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A história invertida

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de abril de 2013

          

O confronto entre militares e terroristas na América Latina dos anos 60-70 foi um episódio da Guerra Fria, onde os atores locais, sem prejuízo de suas convicções e decisões próprias, ecoavam, em última instância, as estratégias respectivas das duas grandes potências em disputa: os EUA e a URSS.
         Nada do que então se passou no continente pode ser compreendido sem ter isso em conta.
         Se perguntarmos qual dos dois protagonistas estrangeiros interferiu mais profundamente no cenário latino-americano, a única resposta honesta é: a URSS.
         Do ponto de vista militar, isso é de uma obviedade gritante. Os EUA jamais chegaram a ter, na época, quarenta mil soldados, quinze mil técnicos em armamentos, setecentas baterias anti-aéreas, 350 tanques e cento e tantos mísseis balísticos intercontinentais instalados em nenhum dos seus países aliados na América Latina, como a URSS teve em Cuba já a partir de 1962 na chamada “Operação Anadyr”. (v. Gus Russo and Stephen Molton, Brothers in Arms. The Kennedys, the Castros and the Politics of Murder, New York, Bloomsbury, 2008, p. 158 e aqui).
         No que diz respeito à espionagem propriamente dita, a superioridade soviética surge ainda mais nítida no caso do Brasil em especial. Nada do que a CIA ou qualquer outro serviço secreto norte-americano possa ter feito aqui se compara às proezas da KGB, que chegou a instalar um grampo no gabinete do presidente João Figueiredo (v. George Schpatoff, KGB. História Secreta, Curitiba, Juruá, 2000, pp. 381 ss.), interceptar 21 mil mensagens sigilosas do nosso Ministério das Relações Exteriores e ter a seu serviço, como agente pago, nada menos que um embaixador brasileiro em Moscou (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005, p. 105).
         Se daí passamos ao campo das chamadas “medidas ativas” (desinformação, infiltração, guerra psicológica, agentes de influência etc.), a supremacia soviética no Brasil daqueles anos assume as proporções de um poder absoluto e incontrastável. Em 1964, a KGB tinha várias dezenas de jornalistas brasileiros na sua folha de pagamentos (confissão do próprio chefe da agência soviética no Brasil, Stanislav Bittman, em The KGB and Soviet Disinformation: An  Insider’s View). Que o número deles se multiplicou nos anos seguintes não é algo de que se possa duvidar. Muitos jornalistas brasileiros, naquele período, fizeram estágios na URSS, na China, na Tchecoslováquia, na Alemanha Oriental, na Polônia e em Cuba. Uns poucos gabam-se disso até hoje, seguros de que o público amestrado já não verá aí o menor motivo de suspeita. Mas naqueles países, onde todos os órgãos de mídia nada mais eram do que extensões da polícia secreta, é quase impensável que algum jornalista estrangeiro fosse admitido sem ser em seguida recrutado como agente de influência. Como assinalam John Earl Haynes, Harvey Klehr e Alexander Vasiliev em Spies: The Rise and Fall of the KGB in America (Yale University Press, 2009), os soviéticos foram sempre os campeões absolutos no recrutamento de jornalistas. Nos EUA, hoje conhecem-se um por um os nomes daqueles que, na mídia americana, serviram à KGB e ao GRU (serviço secreto militar). No Brasil, esse capítulo da história do nosso jornalismo é ainda um tabu, mas é evidente que sem ele nada se compreende do período, principalmente porque em plena ditadura militar os comunistas chegaram a controlar praticamente toda a grande mídia no país (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html, http://www.olavodecarvalho.org/semana/111125dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html) e a dominar também o mercado livreiro através das suas grandes casas editoras (Civilização Brasileira, Brasiliense, Vitória etc.). Nem falo, é claro, dos agentes de influência  que vindo do bloco soviético se espalharam pelos EUA e pelas democracias européias, forjando aí a imagem demoníaca do governo brasileiro que acabou por se consagrar como dogma internacional inabalável.  
         O conjunto forma uma orquestra formidável, ao lado da qual a voz do imperialismo ianque mal soava como o miado de um gatinho doente. Ao longo de toda aquela época, e depois mais ainda, tanto os EUA quanto o governo brasileiro se abstiveram de fazer qualquer esforço sério para ganhar os “corações e mentes” dos formadores de opinião neste país. Em plena ditadura, os jornalistas “de direita” nas redações contavam-se nos dedos das mãos e eram abertamente hostilizados por seus colegas.
         Por fim, até hoje não se fez uma avaliação razoável da quantidade de recursos mobilizados pelas ditaduras de Cuba, da China, da URSS e seus países satélites para treinar, equipar e financiar não só os terroristas brasileiros mas os militantes encarregados de lhes dar apoio político sem participar dos combates. Foi uma operação de proporções gigantescas, que na imagem pública hoje em dia só aparece sob a forma de menções esporádicas a “exilados”, como se os comunistas só fossem para aqueles países quando obrigados a isso pelo governo militar.

Em comparação com a profundidade e amplitude da intervenção cubano-soviética no continente, e especialmente no Brasil, a ação dos EUA naqueles anos caracterizou-se pela raridade, timidez e omissão, limitando-se no mais das vezes a acordos entre governos. Se a imagem que se consagrou na mídia e no ensino foi exatamente a inversa, isso é mais uma prova do sucesso de uma operação que prossegue ainda hoje, tendo a seu serviço tanto os megafones quanto as mordaças.

Quem avisa, amigo é

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de março de 2010

Para além dos seus respectivos discursos padronizados de autodefinição ideológica, que nem de longe bastam para esclarecer sua verdadeira substância histórica e à vezes servem antes para camuflá-la, várias diferenças separam no Brasil a direita e a esquerda. Desde logo, esta tem uma história; aquela, não. É incrível como esse fator decisivo passa despercebido aos ilustres analistas políticos da grande mídia e da academia, jumentos empalhados que falam. Ele, por si só, explica muito da atual situação política brasileira: de um lado, uma facção imbuída de forte identidade histórica, sedimentada ao longo de quatro ou cinco gerações pelo contínuo reexame e transmutação do legado recebido em instrumento de ação presente, guiado por uma imagem de futuro sempre renovada e adaptada às circunstâncias. De outro, um farelo de grupos surgidos do nada, da noite para o dia, da mera aglomeração fortuita de indignações ocasionais e interesses inconexos. Uns, ignorando tudo do passado. Outros, ansiosos para renegá-lo ao menos em público, caprichando em demonstrações de bom-mocismo para limpar-se da contaminação de um “ranço autoritário” que nem sabem exatamente o que possa ter sido, mas que, hipnotizados pelo discurso esquerdista dominante, acreditam ser coisa invariavelmente feia. Outros, empenhados em enternecer a esquerda para parecer moderninhos, abdicando de toda identidade própria no front moral e cultural em troca de concessões econômico-administrativas que, embora eles não o saibam, o governo lhes faria igualmente sem isso, pois precisa delas para financiar com o lucro capitalista a construção do poder socialista. Outros, enleados em criar belas formulações doutrinais em juridiquês pomposo, que comovem a população como o cocô dos passarinhos comove um busto de bronze. Outros, por fim, devotados a negar a realidade patente, apegando-se, com mais de uma década de atraso, aos velhos slogans “A Guerra Fria acabou”, “Lula mudou” e similares, que já eram estúpidos quando lançados pela primeira vez e que só serviram para proteger sob um manto de silêncio cúmplice o crescimento do Foro de São Paulo e do seu poder continental. E praticamente todos apostando na força mágica das eleições, como se o afluxo de eleitores às urnas durante algumas horas, de quatro em quatro anos, tivesse mais força que a ação constante, diuturna, incansável, da militância organizada; como se já não soubessem, pelo exemplo de Collor, que a simples eleição de um presidente, sem tropas de militantes para apoiá-lo nas ruas, não passa de um convite ao impeachment ou, no mínimo, à paralisação do governo sob o metralhar incessante das acusações, dos escândalos e dos inquéritos.

Se algo a história jamais desmentiu, é esta regra elementar: quem dura mais, vence.

Dessa diferença essencial decorre uma segunda: a esquerda tem objetivos de longo prazo pelos quais seus combatentes dariam a vida e que em última instância constituem ali o critério de todos os valores, de todas as decisões, ao passo que a direita, sem outro objetivo senão a sobrevivência imediata, se compõe e decompõe ao sabor de impressões de momento, sem ordem nem rumo, bem como de simpatias e antipatias voláteis, de uma futilidade atroz.

E da segunda diferença decorre uma terceira. Na esquerda, os intelectuais têm uma função orgânica, são os formuladores de estratégias gerais que os políticos seguem com uma constância admirável. Já a direita quer intelectuais apenas como propagandistas de idéias prontas – função na qual os cérebros mais fracos e rotineiros são obviamente preferidos aos pujantes e criadores –, com o agravante de que aquelas idéias não são nem idéias, são apenas os preconceitos, ilusões e regras de bom-tom da classe economicamente privilegiada, cuja máxima aspiração é amolecer o coração da esquerda, na vã esperança de que, bem afagada, ela a deixará em paz. Quando o sr. Presidente da República diz que essa gente não tem a mínima perspectiva de poder, está sendo até generoso: a direita brasileira, tomada como conjunto, não tem sequer a mais vaga idéia do que seja a luta política.

FHC, vendido à CIA?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de setembro de 2009

O livro da Sra. Frances Stonor Saunders, Quem Pagou a Conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura (Record, 2008), que já mencionei, meses atrás (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/080214jb.html), é um estudo com ares de seriedade acadêmica, onde os fatos vêm tão bem documentados quanto meticulosamente isolados dos dados comparativos necessários à sua avaliação racional. Deveria ser auto-evidente que o relato de um conflito bélico ou político, como de uma partida de futebol, só faz sentido se as ações de um dos contendores aparecerem articuladas às do seu adversário. Suprimida metade do enredo, a outra metade pode adquirir as proporções e o significado que a imaginação de cada um bem entenda. A imaginação da Sra. Saunders empenha-se em deformar a história da Guerra Fria com uma constância obstinada e uma coerência metódica que excluem, desde logo, a hipótese da mera incompetência. Por isso mesmo ela se tornou uma autora tão querida da mídia brasileira, que na obra da pesquisadora inglesa se compraz voluptuosamente em enxergar, refletida e adorável, a imagem da sua própria mendacidade.

Se o livro todo já é uma tentativa de dar ares de escândalo a presumidas revelações históricas que antes dele qualquer leitor poderia ler tranqüilamente no próprio site oficial da CIA e nas memórias de inúmeros personagens envolvidos nos acontecimentos, não é de espantar que os jornalistas brasileiros encontrem nele um de seus alimentos espirituais prediletos: a denúncia de uma conspiração direitista milionária destinada a colocar o Brasil sob o domínio do imperialismo ianque, com a ajuda de políticos locais bem subsidiados pelo dinheiro daquela agência americana, entre os quais o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

A prova da trama, que vem circulando com grande frisson entre os círculos “nacionalistas” da internet desde que alardeada pela inteligência glútea do jornalista Sebastião Nery, é a verba de 800 mil dólares, ou talvez um milhão, concedida em 1969 pela Fundação Ford para que Fernando Henrique e outros professores demitidos da USP criassem o Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. A Fundação, afirma a dupla Saunders-Nery, era um braço da CIA, e a operação toda era um lance da guerra cultural anticomunista. FHC teria sido comprado pela direita, traindo seus ideais esquerdistas de juventude.

O que a Sra. Saunders não conta – e Sebastião Nery ignora ou finge ignorar por completo – é que a Fundação Ford, se alguma posição tomou na guerra cultural, foi contra os EUA. Na década de 50 ela já foi denunciada por uma comissão parlamentar de inquérito por sua persistente colaboração com a propaganda soviética (v. René Wormser, Foundations, Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958, e Phil Kent, Foundations of Betrayal. How the Super-Rich Undermine America, Johnson City, TN, Zoe Publications, 2007); e hoje em dia os programas que ela continua subsidiando – cotas raciais, feminismo, gayzismo, abortismo – constituem o ideário cultural inteiro da esquerda no mundo. Se isso é “imperialismo ianque”, eu sou o Sebastião Nery em pessoa.

A Fundação Ford trabalha, sim, para um projeto imperialista, mas não americano. Trabalha para o internacionalismo socialista, de inspiração fabiana, empenhado em demolir a soberania dos EUA para substitui-la progressivamente por uma Nova Ordem Mundial altamente centralizada, estatista e controladora, da qual o governo Barack Obama é um dos instrumentos mais ativos hoje em dia.

Tanto a Fundação quanto FHC podem ser acusados de tudo, menos de terem feito algum mal à esquerda. E não deixa de ser uma prova da debilidade da direita – americana, brasileira ou mundial – o fato de que ela raramente ofereça uma reação à altura quando acusada dos pecados de seus próprios inimigos. Ao contrário: quantos, entre os direitistas brasileiros, especialmente militares, ansiosos por mostrar que são mais anti-americanos do que direitistas, não são os primeiros a fazer coro a mentirosos compulsivos como Saunders e Nery?

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