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Geração maldita

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de setembro de 2006

Os crimes do partido governante e do seu inocentíssimo chefe ultrapassam tudo o que a imaginação maligna de seus mais odiosos opositores teria podido inventar. As revelações dos últimos dias impõem a conclusão incontornável de que a administração federal, subjugada aos interesses de uma organização partidária auto-idolátrica, se transformou em instrumento para uma variedade alucinante de esquemas delinqüenciais, postos em ação numa escala jamais vista em qualquer parte do mundo ou época da história.

Quando o PT, no início da década de 90, adotou a prática do moralismo acusador que até então tinha sido mais típica da direita (v. Carlos Lacerda, Jânio Quadros e a própria Revolução de 1964), percebi e anunciei claramente que se tratava de um ardil baseado no mais puro cinismo leninista: “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” O estilo mesmo das invectivas petistas era tão inflado, tão hiperbólico, tão teatral, que se autodenunciava no ato como camuflagem de alguma perversidade superlativa em curso de preparação. Qualquer ridícula tramóia de políticos de interior para ciscar uns tostões do governo federal, qualquer miúda negociata entre barnabés endividados e financistas ladrões, era denunciada imediatamente como uma “manobra golpista”, um “Estado dentro do Estado”, uma ferida mortal no coração da ordem pública, um perigo apocalíptico para o futuro da nação. Ninguém que desejasse apenas tirar proveito publicitário da desmoralização de seus inimigos exageraria a tal ponto a ênfase da acusação. Tinha de haver algo mais por trás desse esbanjamento retórico.

Investigações que fiz na ocasião levaram-me a concluir que o serviço secreto petista, então denunciado pelo governador Esperidião Amin sob o nome humorístico de “PT-POL”, era uma realidade. Milhares de militantes e olheiros espalhados em partidos, empresas privadas, bancos, organismos da administração federal, alimentavam de informações colhidas ilegalmente a central chefiada pelo sr. José Dirceu, que então as usava para brilhar nas CPIs com revelações espetaculares vindas de fontes anônimas e irreveláveis. Não se tratava, é claro, apenas de brincar de Eliott Ness. O serviço secreto petista já era, por si, uma máquina criminosa de dimensões incomparavelmente maiores do que aquelas que o sr. José Dirceu, em patéticos êxtases de hiperbolismo verbal, atribuía aos réus do momento. Era o Estado dentro do Estado, no sentido literal da expressão, que, camuflando seus crimes sob os alheios, se usava a si próprio como figura de linguagem para ampliar os medíocres delitos dos adversários e lhes dar uma significação política que não tinham. Nada mais interessante do que comparar estilisticamente os discursos da época com as notícias de hoje: os tribunos da moralidade petista nada imputaram a seus microscópicos adversários que eles próprios já não estivessem fazendo ou preparando em dimensão macroscópica. Pequenos delinqüentes eles próprios, tornaram-se gigantes do crime ao erguer-se sobre os ombros dos Anões do Orçamento.

Mais ou menos na mesma época, um dirigente do PT, César Benjamin, era expulso da agremiação por denunciar a criação, pela cúpula do partido, de um esquema de corrupção então ainda em estado germinal. Paralelamente, o PT articulava-se com organizações revolucionárias e gangues de criminosos de vários países do continente, montando o “Foro de São Paulo” como central estratégica devotada ao projeto de “reconquistar na América Latina tudo o que foi perdido no Leste Europeu”, isto é, de reconstruir no continente o regime mais corrupto que já existira no mundo (v. Nota, no fim do artigo).

Completava o esquema uma rede de apoios jornalísticos solidamente cimentados em lealdades partidárias secretas e na farta distribuição de dinheiro e empregos. A CUT, braço sindical do PT, confessava ter oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos, o bastante para tirar duas edições diárias da Folha, do Estadão e do Globo, embora não publicasse um tablóide semanal sequer.

Como todas essas iniciativas envolviam sempre os mesmos indivíduos – o comando e estado-maior do PT –, era óbvio que elas não constituíam ações separadas e inconexas, mas aspectos da construção integrada de um sistema de poder destinado a engolir o Estado brasileiro e  usá-lo para a consecução dos objetivos do Foro de São Paulo.

A existência desse sistema já era visível em 1993, quando José Dirceu e Aloysio Mercadante posavam na CPI das empreiteiras como restauradores da moralidade pública. Quem quer que depois disso ainda tenha confiado na honorabilidade do PT e na sua disposição de disputar eleições lealmente e governar o país em rodízio democrático com os outros partidos, é um irresponsável, um burro, um palpiteiro fanfarrão que, diante das atuais revelações, deve ser excluído do círculo de formadores sérios da opinião nacional e recolher-se à vida privada, senão à privada da vida. Incluo nisto políticos, professores universitários, consultores empresariais pagos a preço de ouro, donos de jornais, chefes de redação e uma coleção inteira de “intelectuais e artistas” de todos os tipos e formatos. Toda essa gente, quando não foi cúmplice consciente do que se tramava contra o Brasil, mostrou ao menos uma futilidade palavrosa que, em matéria de tal gravidade, é um crime tão grande quanto os do PT.

Tudo o que está acontecendo no Brasil de hoje poderia ter sido evitado. Poderia e deveria. Não foi – e, mais do que os próprios delitos petistas, isso ficará como mancha indelével na história da alma nacional. Haja o que houver no futuro, o Brasil terá sido durante quase duas décadas um país de tagarelas levianos, covardes, intelectualmente ineptos, dispostos a sacrificar o futuro do povo no altar de um otimismo vaidoso e da recusa obstinada de enxergar a realidade. O Brasil não foi vítima só de “um grupo”, “uma camarilha”, “uma elite”. Foi vítima de toda uma geração, a mais presunçosa e fútil de todas quantas já nasceram aqui. Essa geração é a minha. Agora entendo retroativamente por que, ao longo de toda minha vida adulta, quase só tive amigos trinta anos mais jovens ou trinta anos mais velhos. Uma desconfiança irracional, instintiva, me afastava dos colegas da minha idade, com exceção de quatro ou cinco puros de coração, visceralmente incapazes de baixeza, alguns dos quais, por significativa coincidência, hoje trabalhando neste Diário do Comércio. Ficar longe dos meus coetâneos foi deprimente e, para a minha carreira nas redações, letal. Mas me livrou de ser cúmplice do maior delito intelectual da nossa história.

Agora, quando a verdadeira índole do petismo já não pode mais ser ocultada ou disfarçada, a presente geração de formadores da opinião pública (refiro-me aos que não foram comprados ou seduzidos pelo PT) corre o risco de repetir esse crime, se presumir que a mera concorrência eleitoral ou mesmo a punição judicial de algumas dúzias dos culpados mais óbvios livrará o país do flagelo e lhe abrirá as portas de um futuro mais digno.

O esquema de corrupção que se apossou do governo federal não é fenômeno isolado. Não é iniciativa de um grupelho autônomo, separado das raízes partidárias. Não é um caso de pura delinqüência avulsa. É parte integrante da máquina revolucionária cuja montagem, se entrou em ritmo acelerado no início dos anos 90, remonta a pelo menos duas décadas antes disso, quando ao fracasso das guerrilhas se seguiu um esforço generalizado de rearticulação da esquerda continental nas linhas circunspectas e pacientes preconizadas por Antonio Gramsci em substituição aos delírios belicosos de Régis Débray, Che Guevara e Carlos Marighela. Quem quer que não conheça essa história com detalhes está por fora do que se passa na América Latina e não tem nenhum direito de solicitar a atenção pública para as opiniõezinhas com que deseje se exibir em colunas de jornal ou encontros empresariais. Está na hora de calar a boca dos palpiteiros irresponsáveis e começar a estudar o assunto que eles ignoram. Incluo entre esses tagarelas o ex-presidente José Sarney e seu ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, que, em plena época de gestação da nova estratégia revolucionária continental, retiraram do currículo das academias militares a disciplina de “Guerra Revolucionária” sob o pretexto de que “os tempos mudaram”, deixando duas gerações de oficiais brasileiros desguarnecidos contra as manobras estratégicas que hoje os usam como instrumentos. Incluo na mesma classificação todos os que, numa fase muito mais avançada do processo de tomada da América Latina pelas forças da esquerda revolucionária, diziam que alertar contra as maquinações do Foro de São Paulo era “açoitar calavos mortos”. Incluo os chefetes de redação que tentaram tapar a minha boca para que eu não perturbasse o lazer de seus leitores com advertências de que viria a acontecer precisamente o que veio a acontecer. Incluo os “liberais” que, vendo montar-se à sua volta a maior organização revolucionária e criminosa já registrada na história da América Latina, insistiam em ater-se a miúdas críticas de ordem econômica e administrativa, como se toda sua diferença com o PT consistisse de polidas divergências doutrinais e estratégicas entre homens igualmente sérios, igualmente honestos, igualmente devotados ao bem do Brasil. O número dos cretinos auto-satisfeitos, que não precisam estudar nada para julgar tudo e ter opiniões definitivas, é grande o suficiente para que o peso do seus rechonchudos traseiros esmague a nação inteira. Toda essa gente é culpada por ter dado ao povo a ilusão de que o PT era um partido normal, respeitador das leis, ordeiro e pacífico. Ele não é nada disso e nunca foi nada disso. Ele já era o partido das Farc, ele já era o partido dos seqüestradores do MIR chileno, muito antes de ser o partido do Mensalão. Muito antes de que brotasse dinheiro em cuécas, a CUT já carregava nas calcinhas seus oitocentos jornalistas, sem que alguém ligasse a mínima quando denunciei isso como a maior compra de consciências na história da mídia universal desde a década de 30. Parafraseando Nelson Rodrigues: a desmoralização nacional não se improvisa, é obra de décadas.

Se, agora, alguém pensa que vai se livrar dessa encrenca com uma eleição e dois ou três processos, está muito enganado. Ninguém empenha décadas da sua vida na construção de um gigantesco esquema de poder, para depois deixá-lo derreter-se e escorrer por entre seus dedos ao primeiro sinal de mudança das preferências da opinião pública.

O que é, substantivamente, o esquema de poder petista? Ele não é apenas uma conspiração de gabinete. Ele se assenta na força da militância organizada que, a qualquer momento, pode colocar nas ruas alguns milhões de manifestantes furiosos, com o apoio de quadrilhas de delinqüentes armados, para impor o que bem entenda a uma nação inerme e aterrorizada. Durante quatro décadas a esquerda desfrutou do monopólio absoluto da formação e adestramento de militantes para a ação permanente em todos os campos da vida social, enquanto seus opositores, confiantes no poder mágico do automatismo institucional, se contentavam com mobilizar auxiliares contratados às pressas para exibir uns cartazes de candidatos nas épocas de eleição. Hoje, a desproporção de força física entre a esquerda e seus opositores é tão grande, que esses últimos têm até medo de pensar no assunto. Novamente, eles se arriscam a confiar no abstratismo das instituições e em vagas “tendências da opinião pública”, contra a massa organizada, adestrada e armada. E novamente eu me arrisco a ser chamado de maluco por advertir contra o perigo óbvio. Qualquer que seja o resultado das eleições, qualquer que seja o desenlace das presentes investigações de corrupção, a gangue petista não vai largar gentilmente a rapadura.

Nota

Quem quer que estude um pouco a corrupção no regime soviético notará, de um lado, a desproporção entre seu tamanho e o de seus equivalentes nominais no mundo capitalista; de outro, a sua perfeita continuidade organizacional e hierárquica com a presente “máfia russa”, senhora absoluta do crime organizado no mundo e participante ativa dos atuais esquemas revolucionários no Terceiro Mundo. Não creio que seja possível entender nada do que se passa no mundo sem dar alguma atenção a esse assunto. Os livros básicos a respeito são:

Konstantin Simis, USSR: The Corrupt Society. The Secret World of Soviet Capitalism, New York, Simon & Schuster, 1982.

Alena V. Ledeneva, Russia’s Economy of Favours. “Blat”, Networking and Informal Exchange, Cambridge Unversity Press, 1998.

Joseph D. Douglass, Red Cocaine. The Drugging of America and the West, London, Edward Harle, 1995.

Claire Sterling, Thieves’ World. The Threat of the New Global Network of Organized Crime, New York, Simon & Schuster, 1994.

Agitando a lama

Olavo de Carvalho


O Globo, 30 de outubro de 2004

Em janeiro de 1976, o jornal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Unidade, publicou uma edição especial com o abaixo-assinado no qual 467 membros da classe, contestando a versão oficial da morte de Vladimir Herzog, exigiam da Justiça Militar uma nova investigação. O documento pode ser visto no site http://www.partes.com.br/memoria08.html. Meu nome não somente está na lista de signatários, mas é também o de um dos responsáveis por aquela edição, o mais ousado protesto coletivo até então realizado pelos jornalistas contra o regime imperante. Minha posição no caso foi clara e inequívoca.

Nessas condições, não posso senão concordar com Milton Coelho da Graça quando diz que anistia não é esquecimento, que a verdade histórica não deve ser sufocada sob o pretexto de não reabrir feridas.

Apenas observo que é indecente querer reabrir só uma parte da verdade para encobrir as restantes sob o fulgor hipnótico de revelações unilaterais. Ora, isso é precisamente o que a nossa mídia vem propondo.

A rapidez com que tantos comentaristas celebraram como “prova definitiva” a publicação das fotos do suposto Vladimir Herzog só foi superada pela presteza com que, falhada a operação, anunciaram que afinal não tinha a menor importância saber se as imagens eram ou não do jornalista.

O importante, sim, era dobrar a espinha das Forças Armadas, e este objetivo tinha sido plenamente alcançado. Parabenizado de início como revelador da verdade, o Correio Braziliense pareceu ter ainda mais méritos como cúmplice consciente ou inconsciente de uma fraude bem sucedida.

A avaliação dos fatos é a medula do jornalismo. Se um acontecimento é da maior importância quando suja a reputação dos nossos inimigos mas se torna repentinamente irrelevante quando ameaça enlamear a nossa, o critério subentendido nesse julgamento é o do maquiavelismo político, não o da honestidade.

O tal cabo Firmino, por exemplo, aparece do nada trazendo provas falsas. Revelada a treta, como continuar acreditando que ele trabalhou para os serviços de segurança? Por que não investigar se, ao contrário, ele se infiltrou no Exército a mando de organizações de esquerda, às quais continua servindo agora em novas e evidentes funções?

Mais ainda, é óbvio que a verdadeira história dos “anos de chumbo” jamais poderá ser esclarecida sem a plena elucidação das conexões internacionais do terrorismo brasileiro. O sr. José Dirceu, por exemplo, foi oficial da inteligência militar cubana, cúmplice direto de uma ditadura genocida que não matou menos de cem mil pessoas. Acreditar que fizesse isso por amor aos direitos humanos é abusar do direito à idiotice. Mas quantos outros brasileiros exerceram funções análogas, antes e depois do fracasso das guerrilhas? Quantos prisioneiros foram torturados e mortos nos cárceres de Havana, na época, com a amável complacência daqueles apóstolos do bem, protegidos de Fidel Castro? Podemos ter a certeza de que nenhum “desaparecido” jaz num cemitério clandestino de Havana, “justiçado” por traição à causa como Márcio Toledo? Quais as articulações da guerrilha brasileira com a OLAS, Organização de Solidariedade Latino-Americana, antecessora do Foro de São Paulo, e qual a ligação dela com os governos soviético e chinês que nas décadas de 60 e 70 fizeram pelo menos quatro milhões de vítimas em várias partes do mundo? É ridículo imaginar que a opacidade dos tempos passados possa ser removida sem a exaustiva investigação desses capítulos macabros. Mesmo episódios anteriores da história da esquerda só recentemente começam a ser esclarecidos. Nos Arquivos de Moscou, William Waack descobriu que Olga Benario não tinha sido uma pobre idealista punida por delito de consciência, mas a agente de um serviço secreto militar que, na mesma ocasião, colaborava intensamente com o governo nazista. Que é que o beautiful people esquerdista fez com essa informação? Tratou de escondê-la sob o brilho de uma ficção cinematográfica. Como acreditar que agora ele quer a verdade, nada mais que a verdade? A mim me parece que ele quer mesmo é agitar a lama para que ninguém enxergue o fundo do poço.

Quem quer a verdade?

Olavo de Carvalho

O Globo, 4 de setembro de 2004

Desde que o sr. Frei Betto tentou obter da administração do Globo o meu endereço pessoal, um assistente meu tem recebido misteriosas ligações, com número bloqueado, de alguém que diz ter urgência de me encontrar mas, solicitado a declarar seu nome e a cidade de onde fala, desliga o telefone.

Não sei se os dois fatos têm alguma ligação entre si. Mas uma coisa é certa: o consultor da presidência para assuntos celestes e infernais preferiu fazer-se de surdo ante a minha oferta de enviar-lhe pessoalmente meu endereço caso o pedisse por e-mail , e essa reação só pode ser interpretada de duas maneiras: ou ele desistiu de obter por via simples o que tentara obter por via complicada, ou prefere colher suas informações sem dar na vista.

Por que um ministro de Estado agiria assim?

Tudo isso é muito esquisito, sobretudo porque não só continua no ar o site pornográfico com o nome dele, que encontrei na internet, mas ainda apareceram mais dois: www.sex-11.biz/frei-betto e www.frei-betto.lubiezaea.com. São páginas comerciais, pagas, e uma delas anuncia: “All about Frei Betto. See this now.”

Que palhaçada é essa? Por que o sr. Frei Betto não manda investigar isso, em vez de ficar sondando, pelas costas, a vida de quem sempre lhe disse a verdade com toda a franqueza?

Que é que está acontecendo nesse governo, afinal? Que tipo de gente é essa a quem o país se entregou com cega confiança? Alguém sabe, ao certo, quem são esses homens? Ou, ao contrário, ninguém quer saber?

Quem sabe, por exemplo, se o sr. José Dirceu se desligou da inteligência militar cubana ou continua a seu serviço na Casa Civil da Presidência?

Quem sabe se o sr. Luís Inácio Lula da Silva, após ter-se sentado amigavelmente à mesa de conversações com as Farc durante dez anos, não está aludindo veladamente a si próprio quando diz que o banditismo organizado tem altos contatos na esfera política?

Quem sabe se o partido que alardeia anti-imperialismo e ao mesmo tempo quer entregar partes da Amazônia a ONGs internacionais não esteve nos enganando o tempo todo com um nacionalismo de fachada?

Quem sabe se as relações entre os poderes globais e a esquerda nacional não são muito mais complexas do que parecem ao simplismo estereotipado dos bem-pensantes?

Ninguém sabe, ninguém quer saber. É proibido perguntar. Da idolatria da “transparência” passamos ao culto de uma opacidade de chumbo, e ninguém dá ao menos um sinal de ter percebido a diferença.

No tempo de Collor, a conversa vagamente suspeita entreouvida por um motorista indiscreto desencadeou a mais vasta investigação que já se fez contra um presidente. Hoje em dia, seis testemunhas mortas no caso Celso Daniel não abalam em nada a reputação de governantes ungidos pelo dom da inatacabilidade intrínseca.

Na CPI do Orçamento, em 1993, o sr. José Dirceu sabia até os números das cédulas dadas como propina por um político medíocre a um funcionário insignificante. Na época, escrevi: “Pelo furor investigativo com que os jornais e a TV abrem as latrinas, destapam os ralos, vasculham os esgotos da República, parece que o Brasil, den­tre todos os países, tem a imprensa mais ousada, mais independente, mais empenhada em descobrir e revelar a verdade.”

É impossível não perceber, hoje, que tudo isso foi apenas um pretexto para aplanar a estrada para o PT, colocá-lo no poder e nunca mais fazer perguntas, aceitando dos novos patrões, com docilidade incuriosa e muda, condutas muito mais suspeitas e extravagantes que as de todos os seus antecessores. É como se, após um número excessivo de desilusões, o país não suportasse mais uma. Anos atrás a TV francesa mostrou uma garota que, após ter fugido da família, caído em devassidões indescritíveis e passado por mil e uma lavagens cerebrais nas mãos de falsos gurus, voltara para casa com a personalidade alterada e um ar de passividade estúpida no rosto: “Não, eu não quero mais saber a verdade”, repetia ela ante as câmeras. Está assim a alma esgotada do povo brasileiro. Usado e abusado pela propaganda, ele já não se ofende de ser ludibriado, porque não tem mais forças para querer saber a verdade.

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