, todo psicólogo que participar desse acontecimento cometerá infração, porque:

1) A Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu o homossexualismo do Código Internacional de Doenças.

2) As propostas do encontro “não têm o mínimo embasamento médico ou psicológico, mas se baseiam apenas em considerações religiosas altamente discutíveis”.

3) A Associação Psiquiátrica Americana acha os ministérios de ex-gays fraudulentos e prejudiciais.

Além do castigo dos psicólogos, os reclamantes exigem do Conselho Federal de Psicologia que denuncie publicamente a proposta do encontro como “preconceituosa e discriminatória, inspirada em crendices religiosas”.

Do ponto de vista lógico, o que há a observar é o seguinte:

1) O fato de a OMS retirar o homossexualismo da lista de doenças quer dizer apenas que não há consenso científico suficiente para enquadrá-lo como doença. A implicação inevitável é que o homossexualismo não é um problema médico e sim um problema moral, sobre o qual cada um tem o direito de tomar posição conforme sua consciência: precisamente o contrário da conclusão que os gays pretendem tirar. A pretensão de proibir opiniões pessoais onde não haja consenso científico é absurda, além de totalitária. Mas, mesmo que houvesse consenso estabelecido, ir contra o consenso é um direito elementar e universal cuja negação implicaria automaticamente a proibição de emitir novas hipóteses e a paralisação, portanto, de toda pesquisa científica.

2) O homossexualismo é condenado, de maneira literal e inequívoca, no Antigo e no Novo Testamento , assim como nas escrituras sagradas dos muçulmanos e dos hinduístas. Qualquer fiel dessas religiões tem não somente o direito, mas o dever de proclamar sua repulsa a essa prática. Proibir que o façam é violar totalitariamente a consciência religiosa de dois terços da humanidade – uma parcela bem maior que a dos gays e lésbicas, por mais espalhafatosa que seja esta última. Se o direito de louvar o homossexualismo não é apenas o oposto complementar do direito de censurá-lo, então já não se trata mais de justiça e direitos humanos, e sim da ditadura de uma minoria rancorosa e fascista. Ninguém, em sã consciência, pode aceitar isso.

3) Ao proclamar que as crenças que embasam o encontro são “altamente discutíveis” e opor a elas a opinião da Associação Psiquiátrica Americana, o documento deixa subentendido que esta última é, por seu lado, absolutamente indiscutível – o que é uma tolice monumental, mesmo porque em ciência, por definição, tudo é essencialmente discutível e aliás é científico justamente por causa disto.

Mas é do ponto de vista jurídico que as coisas se tornam ainda mais interessantes:

1) Oferecer uma alternativa religiosa, declarando que é religiosa, não é o mesmo que oferecer uma terapêutica dizendo que é cientificamente reconhecida quando não o é. Somente neste último caso poderia haver suspeita de charlatanismo. Não sendo verossímil que as entidades signatárias da denúncia ignorem coisa tão banal que a mais breve consulta ao Código Penal bastaria para confirmar, a acusação de charlatanismo configura nitidamente o crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal: “dar causa a instauração de inquérito policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”). Sendo a denunciação caluniosa crime de ação pública , o CFP, tão logo receba o infame documento, tem a obrigação de solicitar imediatamente à Justiça que tome as providências legais cabíveis contra os criminosos: Associação Brasileira de Gays e Lésbicas e Movimento Gay da Bahia.

2) Depreciar como “crendice” os preceitos que condenam o homossexualismo na Torá, no E vangelho e no Corão configura nitidamente o crime de ultraje a culto (artigo 208 do Código Penal: “Escarnecer de alguém, publicamente, por motivo de crença ou função religiosa”). Os signatários da denúncia estão portanto sujeitos a responder também por este crime.

Corrigir a lógica capenga do documento gay é coisa que posso fazer, dada a minha condição de ofício. (Não precisa agradecer, que eu fico sem jeito.) Quanto à parte legal do caso, apelo aos advogados deste país para que ofereçam assessoria jurídica gratuita à Associação e ao Grupo Gay da Bahia, de modo a que estas entidades, ensandecidas pela sanha punitiva que lhes inspira uma doutrina fanática, não acabem se enrolando perante a Justiça, mais do que seria preciso para defender, de maneira sensata e dentro da lei, a causa que representam.

Veja todos os arquivos por ano