Posts Tagged Shakespeare

Formadores de opinião

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de agosto de 2009

Nas próximas semanas, dedicarei uma série de artigos a analisar, com certa minúcia, algumas idéias do colunista da Folha, Contardo Calligaris, ou aquilo que ele imagina serem suas idéias, já que a mim me parecem mais reflexos condicionados. Antes de fazê-lo, porém, desejo esclarecer algo quanto à perspectiva desde a qual examino fenômenos como esse.

Um dos elementos básicos da educação é o aprendizado de comportamentos verbais que nos identifiquem com os grupos sociais cuja aprovação necessitamos. É todo um processo complexo e trabalhoso de mimetização de sentimentos, hábitos, cacoetes, preconceitos e manias que nos libertam do angustiante isolamento corporal a que nos condenou a natureza das coisas e nos dão a impressão de que somos “alguém”, pelo menos aos olhos dos outros, dos quais assim obtemos uma reconfortante confirmação da nossa existência e até, nos casos mais felizes, da nossa importância.

Completado esse treinamento, alguns indivíduos passam à etapa seguinte, que é a aquisição da alta cultura. Aí já não se trata mais de obter a aprovação dos nossos contemporâneos, mas de dialogar com os grandes homens de outros tempos e lugares, que não nos julgam pela nossa subserviência a um meio social determinado, e sim pela nossa fidelidade a valores e critérios que não são de nenhuma época, constituindo antes a condição da possibilidade de um salto entre as épocas. Esse aprendizado vai, fatalmente, na direção oposta à do anterior. Quando você já não busca a aprovação de qualquer meio social presente, mas de Aristóteles, de Dante, de Sto. Tomás, de Shakespeare e de Leibniz, você sabe que dela não resultará provavelmente nenhum benefício exterior, mas apenas a aquisição daquela consistência íntima, daquela sinceridade profunda que lhe permitirá ser de fato “alguém”, não aos olhos dos outros, mas da comunidade supratemporal do conhecimento, ainda que ao preço de tornar-se relativamente incompreensível aos contemporâneos. A partir desse momento você está habilitado a dizer como Dom Quijote: “Yo sé quien soy” – e a opinião dos circunstantes não pode afetar em nada aquilo que você apreendeu mediante vivência espiritual direta, solitária, sem mais testemunha ou interlocutor além da comunidade dos sábios mortos. Quando Sto. Tomás de Aquino recomendava “Tem sempre diante de ti o olhar dos mestres”, ele sabia o quanto a integração da alma no diálogo supratemporal pode custar em solidão de espírito, mas também sabia que essa solidão é o único terreno onde germina o desejo de conhecer a Deus (a não ser, é claro, que o próprio Deus decida falar com você por outros meios).

A sanidade de qualquer grupamento humano – um país, por exemplo – depende de que nele exista um número suficiente de pessoas dedicadas a este segundo aprendizado. É só por meio delas que a conversação contemporânea adquire um lugar e um sentido no quadro do universalmente humano, em vez de esfarelar-se numa infinidade de picuinhas que só parecem importantes na razão inversa da escala de tempo histórico em que são medidas.

Como a alta cultura desapareceu do Brasil, o uso da linguagem nos debates públicos limita-se hoje aos fins do primeiro aprendizado: as pessoas não falam ou escrevem para exprimir em palavras alguma experiência interior autêntica, mas para sentir que acertaram no tom e no estilo da platéia cuja aprovação anseiam para reforçar sua vacilante identidade pessoal com a chancela de um grupo de referência. Daí a necessidade constante, obsessiva, de ostentar bons sentimentos, entendidos como tais os sentimentos aprovados pelo grupo (e que podem, decerto, parecer desprezíveis ou abomináveis a outros grupos).

Como o grupo dominante na mídia e nas universidades, hoje em dia, é esquerdista e politicamente correto, o chamado “debate nacional” é apenas um torneio para decidir quem personifica melhor o amor sem fim às “minorias” oficialmente aprovadas como tais e o total desprezo pelas demais minorias, por exemplo os evangélicos ou os católicos tradicionalistas (os judeus são um caso espinhosamente ambíguo, obrigando as inteligências iluminadas aos contorcionismos verbais mais engenhosos para conciliar o respeito sacrossanto aos judeus mortos com o ódio visceral aos judeus vivos).

Quando, num desvario de independência pessoal, o sujeito se horroriza ante algum excesso do politicamente correto e escreve duas ou três palavras para criticá-lo, toma as mais extremas precauções para mostrar que só o faz no puro interesse dos próprios grupos visados, reintegrando portanto dialeticamente o momento de infidelidade aparente no fundo imutável da fidelidade essencial. Essas demonstrações de “divergência”, as mais extremas que o padrão nacional comporta hoje em dia, chegam até a ser aplaudidas como provas de originalidade, excelência intelectual e coragem quase suicida. O indivíduo capaz desses controladíssimos rompantes torna-se, no padrão geral vigente, a personificação mais próxima do que seria, em condições normais, o representante da alta cultura.

É isso o que, no Brasil de hoje, se chama de “formador de opinião”: um adolescente em busca de integração social, esforçando-se para imitar a linguagem e os modos de um grupo de referência, no máximo fingindo às vezes um pouco de discordância para poder ser aprovado, não como um membro qualquer entre outros, mas como um “intelectual”, talvez até como um “pensador”.

O homem de muitos narizes

Olavo de Carvalho

O Globo, 12 de outubro de 2002

“O José Dirceu, nos tempos da ditadura, ficou quatro anos sem dizer para a sua mulher qual era a sua verdadeira identidade. E, se ele fez isso com a própria mulher durante quatro anos, quem é que me garante que ele não está fazendo a mesma coisa com o programa de governo do PT?”

Tendo-se em conta que o personagem aí mencionado é mentor do virtual presidente e ele próprio virtual ministro de alguma coisa, essa pergunta essencial deveria ter sido feita por todos os jornais, por todos os analistas políticos, por todos os concorrentes de Lula na eleição. Só quem a fez foi o Agamenon Mendes Pedreira, na sua coluna de domingo passado. Retornamos portanto ao clássico ambiente palaciano de temor servil e silêncio cúmplice, no qual só o bobo da corte tem a ousadia de enunciar em voz alta a verdade proibida que todo mundo sabe. Por favor, Agamenon, não fique magoado por eu chamá-lo de bobo da corte. Nas peças de Shakespeare, esse personagem tem a função de representar a sabedoria, a consciência interior sufocada por uma rede de mentiras convencionais. Reprimido e negado por todos, o óbvio só pode reentrar no mundo da linguagem sob a forma invertida da piada e do nonsense.

Mas, dizia Karl Kraus, em certas épocas não é possível escrever uma sátira, pois elas já constituem a sátira de si mesmas: para satirizá-las, basta descrevê-las. A pergunta de Agamenon não é piada, não é sátira. É o traslado fiel do perigo a que a presença de um José Dirceu na política nos expõe. É a descrição exata de uma situação patética em que um povo inteiro é induzido a confiar às cegas num homem treinado para mentir, fingir e ludibriar. Esse treinamento faz parte do aprendizado de qualquer agente secreto, que nos países totalitários inclui ainda o adestramento na arte de estrangular a própria consciência moral e orgulhar-se disso. José Dirceu não só fez parte dos altos círculos da inteligência militar cubana, mas teve aí acesso a documentos que nem os oficiais das Forças Armadas podiam examinar. Ele não é um qualquer: é um “quadro de elite” do movimento comunista internacional. É — literalmente — um homem de muitas caras, ou, se quiserem, de muitos narizes.

E é o supra-sumo da ingenuidade imaginar que isso são coisas do passado. Como se não bastasse a conversa idiota de que “Lula amadureceu”, querem nos obrigar a engolir que José Dirceu também é outro, que está mudado, que sua vida de agente cubano se desvaneceu num estalar de dedos, a uma simples troca de passaportes. Em toda a história dos serviços secretos comunistas, nenhum agente jamais se desligou deles exceto pela via da aposentadoria vigiada, da deserção ou da morte. José Dirceu pretende nos fazer crer que um belo dia disse adeusinho ao cargo e simplesmente saiu pelas ruas, livre e descompromissado como um office-boy que acaba de pedir as contas.

Acreditar sem mais numa história dessas é abusar do direito à idiotice. E tanto mais idiota é preciso ser para lhe dar crédito sabendo que ela vem de um homem capaz de levar uma vida falsa, durante quatro anos, ao lado da mulher que dizia amar. Mas, no Brasil de hoje, a simples sugestão de colocar em dúvida a narrativa esquisita já é considerada um abuso intolerável. José Dirceu, como os tzares, detém o direito irrevogável de ser crido sob palavra, a imunidade absoluta a perguntas que todo cidadão, numa democracia, tem o dever de fazer.

Em nenhum país civilizado um conhecido agente secreto estrangeiro poderia jamais fazer política, exceto se abjurasse da antiga lealdade e provasse a nova. Para isso, ele teria de contar às autoridades ou revelar ao povo todos os segredos a que tivesse tido acesso no seu tempo de serviço. Assim fizeram Anatoliy Golitsyn, Stanislav Lunev, Ladislav Bittman e tantos outros ex-agentes comunistas, que se tornaram bons e leais cidadãos de democracias ocidentais.

José Dirceu, não. Diz que se desligou da inteligência militar cubana, mas conserva bem guardado o seu mistério de iniqüidade. Não que seja por natureza homem discreto. Quando descobre alguma pista, mesmo falsa, que possa incriminar um homem da “direita”, faz um escarcéu dos diabos. Adora vasculhar contas bancárias, espionar os inimigos através de delatores petistas infiltrados em empresas e repartições, armar inquéritos e encenar denúncias. Mal pôde esconder sua indecente alegria quando, entre os papéis de uma empresa suspeita de corrupção na CPI do Orçamento, em 1993, deparou com o nome de “Roberto Campos”. E quem não viu seu desencanto quando descobriu que se tratava apenas de um homônimo do então articulista do GLOBO? Não é por amor à discrição que ele mantém guardados os segredos de Cuba. É por algum motivo que só o serviço secreto cubano conhece.


***


Em 1917, logo após tomar o poder, Lenin percebeu que sem os capitais estrangeiros — então predominantemente alemães — a Rússia se tornaria ingovernável. Então enviou a Berlim um embaixador, Abraham Yoffe, para acalmar os investidores. Yoffe logrou convencer os alemães de que os bolcheviques não eram realmente bolcheviques: eram homens pragmáticos, que administrariam a Rússia como sensatos capitalistas. Com isso, garantiu a paz econômica sem a qual Lenin não poderia esmagar as oposições e instalar o reinado do terror. Mas no Brasil ninguém conhece nem a história nacional, quanto mais a da Rússia. Por isso, passados 85 anos, aqui um discurso igualzinho ao de Yoffe ainda funciona — com o agravante de que vem enfeitado do aviltante apelo aos sentimentos pueris de uma platéia capitalista mentalmente subdesenvolvida, que se comove até às lágrimas com “Lulinha paz e amor”.

Ciência e linguagem

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 11 de abril de 2002

Que idéia poderia fazer das obras de Shakespeare aquele que as concebesse como mero fato lingüístico, fazendo total abstração das qualidades que as tornam dignas de atenção? Que conhecimento teria da realidade de S. Francisco e de Hitler aquele que os apreendesse somente como dados históricos, deixando totalmente de lado as qualidades que a nossos olhos tornam o primeiro amável e o segundo temível?

Tal é a idéia que faz da espécie humana o pensador que acredita poder concebê-la somente como fato da natureza, omitindo por completo o valor que, a seus próprios olhos, tem a sua condição pessoal de homem e não de bicho. A idéia do homem como puro animal é apenas uma analogia, uma figura de linguagem para uso em determinados grêmios profissionais, e não um conceito rigoroso obtido da experiência. Nenhum ser humano pode, com efeito, gabar-se de ter tido jamais a experiência concreta de um seu semelhante como animal puro e simples, abstraído das qualidades que tornam a sua vida mais digna de ser preservada do que, por exemplo, a de um sapo. Esse homem-animal é mera suposição imaginativa, obtida por exclusão mental de traços que, na experiência, vêm sempre inclusos e jamais faltantes. Ele é, admito, o homem da biologia, mas a biologia não tem a mínima autoridade para decretar que esse é o homem real, já que ela começa, precisamente, por excluir dele, considerado enquanto seu objeto de estudo, tudo o que não possa reduzir-se de algum modo à animalidade, e nenhuma ciência tem meios legítimos para se pronunciar sobre aquilo que a priori, e na sua definição mesma, está excluído do seu domínio de observação estrita. Mesmo quando, atendo-se rigorosamente aos limites do seu campo, ela aí encontre ou pretenda encontrar algum princípio de “explicação” para aquilo que está para além dele – como por exemplo a etologia “explica” certas condutas humanas a partir de condutas animais -, essa explicação jamais terá, logicamente falando, validade cognitiva superior à de uma simples analogia, de uma similitude às vezes bem longínqua e forçada.

Um exemplo característico são as teorias que pretendem explicar as guerras humanas pela agressividade animal, sem ter em conta o fato bem conhecido de que a emoção dominante do soldado em batalha não é a raiva e sim o medo – um medo que, no animal, o faria fugir em desabalada carreira em vez de avançar como o soldado humano, impelido pelo medo maior da corte marcial, da desonra, do castigo infernal ou de qualquer outro malefício abstrato completamente estranho às motivações do mais sutil dos leopardos ou do mais genial dos orangotangos.

Sim, a dura verdade é que muitos homens de ciência, ou pensadores que tomam da palavra em nome da ciência – e, entre eles, justamente aqueles que hoje em dia mais freqüentemente representam a autoridade do consenso científico nos debates públicos – estão num nível de pensamento deploravelmente primitivo, fetichista, não são sequer capazes de distinguir o concreto do abstrato, e, tirando conclusões de recortes abstrativos projetados pela sua própria mente sobre as coisas, acreditam piamente estar raciocinando sobre as coisas mesmas.

A brutal imperfeição epistemológica, a quase irracionalidade dos fundamentos cognitivos da maior parte das ciências hoje em dia contrasta miseravelmente com o volume de dados que manipulam e com a finura dos procedimentos operacionais de formalização – uma racionalidade menor e secundária – com que os articulam.

Nenhuma acumulação de dados, nenhum aperfeiçoamento lógico-formal da teoria aumentará de um átomo de validade epistemológica um edifício teórico erguido sobre conceitos imaginários, hipotéticos ou puramente convencionais.

Qualquer homem de ciência sério conhece os limites estritos do campo de validade a que podem se estender suas conclusões, mas a mosca azul dos debates públicos faz com que poucos resistam à tentação de extrair cosmovisões inteiras – se não teologias inteiras – de uns quantos dados zoológicos, genéticos ou astrofísicos.

Nenhuma ciência pode estar segura de apreender algo da “realidade” como tal quando não tem plena consciência do encaixe entre o seu domínio estrito e o mundo circundante da experiência humana direta, e esse encaixe, em cada uma das ciências conhecidas, é perfeitamente problemático, se não totalmente desconhecido.

E, se esses homens têm dificuldade até em compreender as limitações dos conceitos de base das próprias ciências que praticam, com quanto maior inabilidade não hão de manejar os conceitos muito mais abrangentes e abstratos da ontologia, da metafísica ou da teologia?

Veja todos os arquivos por ano