Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de março de 2010

Para além dos seus respectivos discursos padronizados de autodefinição ideológica, que nem de longe bastam para esclarecer sua verdadeira substância histórica e à vezes servem antes para camuflá-la, várias diferenças separam no Brasil a direita e a esquerda. Desde logo, esta tem uma história; aquela, não. É incrível como esse fator decisivo passa despercebido aos ilustres analistas políticos da grande mídia e da academia, jumentos empalhados que falam. Ele, por si só, explica muito da atual situação política brasileira: de um lado, uma facção imbuída de forte identidade histórica, sedimentada ao longo de quatro ou cinco gerações pelo contínuo reexame e transmutação do legado recebido em instrumento de ação presente, guiado por uma imagem de futuro sempre renovada e adaptada às circunstâncias. De outro, um farelo de grupos surgidos do nada, da noite para o dia, da mera aglomeração fortuita de indignações ocasionais e interesses inconexos. Uns, ignorando tudo do passado. Outros, ansiosos para renegá-lo ao menos em público, caprichando em demonstrações de bom-mocismo para limpar-se da contaminação de um “ranço autoritário” que nem sabem exatamente o que possa ter sido, mas que, hipnotizados pelo discurso esquerdista dominante, acreditam ser coisa invariavelmente feia. Outros, empenhados em enternecer a esquerda para parecer moderninhos, abdicando de toda identidade própria no front moral e cultural em troca de concessões econômico-administrativas que, embora eles não o saibam, o governo lhes faria igualmente sem isso, pois precisa delas para financiar com o lucro capitalista a construção do poder socialista. Outros, enleados em criar belas formulações doutrinais em juridiquês pomposo, que comovem a população como o cocô dos passarinhos comove um busto de bronze. Outros, por fim, devotados a negar a realidade patente, apegando-se, com mais de uma década de atraso, aos velhos slogans “A Guerra Fria acabou”, “Lula mudou” e similares, que já eram estúpidos quando lançados pela primeira vez e que só serviram para proteger sob um manto de silêncio cúmplice o crescimento do Foro de São Paulo e do seu poder continental. E praticamente todos apostando na força mágica das eleições, como se o afluxo de eleitores às urnas durante algumas horas, de quatro em quatro anos, tivesse mais força que a ação constante, diuturna, incansável, da militância organizada; como se já não soubessem, pelo exemplo de Collor, que a simples eleição de um presidente, sem tropas de militantes para apoiá-lo nas ruas, não passa de um convite ao impeachment ou, no mínimo, à paralisação do governo sob o metralhar incessante das acusações, dos escândalos e dos inquéritos.

Se algo a história jamais desmentiu, é esta regra elementar: quem dura mais, vence.

Dessa diferença essencial decorre uma segunda: a esquerda tem objetivos de longo prazo pelos quais seus combatentes dariam a vida e que em última instância constituem ali o critério de todos os valores, de todas as decisões, ao passo que a direita, sem outro objetivo senão a sobrevivência imediata, se compõe e decompõe ao sabor de impressões de momento, sem ordem nem rumo, bem como de simpatias e antipatias voláteis, de uma futilidade atroz.

E da segunda diferença decorre uma terceira. Na esquerda, os intelectuais têm uma função orgânica, são os formuladores de estratégias gerais que os políticos seguem com uma constância admirável. Já a direita quer intelectuais apenas como propagandistas de idéias prontas – função na qual os cérebros mais fracos e rotineiros são obviamente preferidos aos pujantes e criadores –, com o agravante de que aquelas idéias não são nem idéias, são apenas os preconceitos, ilusões e regras de bom-tom da classe economicamente privilegiada, cuja máxima aspiração é amolecer o coração da esquerda, na vã esperança de que, bem afagada, ela a deixará em paz. Quando o sr. Presidente da República diz que essa gente não tem a mínima perspectiva de poder, está sendo até generoso: a direita brasileira, tomada como conjunto, não tem sequer a mais vaga idéia do que seja a luta política.

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