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Para cima e para baixo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de fevereiro de 2011

Conforme se sinta feliz ou infeliz, ajustado ou deslocado na sua época, você tenderá a enxergar a passagem do tempo histórico como evolução ou decadência. Os filósofos pré-socráticos, por exemplo, lhe parecerão precursores da ciência atual ou portadores de uma sabedoria perdida. A Idade Média, um período de trevas ou a apoteose da inteligência humana. A II Guerra Mundial, uma regressão à barbárie antiga ou o cúmulo da barbárie moderna.

A nenhuma época da História faltam qualidades que justifiquem uma opinião e a outra. Se há neste mundo algum julgamento que seja desesperadoramente subjetivo, é aquele que vê a caminhada da espécie humana sobre a Terra como uma gloriosa escalada em direção aos céus ou uma inexorável descida aos infernos.

“Todas as épocas são iguais perante Deus”, ensinava o grande historiador Leopold von Ranke. Quanto mais você estuda a História, mais se persuade de que não existe nela uma linha identificável – muito menos uma que leve claramente para baixo ou para cima.

Julgamentos de evolução ou decadência só fazem sentido quando há um objetivo e um prazo, claros e determinados, que possam servir de medida do avanço ou retrocesso. Como ninguém sabe para onde a História deve ir nem quanto ela vai durar, cada um é livre para medi-la segundo a régua que bem entenda e chegar a conclusões opostas às do seu vizinho.

No entanto, há na História entidades e instituições que têm uma finalidade clara e pretendem atingi-la num prazo concebível. Essas podem ser julgadas, pois têm em si seu próprio padrão de medida. A Igreja Católica, por exemplo, prometeu fazer santos, e os fez em profusão desde o primeiro dia, mas não pôde continuar a produzi-los na mesma quantidade e nem mesmo na proporção do crescimento do número de almas humanas na Terra. Dizer que algo ai não está muito bem não é nada de subjetivo.

O movimento sionista prometeu dar aos judeus um país no prazo de duas ou três gerações. Deu-lhes o país, mas cercado de inimigos. Foi um progresso caro e perigoso, mas quem não concordará que é melhor estar espremido na sua própria terra do que num país estrangeiro onde cada um está louco para jogar você num gueto ou num campo de concentração?

Já o socialismo não prescreveu a si mesmo nenhum prazo, mas o morticínio, a miséria e a opressão que produziu ao longo de um século já superaram tão amplamente a dose de sofrimentos humanos ele que prometia curar, que não é nem um pouco insensato prever que ele não poderá se sair melhor se lhe dermos outra chance (a última coisa que devemos fazer, na minha modesta opinião). De outro lado, seu fracasso em atingir os fins declarados não implica que ele tenha perdido também o prestígio mágico adquirido pelas suas promessas iniciais. Ao contrário: o número de fiéis do socialismo parece aumentar na mesma proporção do número de cadáveres que ele vai deixando pelo caminho. O socialismo decai como ideal legítimo no mesmo passo em que progride como máquina de conquista do poder. Como diria Nelson Rodrigues, o fracasso subiu-lhe à cabeça.

A cultura superior no Brasil também não nasceu com prazo, mas é razoável e aliás habitual medi-la pela evolução de um país vizinho nascido na mesma época e em condições não muito diversas. O transcurso de dois séculos fez aí toda a diferença: a elite pensante do nosso Império nada perdia na comparação com os Founding Fathers, mas enquanto os Estados Unidos são hoje o centro da alta cultura universal, reunindo os maiores filósofos, os maiores cientistas, os maiores artistas e as melhores universidades, o Brasil simplesmente saiu da história intelectual do mundo. Saiu pelo ralo. Pode-se perguntar o que deu errado e responder com máxima objetividade: Tudo.

A pergunta sobre evolução e decadência não é sempre descabida. Basta que seja limitada a entes e processos historicamente mensuráveis e que você esteja preparado para agüentar o tranco da resposta.

Às avessas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de novembro de 2010

Se você lê com a dose esperada de ingenuidade as declarações de Mehmet Ali Agca na versão que O Globo publicou no último dia 11, fica com a nítida impressão de que descobriu finalmente a verdade sobre o atentado que quase matou o Papa João Paulo II em 13 de maio de 1981. Quem encomendou o crime, diz Agca, não foi a KGB, mas o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Agostino Casaroli. O jornal carioca descreve Agca como “membro de um grupo de extrema-direita” e Casaroli como “uma das figuras centrais do esforço do Vaticano para defender a Igreja nas nações do bloco soviético”.

A conclusão, implícita mas nem por isso menos eloqüente, só pode ser uma: a maldita direita católica tramou o assassinato para frustrar a abertura diplomática do Vaticano para com o governo soviético.

Se ainda restasse um pingo de consciência jornalística no Globo, uma breve pesquisa teria bastado para informar ao autor da matéria que:

1. O cardeal Casaroli pode ter escrito no seu livro de memórias umas coisinhas quanto ao sofrimento dos cristãos na URSS, mas, no campo da ação prática, muito mais decisivo para o conhecimento das intenções humanas do que meras palavras, foi ele próprio o grande articulador da “abertura para o Leste”, um dos maiores responsáveis pelo ingresso em massa de comunistas no clero e, last not least, o cérebro por trás da grande operação de engenharia política destinada a esvaziar a Igreja da sua missão espiritual tradicional e transformá-la numa agência da Nova Ordem Mundial. Nos escalões superiores da hierarquia vaticana, ele era o protetor por excelência da Companhia de Jesus, criadora da “Teologia da Libertação” e quartel-general dos comunistas infiltrados na Igreja. De todos os altos dignitários da Igreja Católica na época, nenhum teve mais contatos com os governos comunistas do que ele. Se algo ele fez em favor dos católicos perseguidos, muito mais fez para submeter a Igreja Católica ao jogo comunista.

2. Embora Mehmet Ali Agca tivesse realmente participado de uma organização de extrema-direita, os “Lobos Cinzentos”, nos meses que precederam o crime ele esteve em intenso contato, não com a KGB diretamente, mas com o serviço secreto da Bulgária comunista. Contratar assassinos que serviram ao outro lado é prática quase obrigatória de organizações desse tipo quando desejam matar algum personagem famoso. O envolvimento búlgaro no atentado foi abundantemente provado pela repórter Claire Sterling no livro The Time of the Assassins (Henry Holt & Co., 1983), e uma negativa genérica de participação “da KGB”, sem qualquer menção à Bulgária, é com toda evidência mera desconversa.

3. O estado de guerra entre Casaroli e João Paulo II durante todo o reinado deste último é fato universalmente conhecido, e nessa guerra a “maldita direita” era representada pelo Papa, não pelo cardeal, que o grande conhecedor de intrigas vaticanas, Malachi Martin, no roman à clefque publicou sob o título Windswept House (“A Casa Batida pelo Vento”) retrata, sob o nome de Cosimo Maestroianni, como um ateu puro e simples.

Mesmo admitindo-se que a denúncia de Mehmet Ali Agca contra o ex-secretário de Estado seja verdadeira, coisa que não tenho a menor condição de afirmar ou negar, resta o fato de que o crime foi cometido a favor dos interesses comunistas e não contra eles. Com ou sem Casaroli, a mão assassina atacou pelo lado esquerdo. Mais uma vez O Globo brinda seus leitores com uma história contada às avessas.

Publicado com o título “A história contada às avessas”

O estilo é Dom Rixem

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de outubro de 2010

O estilo é o homem – e a distinção estilística fundamental, nos debates públicos, é entre a linguagem que apela à experiência pessoal do leitor e aquela que visa a produzir uma impressão direta, pela pura carga semântica das palavras – e dos jogos de palavras –, omitindo ou até bloqueando o acesso à experiência.

O primeiro desses estilos não faz do seu usuário a voz de Deus, mas o segundo é inconfundivelmente diabólico, já que só serve para mentir e ludibriar, inscrevendo-se portanto, de perto ou de longe, na linhagem do Pai da Mentira. Uma mas maneiras mais eficazes de praticá-lo é embutir no texto algumas contradições bem camufladas, de modo que, não as percebendo à primeira vista, o leitor acabe engolindo a pílula pela simples razão de que seu cérebro, paralisado pela dificuldade lógica mal conscientizada, não encontra por onde discordar de quem lhe diz, ao mesmo tempo, sim e não. É o que costumo chamar de “contradição estupefaciente”: aquela que persuade não a despeito de ser absurda, mas precisamente porque é absurda.

Não espanta, pois, que tal seja o estilo dos sacerdotes e pregadores intoxicados de Teologia da Libertação, uma escola de pensamento que até David Horowitz, um estudioso judeu totalmente alheio ao meio católico, percebeu imediatamente ser uma seita satânica.

Todo o esforço da Teologia da Libertação resume-se em aviar a receita de Antonio Gramsci, segundo a qual a Igreja Católica não deve ser combatida, mas infiltrada, dominada desde dentro, esvaziada de seu conteúdo espiritual tradicional e usada como instrumento da política comunista.

Submetido a essa dieta por algumas semanas, você está pronto para acreditar que a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo coincide em gênero, número e grau com a dos maiores assassinos de cristãos que já houve no mundo: Lênin, Stálin, Mao Dzedong, Pol-Pot, Ho Chi Minh, Che Guevara e Fidel Castro.

Você não aceitaria isso se viesse da boca de qualquer um, mas, proferida com a autoridade de um prelado da Santa Madre Igreja, a proposta indecente suscita no cérebro humano uma reação paradoxal: você imagina que um homem de Deus jamais pregaria coisas tão chocantes, tão manifestamente absurdas e blasfemas. Ato contínuo, você diz a si mesmo que por trás da contradição brutal deve haver alguma coerência profunda, mística, inacessível à percepção comum. Não conseguindo elaborar o enigma por meios conscientes, você transfere automaticamente o serviço para a fantasia onírica, um mundo de analogias onde há somente imagens concretas e onde não penetra a diferenca entre “sim” e “não” (um fenômeno bem conhecido dos hipnologistas), o que torna impossível apreender a distinção entre analogia direta e analogia inversa: aí já não há mais diferença entre morrer pelos seus irmãos, como ensinava Cristo, e tornar-se, como propunha Che Guevara, uma “eficiente e fria máquina de matar”. Entre as névoas do sonho, não só o assassinato em massa de cristãos adquire o prestígio de um sacrifício divino, mas já não há distinção de mérito entre os que deram a vida e os que a tiraram. A vaga semelhança física entre o retrato de Che Guevara e a figura estereotipada de Jesus Cristo faz o resto.

Um exemplo didático do emprego da contradição estupefaciente vem na mensagem de Dom Eugênio Rixem, bispo de Goiás e responsável pela Comissão de Catequese da CNBB, contra os apelos de padres católicos para que seus paroquianos não votem em candidatos abortistas.

“A Igreja Católica, como já disse numa carta anterior, não apóia nenhum candidato”, afirma o referido.

Linhas adiante, pontifica: “O que está em questão nestas eleições são dois projetos diferentes sobre o futuro do nosso país. Um que defende os interesses dos pobres, mais justiça social e melhor distribuição de renda nacional. Outro, quer manter os privilégios daqueles que sempre marginalizaram a classe dos excluídos.”

É verdade que a Igreja não apóia nenhum candidato, mas dom Rixem apóia. O contraste maniqueísta entre os bonzinhos e os malvados, descrito nos precisos termos da propaganda petista – e sem a mais mínima prova de que a candidata dos banqueiros seja uma digna representante dos pobres, coisa em que só um petista fanático pode acreditar –, não deixa margem a dúvidas quanto às suas preferências. Ele as expõe, novamente, na linguagem estereotipada da retórica petista, mas, em vez de fazê-lo em nome de si mesmo, apela ao plural majestático: “Queremos um país com mais justiça social, terra para os pobres, o limite de propriedade de terra, a defesa do meio ambiente, especialmente do cerrado, tão agredido pelo agronegócio.” Queremos? Quem é o sujeito da frase? Evidentemente, a entidade coletiva em nome da qual dom Rixem fala: a Igreja Católica – aquela mesma que não apoiava nenhum candidato mas que, pelo milagre da contradição estupefaciente, aparece agora como adepta incondicional de Dilma Roussef.

“Sim, sim, não, não”, ordenava Jesus Cristo: “O mais é conversa do demônio.”

Quem quer que use a linguagem da contradição estupefaciente desqualifica-se no ato, não só como pregador da doutrina de Cristo, mas como simples interlocutor honesto e digno de crédito.

Se você quer mesmo acreditar no irracional, por favor escolha algo de mais inofensivo: acredite em duendes, acredite em discos voadores, acredite em Papai Noel, mas não acredite em Dom Rixem.

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